sábado, 27 de agosto de 2022

EM MEIO AO REDEMOINHO

O redemoinho estava lá, no meio do caminho. Um vento esquisito o criara, assim, do nada. Saulo, caminhante atento naquela região do cerrado, sabia perfeitamente que aquele evento seria comum em sua trajetória. O clima seco da região àquela época do ano, mais a brisa que soprava vindo das veredas ainda resistentes, favorecia a formação do redemoinho. O povo da região sugeria cuidado porque também era comum o diabo surgir no meio dele.

Os relatos dos moradores, supersticiosos, informavam que o diabo costumava transitar e surgir no meio daqueles redemoinhos. O diabo é ótimo negociante. Sua intenção, ao surgir do nada, era aproveitar dos medos e dos desejos dos caminhantes e negociar suas almas. Assim surgiam violeiros especialistas na moda de viola de um dia para o outro. Todo violeiro sabe disso.

O violeiro Paulo Freire tem uma música em que ele narra como isso é feito. Perguntado se ele havia feito o pacto com o demo, ele diz que não. Seus ouvintes sabem, no entanto, que ele ficou dez anos aprendendo a viola caipira com os violeiros do Mucuri. Saulo, que já o ouviu, diz que ele faria uma bela dupla com o Trindade, personagem famoso de outras paradas, do Pantanal.

Saulo, não era da viola, era da caneta. Se o diabo aparecesse naquele redemoinho, ele bem seria capaz de um pacto. Queria escrever o conto perfeito, o poema épico, ou o romance ganhador do Jabuti. O capeta, entretanto, não apareceu. A narrativa perfeita, que encantaria os leitores, só acontecerá com muito esforço, sem pacto. Pelo menos manterá sua alma e sua calma no interior de si, como estava.

Em vez de pactos, ele precisaria enfrentar seus problemas cotidianos. Considerava a necessidade de sempre se segurar nos rabos de foguetes que surgiam no céu do seu cotidiano. Era ali que deveria fazer a gestão de seus medos e desejos, e transformar seus medos em coragem nem que fosse de susto, o mesmo susto em frente ao redemoinho de antes.

Morador de montanhas, o trabalho com suas canetadas surge durante escaladas reais e imaginárias. Subir e descer serra sempre o ajuda a criar frases bonitas, rimas coloridas e personagens simples e fortes. Como no dia em que surgiu em sua frente, no meio da subida de uma serra, uma jaguatirica, ou oncinha pintada. Chegou até a pensar que seria o capeta travestido de animal que pudesse realizar seus desejos em troca da alma. Estava mesmo disposto a negociar se fosse o caso. Ficou parado, olhando o bicho que também o olhou com olhos luminosos.

A jaguatirica, no entanto, desviou o caminho e desapareceu na mata. A única coisa a fazer foi acrescentar o evento em suas narrativas, em suas histórias. Nesta região, redemoinhos não são comuns como no cerrado. As montanhas provocam as pessoas de outras maneiras, e as lendas tomam outras configurações. Os ventos daqui sopram diferentemente dos ventos de lá. Em sua briga com as montanhas eles assobiam em outras notas musicais, fazendo música em outras tonalidades.

Ao subir e descer montanhas, Saulo sempre encontra corredeiras em vez de veredas, algumas pequenas cachoeiras aqui e ali. Banhos de cachoeira são permitidos. E peixes, pequenos, não nos olham como se encarnasse o diabo em seus olhares. Sem pacto com eles, apenas convivência nas águas.


terça-feira, 2 de agosto de 2022

AMAZÔNIA, ENQUANTO DURE

 

Pode-se chamar de sorte, pode-se desejar cuidado, mas uma estadia de seis meses na Amazônia, essa antes desconhecida de minha vida, foi surpresa, em primeiro lugar, mas também merecimento. São coisas que uma carreira de pesquisador pode oferecer. Poxa, seis meses neste mundo verde é uma oportunidade de ouro. Penso mesmo em conhecer essa terra onde os indígenas têm trinta e duas palavras diferentes só para diferenciar os diversos tons de verde. Já pensou nisso, quanta riqueza linguística? Trinta e duas palavras! Contei vantagens para uma amiga chinesa e ela me confidenciou: as tribos da Sibéria chinesa, gelada, têm também trinta e duas palavras para diferenciar as diversas tonalidades de branco. Coincidência, ou trinta e dois é um número cabalístico em questões de comunicação tribal?

