quarta-feira, 3 de abril de 2024

CARTA PARA EU CRIANÇA



 

Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter menos de dois anos. Não consigo nem mesmo imaginar onde ela foi tirada. Meu pai trabalhava em uma empresa que construía estradas e ele trabalhou entre Belo Horizonte e Teófilo Otoni durante um período de quatro anos, desde meu nascimento em Timóteo, no Vale do Aço, passando por Sabará, onde nasceu essa menina, e Teófilo Otoni, no norte de Minas, onde nasceu meu irmão, o terceiro. Nós três nascemos na estrada.

Então, escrevo para esse garoto da foto, esse aí dos olhos com uma curva que parece estar triste, um olhar imponente, no entanto. Parece que já gostava de mirar no fundo dos olhos das pessoas, pois aqui na foto olha direto na lente da máquina. Pois assim será sempre, meu querido Paulo pequeno. Você irá sempre olhar no fundo dos olhos das pessoas, apertar as mãos delas com força, abraçá-las com carinho verdadeiro, e dizer-lhes palavras sérias, algumas ferinas. Só bem mais tarde na vida vai contemporizar nos dizeres, pois aprenderá que franqueza nem sempre é uma boa qualidade, tanto quanto a dissimulação. Há verdades que não dizemos nem para o mentor, o padre, o pai, o cônjuge. A gente guarda no fundo do coração e a usamos apenas se necessário. Em vez disso, você aprenderá a fazer questionamentos cujas respostas ajudam a você e as pessoas a encontrarem suas verdades nas respostas. Perguntas socráticas, como você lerá no livro Sócrates Café, de Christopher Phillips.

São as perguntas que te farão crescer, não as respostas. Terá que vencer a timidez que o mantém encolhido diante das pessoas; terá que vencer a arrogância, pois se achava mais inteligente que muitos outros. Terá que vencer o medo de se relacionar, e descobrirá um dia que o beijo na boca é uma delícia (não precisa exagerar também, né cara?). Voltando às perguntas, aprenderá que muitas delas não terão respostas. No entanto, são as perguntas que farão de você um cientista das coisas materiais, físico para ser preciso; são as perguntas que o transformarão em professor, cientista das relações humanas. Aí você juntará tudo e começará a refazer suas perguntas, mas em forma de poesia e crônicas.

Se você já imaginasse o tamanho da trajetória que deverá percorrer na vida, provavelmente já faria um ar cansado na foto. Mas está sereno. A serenidade te acompanhará a vida toda, Paulinho. A paciência e a resiliência serão os motes que usará para seguir em frente quando os caminhos parecerem fechados com cercas elétricas. Afinal de contas, você quase nasceu em uma boleia de caminhão, ou de um trator, teve irmãos demais, dinheiro de menos, dificuldades atropeladoras, etc., mas pense bem, meu menino. Você estudará nas duas melhores universidades do Brasil (UFMG e USP), fará um curso na Sorbonne, em Paris, e doutorar-se-á em Dijon, França, na sala e na mesa de trabalho de Gaston Bachelard, ganhará seu título com louvor, subirá até o alto do Mont Blanc a quase cinco mil metros de altitude, escalará El Mirante del Condor, no Chile, orientará mais de mil projetos de alunos e interpretará o Grande Sertão: Veredas em forma de haicais. Por isso eu perdoo este olhar de “EU SOU PHODA” que você já mostra na foto.

Nem tudo será flores, meu caro. A caminhada será dura, cheia de tropeços, idas e vindas, altos e baixos. Terá mulheres e elas irão embora, pois te acharão chato. Terá filhos e alguns deles também sairão de sua vida, porque dirão que você os abandonará ao sair de casa. Você sabe que não será verdade, você daria a vida por eles. Mas você sabe, né? Filhos geralmente acompanham as mães e elas não irão querer você por perto. Mas, insista e eles voltarão a querer você na mesa deles falando de suas aventuras.

Anos depois, já com tantas vivências, tantos erros e fracassos acumulados, e algumas vitórias bem curtidas, você poderá olhar para essa foto e dizer bem alto: Ô VIDA QUE VALE A PENA, POIS MINHA ALMA NUNCA É PEQUENA”.

sábado, 9 de março de 2024

SER FELIZ DEPOIS DOS SETENTA

 

A pergunta que todos fazem, inclusive eu, é: “é possível ser feliz quando a idade já se representa por um número tão grande? Como? É bem provável que não haja uma resposta única, cada pessoa é um livro de muitas páginas, cada um tem uma história de vida e toda vida é plena de amores e de dores. Então, o que podemos fazer para chegarmos o mais próximo possível da felicidade? Tenho convicção de que a felicidade é constituída de fragmentos, e instantes. E instante feliz, segundo o Professor Clóvis de Barros, é aquele que a gente não quer que acabe. Mas ele acaba. Podemos mudar a pergunta, já que perguntar não ofende. O que podemos fazer para diminuirmos nossos momentos infelizes, aqueles que gostaríamos que acabasse logo?

 

Não sou um Leonardo Orr, nem mesmo sou psicólogo, sou apenas um impertinente aprendiz metido a escritor, mas tenho também minha lista de possibilidades para realizar nosso propósito, segundo o Dalai Lama, de buscar a felicidade. Quem sabe, chegar até ela, mesmo que por uns momentos que não gostaríamos que acabasse. Ou, pelo menos, que eu possa dizer, parodiando o Chaves, “sou feliz por querer querendo”. Esse personagem adorado pelos meus filhos em seus tempos de criança ajudou-me a construir meu mantra: “sou feliz por opção, sou bem humorado por precisão”. Assim me preparo para viver mais um dia.

Na verdade, apesar de querer ser feliz ser uma ótima opção, uma opção fugaz como a chama de uma vela, é bom termos outros propósitos combinados, aqueles que, além de nos ajudar a ser felizes, permite que deixemos um legado mais duradouro. E o meu é escrever, publicar e vender minhas histórias. Ou pelo menos ter alguém que as leia ou as ouça. É por isso que levanto disposto todos os dias. E sigo a minha cartilha, aquela que construí para me ajudar a realizar a opção de ser feliz. Vamos a ela.

1.     Faça as pazes com suas origens

Talvez a sua concepção não tenha sido aquele momento de amor romântico entre seu pai e sua mãe; talvez o seu nascimento não tenha sido aquela alegria. É possível que tenha sofrido. Todos nós sofremos ao nascer, alguns mais que outros, por variadas razões. Talvez sua infância não tenha sido feliz como todas as infâncias deveriam ser; talvez os seus pais não tenham tido muito tempo para acarinhar você. A minha infância foi assim, bem cuidada, mas muito pouco acarinhada. Mas, e daí, cara? Você está vivo! Seus pais fizeram o melhor que puderam. E não poderiam dar o que talvez não tenham tido. Então, supere e ressignifique. Dê um abraço neles e agradeça a eles por lhe darem a vida. A vida é o bem mais precioso, e você faz parte dela. Dê um desconto, ame-os e ame os seus familiares e seus amigos.

2.     Pare de pensar e de falar desgraças

Lá pelos anos oitenta, não me lembro exatamente quando, assisti uma mesa redonda em um congresso sobre poesia e ouvi o conhecido letrista José Carlos Capinam falar que enquanto ele escrevia letras tristes e melancólicas, sua vida era um desastre. Um belo dia decidiu mudar o tom de suas letras. Passou a escrever sobre a alegria de viver e sobre o amor. Sua vida mudou de água a vinho. Ele se tornou outra pessoa. Depois daquele dia tomei a mesma atitude. Foi quando optei por ser feliz por querer. Nós somos o que pensamos e falamos. Se pensarmos em coisas boas, coisas boas acontecerão. Então, pare de pensar e de falar em desgraças e veja você mesmo!

3.     Mude para continuar

Há pessoas que fazem todos os dias as mesmas coisas. A rotina tem suas vantagens, lógico. Uma delas é que você passa a fazer tudo no piloto automático. Ao se levantar seus sapatos estão exatamente onde os deixou. A mesma coisa com os óculos e com sua xícara favorita para o café da manhã. O problema surge quando algum desavisado troca suas coisas de lugar. Aí vem o pânico, acompanhado da tristeza por pensar que alguém está lhe boicotando. É preciso saber mudar para continuar seguindo em frente. Mude os hábitos, mude os caminhos por onde passa, mude as rotinas de vez em quando. Ligue as antenas do cérebro e sorria quando não encontrar alguma coisa. Coisas não mudam de lugar sozinhas. Não as encontrar é uma ótima oportunidade de fazer diferente.

4.     Aprenda coisas novas

Tenho amigos, até mais jovem que eu, que costumam dizer que a essa altura de suas vidas não querem aprender mais nada. Que desperdício! Alguém que pensa assim, acredita também que não tem mais nenhuma contribuição a dar às pessoas de seu entorno e ao mundo. Está a um passo curto da decrepitude e da demência. E, em consequência, da infelicidade. Pois saiba que aprender coisas novas, seja uma arte ou uma técnica, trás você de volta ao plano da utilidade. Pois é tão bom ser útil de alguma forma! Então, aprenda a plantar flores, aprenda a escrever trovas, aprenda a fazer carrinhos de rolimã, aprenda a fazer arte com produtos recicláveis. Aprenda a falar espanhol e pense em visitar os países vizinhos. Por que não?