Apenas mais um assunto para conferir in loco, porque uma viagem como essa precisa ser bem programada. E foi, no meu caso. O tempo foi curto, mas o suficiente para eu traçar um plano de viagem, um roteiro cultural além do trabalho. Pegar um barco e subir o Rio Negro até São Gabriel da Cachoeira estava em meu roteiro, lógico. Comprei uma rede nova e confortável para minhas noites no barco, mal dormidas, já sabia disso. Porque não é fácil dormir em um barco em movimento, com aquele calor úmido típico, além da paisagem, lógico.

E chega o dia marcado para a viagem mais multi transporte que já fiz. Trem, ou melhor, metrô de superfície, avião, ônibus na chegada em Manaus e depois barco, aquele esperado para subir o Rio Negro. De Brasília a Manaus a vista aérea foi a mais variada possível. O marrom e verde do cerrado (ex-cerrado, hoje agronegócio puro, que enriquece uns e empobrece outros, além da terra) vai sendo substituído aos poucos pelo verde e azul, mata e água. Apesar do desmatamento, a mata teima em sobreviver. Precisa sobreviver.

E a mata amazônica precisa sobreviver. Ela me chama como se eu fosse uma criança perdida que deixou a casa, aos sobressaltos, anos atrás. Mas, minha memória de infância, com os sonhos de meus antepassados distantes, me chama, aos sussurros de mãe abandonada que espera a volta de sua criança. Eu me perdi, no entanto. Ali, subindo os poucos degraus do barco que me conduzirá rio acima, ouvi a voz da mãe e me senti em casa. A visão daquela cachoeira cortando a montanha como faca na carne, me fez lembrar de minhas origens, como se eu já estivesse naquele lugar, como se o lamento coletivo de uma nação nativa saísse de meu peito, como se a voz fosse a minha, e meu animismo renasceu ali. Eu no meio do rio.

Hora de aprender o nheengatu, uma das línguas faladas em São Gabriel da Cachoeira, e começar a pensar como um indígena e lutar contra o mundo que só pensa no nióbio da região. Tentar impedir que a região se torne mais uma mina geral vendida às Vales da vida, com seus brumadinhos marrons nos verdes amazônicos.

Não aprendi a falar a língua, a não ser alguns sinais tão comuns aos viajantes do mundo. Pelo menos convivi com a tribo algum tempo, participei de seus rituais, fui aceito como ser humano ao modo indígena, me vesti como um deles, tomei seus chás, alguns alucinantes, participei de longas caminhadas, acampei nas beiras de rios, encontrei cobras enormes pelos caminhos, acordei com uma delas em minha rede. Na verdade, sonhei com a Cobra Grande, cuja lenda nos informa de olhos luminosos como dois faróis, pronta a engolir visitantes desavisados que se aventuram sem cuidado nas fortes corredeiras. Foi apenas susto e medo.

Quase me esqueci que eram apenas férias auto concedidas para visitar aquele mundo desconhecido que tanto me atraia. Que, apesar do desapego e da vontade, tenho algo aqui em baixo desse brasil que também me chama: uma família, um amor, alguns amigos, pessoas carentes de histórias, aquelas que devo escrever e contar ao mundo: minha história, a real e a inventada, embora eu não saiba qual delas é a real. Além disso, um livro esquecido apareceu em minha mochila e me trouxe de volta. Carl Gustav Jung e sua frase: “a análise é um experimento de laboratório e não realidade”.

Jung, seu filho da mãe. Só pra te chatear, afirmo que a realidade é um experimento da mente. Com isso quero te dizer que não dá nem para afirmar que meu relato seja uma análise de meus sonhos ou de imaginação simples e pura. Além disso, trouxe um pouco da cura da terra, em forma de música (Yube Mana Ibubu)[i]. Te peguei?

 

Não são verdades!

De incertas saudades

Pessoas-coisas são.

 Assim diria Riobaldo[ii].


[i] https://www.youtube.com/watch?v=m45EoWrlNEg (a música é dos povos Kaxinawá, que não habitam na região de São Gabriel da Cachoeira, mas fala da cura da terra.

[ii] Haicais do Riobaldo

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...