5.     Escreva um diário

É isso mesmo. Arranje um caderno com a capa bonita e, todos os dias, ao se levantar, escreva umas páginas com suas lembranças do dia anterior e seus sonhos à noite. Esta prática é excelente para a memória, é excelente para exorcizar seus medos e suas angústias e ainda o ajuda a melhorar sua escrita e sua oratória. A escrita o ensina a procurar palavras novas para seu vocabulário e o torna uma pessoa interessante em uma roda de conversa. O diário não é para as pessoas lerem, ele é altamente confidencial. O meu diário fica na estante e está escrito na capa, em letras grandes: “se quer saber algo de mim, pergunte-me em vez de ler meu diário”.

6.     Fique longe do Alzheimer

Muitas pessoas que, geneticamente, são propensas a terem Alzheimer, conseguem ficar longe dele com práticas cotidianas bem simples. Uma delas é a leitura que, além de melhorar seu vocabulário e ajudá-lo na escrita e na oratória, ajuda também a manter a memória ativa. Outra atividade incrível para o cérebro é, acreditem, a musculação, a ginástica para os músculos, principalmente das pernas. Pesquisas recentes nas universidades mostram que o exercício muscular ajuda a liberar nutrientes que fortalecem o cérebro. Então, vamos malhar?

7.     Faça algo que nunca fez

Cada um tem dentro de si uma vontade de fazer algo que deixou para trás, como conhecer um lugar onde nunca foi, comer em um restaurante caro uma comida que sempre quis comer, nadar pelado em uma cachoeira escondida, rever uma pessoa que conheceu há muitos anos e nunca mais viu. Que tal, então, fazer algo que sempre teve vontade, nunca fez, e lhe daria um enorme prazer em fazê-lo? Eu sempre quis escalar uma montanha bem alta e só havia escalado montanhas menores. Um belo dia, em uma estrada no Chile, alguém me disse que do alto de certa montanha, de dois mil metros, se avistava uma bela paisagem. Não tive dúvidas. Parei o carro e a escalei. Quatro horas depois, desceu o cara mais feliz do mundo: eu.

8.     Respire de forma consciente

Parece brincadeira, de tão fácil. Mas tem gente que não consegue parar e respirar profunda e tranquilamente. Respirar não é apenas o que nos mantém vivos. Respirar com consciência pode melhorar nossa saúde física e mental. Porque ela nos conecta com o presente, com o agora. Tira de nossa mente pensamentos inadequados. E basta sentar confortavelmente e respirar testemunhando o ar entrando e saindo de suas narinas. Se quiser se aperfeiçoar em técnicas de respiração, há várias na literatura que nos ensina como respirar para nos melhorar em situações diferentes.

9.     Abandone sua ignorância

Ignorância é ausência de conhecimento. Todos somos ignorantes em muitas coisas as quais desconhecemos. Abandonar a ignorância é estar sempre em busca de novos conhecimentos. Mas pode ser um pouco mais que isso. Além de abandonar a ignorância você pode também cultivar sua sabedoria, que é usar o conhecimento adquirido para fazer bem ao outro e à sociedade. Nada mais portador de felicidade que ser útil. Sempre digo às pessoas tristes para sair e ajudar alguém. Faz um bem danado.

10. Agradeça

Agradeça o que tem em mãos e esqueça a grama e o cônjuge do(a) vizinho(a). Eles podem ser mais bonitos que os que tem em casa, mas culpa é sua. Por que não cuida de sua vida e embeleza o que tem? Agradecer é atrair o melhor do mundo para dentro de você.

Já estava para terminar esse texto quando entrei no sítio internet de um dicionário bem útil (https://www.dicio.com.br). No fim da primeira página tem uma indicação da palavra do dia. Faço isso para aprender palavras novas e usá-las principalmente em microcontos que escrevo diariamente. É um excelente exercício para desenvolvimento da escrita. E qual a palavra do dia de hoje?

INFAUSTO: desafortunado, azarento.

Aquele que expressa ou carrega a infelicidade.

 

O que escolhe ser, a partir de hoje? Um ser humano fausto ou infausto?

 


terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

E SE O FIM FOR AMANHÃ?

  

— Pai, você está pronto para morrer?

— Sim, estou pronto. Minha vida foi rica, gostei de tudo que eu fiz. Quando minha hora chegar, irei feliz.

— Então, nem irei chorar quando você morrer.

Por incrível que pareça, o diálogo acima aconteceu. Meu pai havia se recuperado de uma cirurgia para a retirada de um tumor no intestino e se preparava para uma segunda cirurgia, pois um segundo tumor havia surgido. Era domingo e, como muitas vezes aconteceu nos anos finais de sua vida, eu fui almoçar com ele. Estávamos sentados em torno de uma mesa no quintal, próximo à janela da cozinha através da qual minha mãe nos passava alguns tira-gostos, porque ele não dispensava sua cachacinha “para abrir o apetite” nos almoços dominicais. Só nós três em casa, então o diálogo sobre a morte foi surgindo devagarinho. Como ele não se furtava a responder o que eu perguntava, o diálogo foi crescendo.

Não chorei em sua morte, mas a partir desse diálogo teve início minha jornada de preparação interna para o seu dia final, que aconteceu meses depois da tal segunda cirurgia. Essa preparação interna me permitiu cuidar dele em seu estado terminal e estar presente em seu último suspiro, com o dedo em seu pescoço sentindo a última pulsação de sua artéria. Era um trinta e um de dezembro e, nesse dia, quando perguntado sobre o que eu faria naquela noite festiva, eu disse à minha companheira:

— Irei ficar com meu pai, pois ele morre hoje.

— Como você sabe?

— Eu sei, ele me disse.

Sim, meu pai havia se preparado para sua própria morte em vários detalhes. Nos oito meses de agonia e dor entre o fracasso da segunda cirurgia, em abril, até o dia de seu falecimento, em dezembro, ele teve uma palavra de aconselhamento e de alegria para cada pessoa que o visitou, principalmente para seus nove filhos. Sua preparação se estendeu até aos detalhes práticos do sepultamento. Caixão, carro funerário, cerimonial com livro de presença e uma moça bonita cuidando de tudo no velório. Tudo previamente pago.

Em minha jornada de preparação para a morte e a morte de meu pai vivi várias experiências diferentes. Todas elas com o mesmo foco, o de querer entender a morte e não sofrer com ela. Li vários livros sobre a morte (entre eles A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver, de Ana Claudia Quintana Arantes; As Intermitências da Morte, de José Saramago; e Pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião), frequentei Centros Espíritas e Terreiros de Umbanda, tive uma conversa séria com o Preto Velho, que durou mais de uma hora, para desespero dos presentes. Mas foi em um banho de mar que tive a resposta procurada.

Trôpego no fundo do mar entrei.
Na dança com golfinhos solicitei
à vida, em ciclos, que ele viva
sua morte que chega, ativa.

A partir desse mergulho eu tive serenidade para escutar sua voz que sumia, falar palavras de aconchego, narrar histórias que o conduziam a algumas viagens imaginárias a lugares desconhecidos, ou conhecidos, e estar presente nos momentos de cuidado.

E quanto à minha morte? Ela vem, cada dia que passa mais se aproxima. Já vivi experiências de risco, como um ônibus, na contramão, surgindo em minha frente em uma curva e eu tive poucos segundos para reagir e sair de sua frente e assistir, pelo retrovisor, sua colisão com o veículo de trás. Ou quando um barranco, em tempos de chuva, caiu atrás de meu carro, um segundo após minha passagem. Ou quando um caminhão sem freio em uma descida forte veio em minha direção e o motorista, ao me ver a pé na estrada, o jogou no barranco bem a meu lado. Estes sustos sempre nos deixam em alerta e nos fazem pensar em viver dias melhores.

Hoje, consultando meus arquivos, verifiquei que já escrevi muito sobre a morte, mas a morte como passagem, pois ela não é oposição à vida. A morte é apenas uma mudança de ciclo, ou uma mudança de fase dos jogos de vídeo game. Ela vem, sim, mas em forma de poesia.

 

A poesia existe
para nos fazer eternos:
enfrentar o mistério da morte
compreender o trágico da vida.
Registros de humanidades.

 

Mas, fica sempre a pergunta: e se o fim for amanhã? O meu fim, especificamente?

Um fandango nem sempre pensa na morte
nem espera sentado por ela.
Ele sonha com a vida, curte suas incertezas
para se lembrar da certeza do fim!

 

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

ENTRE MEMÓRIAS E ESQUECIMENTOS

 

Depois dos sessenta anos, memória e esquecimento travam uma luta ferrenha. Cada um querendo a primazia da ocupação dos espaços da mente. Já que o esquecimento ganha quase sempre podemos, pelo menos, discernir sobre o que esquecer e o que lembrar. Esquecemos, então, datas de aniversários, da hora de fazer pequenas e desimportantes coisas, do local onde o carro está estacionado, onde ficaram os óculos, a mochila, o tênis para a caminhada, o chapéu, etc. E quem mandou bater o portão sem se certificar que a chave da casa está no bolso? Como entramos em casa agora? Melhor se lembrar do tradicional bom humor, muito útil nessas horas. Depois dos sessenta, que razões para perder o bom humor? Tanta coisa para esquecer!

Jordelina, hoje com quase cem anos, começou a fazer teatro aos setenta. Algo escondido dentro dela, tanto tempo adormecido e que, de repente, brota em seu coração como roseira que esconde espinhos nas folhagens e mostra sua beleza a quem vê perfumes e cheira mistérios. Assim como disse Conceição Evaristo, a escritora, começou a se sentir viva aos setenta anos: “Nunca somos novas demais nem velhas demais para nada”.

Todos os mistérios vêm das sombras,
é na penumbra que nos desnudamos.
Tom pastel dos silêncios
brinca na memória dos bem vividos.

Moradora em uma cidade da região metropolitana, três vezes por semana tomava o ônibus que a conduzia à capital para ensaiar com seu grupo de teatro, todos os atores e atrizes já cheios de experiência de vida. O auge de Jordelina atriz foi na peça Morte e Vida Severina, baseado em obra de João Cabral de Melo Neto. Jordelina, mais de oitenta, brilhou. Cantou, dançou, representou provavelmente muitas das mazelas de sua própria vida. O grupo atuou em hospitais de crianças, em casas de repouso, em presídios até que foram convidados para atuarem em um grande teatro da capital. Eu estava lá, nos bastidores, porque me intrigava o fato de Jordelina estar quase surda. Como ela fazia para nunca perder a hora de entrar no palco, a hora de soltar a voz? Foi aí que entendi. Ela decorava a peça inteira e ficava na porta de entrada do palco observando e repetindo baixinho as falas dos atores e atrizes que estavam no palco. Assim não perdia sua vez.

Imagens são como sombras:

guardiãs de nossa memória

e de nosso medo da morte.

 Infelizmente, o grupo de teatro de atores e atrizes com “data de nascimento avançada” foi dissolvido pelos produtores, o diretor de cena demitido e as pessoas aconselhadas a irem para casa, como se mambembes fossem. O que fazer com aquele fogo na alma tanto tempo escondido e tardiamente aberto para todas as ardências de uma viva reconstruída? A depressão tomou conta de Jordelina, a solidão adquiriu dimensões devastadoras, as pernas de bailarina foram sendo tomadas pelas artroses, o esquecimento foi chegando devagarinho. A pandemia botou uma pá de gelo no que sobrou daquelas labaredas ainda insistentes.

Logo depois do Ano Novo deste ano de 2024, Jordelina recebeu a visita da neta e de alguns de seus bisnetos. Como vieram de longe, ficaram por alguns dias.

— Quem são essas pessoas que se instalaram em minha casa? Que crianças barulhentas e inquietas?

A memória dela, ausente, se juntou à quase ausência de sua audição. Jordelina, no entanto, continua contando causos, basta alguns ouvidos atentos se postarem em sua frente. Lembra da infância, dos tempos de juventude quando morou na capital. Na verdade, lembra-se de todos os momentos felizes de sua vida, aqueles mais antigos, menos dos tempos de teatro, os mais felizes de sua vida. Não teve diagnóstico de Alzheimer, apenas de perda continuada de memória.

Nossa memória é banco de dados
armazenados para quando tomarmos um vinho
diante do fogo das reminiscências.

Certo dia, uma de suas bisnetas, Maria, de uns cinco ou seis anos, sentou-se em sua frente e começou a fazer perguntas. Ela não as respondia, exatamente, mas contava causos que a menina ouvia atentamente. E Maria respondia com outros causos de sua curta existência, cheia de personagens das histórias que ouvia de seus pais. Foi um diálogo, fragmentado, maravilhoso entre duas pessoas com uma diferença de idade de mais de noventa anos, registrado apenas pelos olhares dos presentes admirados.

Maria voltou com seus pais para sua casa distante. Jordelina sempre pergunta por ela: — Cadê Maria? O avô de Maria, filho de Jordelina, recebe um telefonema da filha, dizendo que chegou bem e a anciã vê os bisnetos pela chamada de vídeo do aparelho celular. De quem ela se lembra? — Olha, é Maria.

Esquecer é sobreviver: lembrar?
O futuro começa
no instante depois do verso
no primeiro beijo depois do encontro
na estória que se conta agora.




quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

NEM BRANCO NEM PRETO

A vida sempre foi colorida, nunca em preto e branco. Olho de minha janela e vejo as montanhas em verde, os telhados das casas em marrom, as paredes multicoloridas com suas janelas em branco, ou azul. Em meu jardim vejo muito verde, cor natural da vegetação, com flores em cores tão diversas que fica a impressão que algumas acabaram de ser inventadas na paleta de cores do universo.

Algumas tribos da Amazônia têm trinta e duas palavras diferentes para identificarem os diversos tons de verde das matas. Coincidências à parte, os povos das planícies siberianas chinesas também têm trinta e duas palavras diferentes para distinguirem os diferentes tons de branco.

Então, por quê reduzir a cor da pele dos seres humanos em apenas quatro palavras: branco, preto, pardo e amarelo? Amarelo? Quem é amarelo? Amarela é minha roseira em flor. Quando a jovem recenseadora do IBGE me perguntou com qual dessas cores me identifico, respondi: — verde é minha cor na terra e azul quando estou voando. Sou preto na sombra e descolorido dentro d’água. — Essas cores não podem, não constam do formulário. — Então, sou pardo, ou “cor de burro fugindo”.

Meu avô paterno era branco, de cabelos claros e olhos azuis. Casou-se com uma mulher indígena filha de um português. Tiveram mais filhos brancos que pardos ou amarelos. Não conheci meus avós maternos. Minha mãe não nos falava sobre eles, pois foi criada por terceiros, muitos terceiros diferentes. Ela tem a pele clara, mas escolheu casar-se com um homem de pele clara porque, segundo ela, não queria ter filhos com cabelos crespos. Ledo engano. Entre seus nove filhos, sete têm os cabelos crespos.

Em minha casa era assim, o Brasil inteiro é assim. O racismo está entranhado na cultura. A cor da cultura familiar não é a cor dos ancestrais, mas a cor dos chefes das famílias. Branca, portanto. Só mais tarde na vida é que podemos fazer outras escolhas, inclusive que cor podemos dar a nosso passado e à nossa cultura. Amadurecer e envelhecer nos permite ressignificar o passado. Minha mãe não me deixava namorar moças pretas. Hoje frequento terreiros de umbanda e candomblé, tenho amigos quilombolas e participo de ambientes culturais das comunidades negras. Com isso posso afirmar: nossa cultura é preta e indígena, o Brasil é mais preto que branco. Minas Gerais, um estado com a aparência de uma cabeça, tem a cara preta. É o IBGE quem afirma isso.


O QUE ESPERAR PARA 2024, VOVÔ?

Todos os finais de ano e início do ano novo as histórias se repetem. Sempre queremos algo novo, perspectivas novas, alegrias novas: desejos que quase nunca são satisfeitos, porque a mesmice reaparece depois da Folia de Reis. Retiram-se as luzes extras colocadas nas praças, as vitrines das lojas readquirem seu aspecto anterior. O que muda é o barulho das ruas, agora com os ensaios exaustivos das escolas de samba e dos blocos de carnaval que cresceram como pragas (muitos gostam) pelo Brasil afora. Depois do Ano Novo, espera-se o Carnaval chegar. E quem sabe a vida volta ao normal de antes. Mas as nossas esperanças permanecem. Ainda bem.

Para o ano novo, desejo:
— que o tempo não se meta
na vida dos amantes.
Nem dos velhos.

 

Principalmente dos amantes idosos e das amantes idosas. De todos os gêneros. Afinal, o que todos desejam, por direito adquirido, é viver, amar, aprender e deixar um legado. Frase que, originalmente publicada em inglês, carrega uma sonoridade maravilhosa (live, love, learn, and leave a legacy) todas com a letra l.[i] É exatamente o que nós, pessoas idosas, também queremos para nossas vidas: viver em paz, dar e receber amor, ainda aprender e cuidar daquilo que queremos deixar para as gerações futuras, muito além dos patrimônios materiais.

— Que o sofrimento não atemorize corpos.
Que morte chegue suave
aos doentes terminais,
ao som dos Beatles.

 

Sim, um dia ela vem. Para todos. Tive a honra de acompanhar o meu pai durante o período crítico de sua vida, justamente na terminalidade dela. Foi um dos maiores aprendizados que tive ao longo de minha existência. E dele também. Eu, amante dos Beatles, usei a música dos rapazes de Liverpool como trilha sonora, principalmente Yelow Submarine. Mas poderia ser outra música. Trilhas sonoras são colocadas a gosto do diretor de cena, sempre com o intuito de, através da emoção, sugerir novos olhares.

— Que a luz dos olhos de minha morena
brilhe como faróis em tempestades
e enxergue bem longe.
Guiando. Como sempre.

 

É o que a gente sempre espera das mulheres: que elas iluminem nossas vidas e nos guiem nos principais momentos de tomada de decisões. O que devemos fazer é criar as condições necessárias para que elas exerçam seus poderes de magia com alegria e serenidade. O que todo homem deve almejar na vida é uma parceira, ou um parceiro, feliz. Porque a felicidade se expande, seduz e atrai outras pessoas felizes.

— Que ninguém perceba o negro pela cor,
mas:
Pela beleza intrínseca. 
Pela inteligência tão normal de qualquer cor.

 

O racismo ainda está longe de deixar de existir. Ele é estrutural em nossa sociedade, ainda escravocrata. Algumas mudanças começam a acontecer através de algumas redes de comunicação. Nunca vimos tantas pessoas pretas nas telas de televisão brasileiras, tanto nas novelas e séries quanto na publicidade. Antes eu pensava que algumas coisas eram privilégios de brancos: comprar um imóvel, por exemplo. Outras ainda são. Ser atendido com dignidade nos serviços de saúde ainda é diferenciado pela cor da pele. Gostaria que toda pessoa idosa preta fosse vista, e atendida, com alegria nos olhos, pois ela trás a sabedoria dos ancestrais, sabedoria adquirida no sofrimento da vida.

— Que a indignação não desapareça
dos semblantes éticos.
São poucos.
Precisam crescer como pragas boas.

Só a indignação pode levar à frente um projeto de verdadeira mudança no caos da vida. Porque as pessoas se acomodam e começam a acreditar que é normal o sofrimento, é normal a dor do outro, é normal a luta anormal empreendida pela maioria. O que nos salva é nossa indignação.

— Que a vida, 
e a alegria de viver,
sempre renasça no sorriso das helenas,
tão pequenas, serenas.

Nossas esperanças sempre são colocadas nos ombros de nossas crianças. Sempre colocamos em questão que mundo deixaremos para elas, mas precisamos pensar também em que crianças queremos que cresçam em nosso mundo. Se temos a mínima ideia do que queremos para o mundo e para elas no futuro, coloquemos todas as nossas fichas na educação delas. Qualquer gasto com a educação é pouco, porque educação tem que ser analisada como investimento para o futuro, não como gasto.

— Que a minha poesia sobreviva
a minhas botas e a minhas luvas
(creio ser melhor poeta que boxeador)
e meu bom humor permaneça
além das memórias.

Botas e luvas são símbolos de minha trajetória e de minha luta nesses mais de setenta anos em que permaneço neste planeta. Já caminhei muito e já dei muita porrada na vida (ambos literal e metaforicamente). Foi pouco? Deveria ter feito mais? Perguntas sem respostas adequadas. Briguei muito para ter acesso àqueles quatro direitos fundamentais de todo ser humano: viver, aprender, amar e deixar um legado. Porque a indignação permanece. Porque vi o mundo mudar tanto e tão pouco ao mesmo tempo. Fisicamente tanto, mentalmente e espiritualmente tão pouco.

Que venha um ano novo com renovadas esperanças, porque esta não morre, segundo o ditado popular.



[i] Covey, Stephen R.; Merril, A. Roger; Merril, Rebecca R. First Things First: To Live, to Love, to Learn, to Leave a Legacy. New York, Francis Covey Co, 1996.

 

 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O NOVEMBRO AZUL E NOSSAS ESCOLHAS

O Instituto Nacional do Câncer (INCA), órgão do Ministério da Saúde, estima mais de 70 mil novos casos de câncer de próstata, no Brasil, para o triênio 2023-2025. Este número representa 10,2% do total de novos casos de câncer esperados para o período. Um exagero.

O câncer de próstata é o segundo tipo de câncer mais comum em homens no Brasil, atrás apenas do câncer de pele não melanoma. A incidência é maior em homens com mais de 65 anos, sendo raro antes dos 40 anos. Por isso, os médicos consideram que a prevenção deve ter início nessa faixa etária, em torno dos 40 anos.

O diagnóstico precoce é essencial para o tratamento eficaz do câncer de próstata. O exame de toque retal é o método mais recomendado para a detecção do câncer em estágio inicial. O PSA (antígeno prostático específico) é outro exame que pode ser usado para o diagnóstico, mas não é tão preciso quanto o toque retal.

E por que os homens são tão resistentes ao exame clínico, o famoso toque retal? Meu pai teve uma prostatite aos 50 e poucos anos. A prostatite é uma inflamação na próstata, bacteriana ou não, tratada com medicamentos. Mas isso acendeu a luz amarela para ele. Machão e valentão que era, teve que se render aos cuidados de um urologista.

Pensa que morte

É só choro e sofisma?

Pensa errado!

(Paulo Cezar S. Ventura – “Haicais do Riobaldo”)

Ele se tratou e passou a colocar a atividade física em sua rotina diária. Por sorte não bebia além de sua dose diária, nem fumava. Começou a nadar, lembrando seus tempos de juventude morando em beira de rio, depois descobriu a dança. Frequentava, quase diariamente, as casas de dança com horários dedicados às pessoas idosas. Ele rejuvenesceu alguns anos. Faleceu aos 85, com sequelas de um outro tipo de câncer, o do intestino.

Voltando aos dados do INCA, algumas questões sobre as causas do câncer de próstata nos chamam a atenção. Em primeiro lugar, lógico, a idade. O câncer de próstata aparece mais em homens idosos. Mas, podemos envelhecer sem adoecer. Envelhecer é uma dádiva, com cuidados especiais à nossa própria pessoa fica melhor ainda. Eu, particularmente, não espero novembro chegar para me cuidar. Em fevereiro, mês de meu aniversário, dou-me de presente um checkup completo, incluindo o exame PSA, que se mantém estável há décadas, e o toque retal.

O segundo fator de risco é o histórico familiar. Se entre seus ancestrais, ou parentes mais velhos, há uma incidência de problemas na próstata, não deixe de se cuidar. O terceiro fator é a obesidade. Aquela história de que sua cintura deve ter menos de 1 metro é verdadeira. Na realidade, divida a medida de sua cintura pela medida de seu quadril, se o resultado for maior que 0,9, cuide-se. Sua barriga não pode ser maior que seu traseiro. Pessoas magras tem menos problemas de saúde que as obesas e vivem mais. Nunca vi um centenário obeso.

O quarto fator de risco é a alimentação rica em gorduras e carnes vermelhas. Se você é adepto daquele churrasco de picanha gorda todo fim de semana, atenção. Até pode ser, mas precisa colorir o prato em várias cores durante a semana. Todo prazer tem seu custo. Além do prato colorido, que tal uma caminhada, aqueles 10.000 passos diários? A inatividade física é o quinto fator de risco para esta e outras doenças, não apenas dos homens.

O sexto fator de risco é curioso e um tanto complicado em um país tão racista como o nosso: a cor da pele. Os homens negros (pretos e pardos) correm maior risco (mais de 50% a mais) de contrair câncer de próstata que homens brancos. As causas ainda não são bem conhecidas, mas sabemos bem que as condições de vida da população negra, no Brasil, são bem piores, em média, que as da população branca. Logo, os fatores ambientais superam, no caso, os fatores genéticos. Há ainda um fator hormonal. Os níveis de testosterona são mais altos nos homens negros. E esse hormônio masculino pode estar relacionado ao desenvolvimento de câncer, não só de próstata, segundo pesquisas mais recentes. Logo, homens pardos e pretos, precisamos ser duplamente cuidadosos.

O mês de novembro, ainda primavera, mas com temperaturas se elevando aos poucos, tem o céu às vezes azul, às vezes cinza, já que as chuvas são frequentes nesta data. Neste ano as previsões climáticas são turbulentas. No caso de nossa saúde, no entanto, temos escolhas. O novembro pode ser azul para as prevenções necessárias ao diagnóstico e tratamento do câncer de próstata. As escolhas são de duas naturezas: individual e social.

As escolhas individuais são mais óbvias e já muito comentadas no Portal do Envelhecimento. A prevenção individual nos coloca frente a escolhas que fazemos em relação ao nosso modo de vida. Manter um peso saudável, muito embora a obesidade seja também uma questão de saúde pública. Comer comida de verdade, seguindo uma dieta saudável, evitando produtos industrializados, é fundamental. Além de ser um fator importantíssimo na prevenção, ajuda a manter-se magro. Outras escolhas muito importantes são a atividade física regular, uso moderado ou nulo de bebidas alcóolicas e a ausência do fumo em sua rotina.

Já as escolhas coletivas, ou sociais, são as mais importantes e necessárias a serem feitas, e passam pelo poder público. Em artigo publicado recentemente neste Portal, em outubro passado, já coloca a prevenção como importante estratégia de controle do câncer (https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/prevencao-e-a-estrategia-de-controle-mais-eficiente-para-a-epidemia-de-cancer/).

Algo que ainda não aprendemos, e precisamos fazê-lo forçosa e rapidamente, é que a prevenção é muito mais barata que os tratamentos contra o câncer. No Brasil, e em vários outros países, o gasto público com o atendimento especializado é muitas vezes maior que o gasto com a prevenção. Especializamo-nos cada vez mais no combate às doenças e menos aos cuidados preventivos da saúde. E a prevenção se faz com informação, com educação, com letramento nas questões de saúde e prevenção, com fácil acesso às unidades básicas de saúde, com melhores condições ambientais de vida e trabalho, principalmente para a população negra e pobre.

Só assim nossos futuros NOVEMBROS serão AZUIS.

O viver, mesmo,

É o aprender a viver.

Isso é mesmo.

(Paulo Cezar S. Ventura – “Haicais do Riobaldo”)


Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)

 

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