sábado, 30 de abril de 2022

MEMÓRIAS PARA DEPOIS DO ANOITECER - IV

 IV - OS OLHARES

Recuso-me a esquecer. Depois dos 60 anos, memória e esquecimento travam uma luta ferrenha. Cada um querendo a primazia da ocupação dos espaços. Já que o esquecimento ganha quase sempre, quero pelo menos discernir sobre o que esquecer e o que lembrar. Então, prefiro esquecer datas de aniversários, hora de fazer pequenas e desimportantes coisas, local onde o carro está estacionado, onde ficou a chave, os óculos, a mochila, o tênis para a caminhada, o chapéu, quem mandou bater o portão sem se certificar que a chave da casa está no bolso? Como entramos em casa agora? A procura pode ser divertida se guardamos o bom humor, e depois é só chamar o chaveiro, mesmo as duas da manhã a gente encontra um aberto. Depois dos 60, que razões para perder o humor?

Tanta coisa para esquecer, menos do sorriso, da voz, da boca no momento do beijo, da língua que passeia sorrateira pelo corpo, como uma serpente escolhendo o local onde meter o veneno, do olhar. Ah, do olhar. Que olhar. São sempre dos olhos que me lembro. Aquele olhar que me procura, assim, olhando de esquina, fingindo que não procura, não olha e não vê. Olhares da mulher amada. Não dá para esquecer.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

MEMÓRIAS PARA DEPOIS DO ANOITECER - III

 III – Passeios aleatórios em Paris

Paris não é uma cidade qualquer. Ela é indefinível. Para mim, uma das cidades mais belas que conheci. Não viajei tanto assim, talvez tenha conhecido umas mil cidades em toda minha vida, muitas delas muito bonitas, com atrações tão singulares e por isso tomam um pequeno espaço em minha memória. O fato, no entanto, é que habitei na vizinhança de Paris por uns quatro anos. E a cidade onde morei está a uns vinte quilômetros de Paris e pelo menos três vezes na semana eu a visitava por alguma razão. Para estudo, de passagem para outras cidades vizinhas, ou simplesmente a passeio, para perambular por suas ruas.

Eu e alguns amigos brasileiros elegemos um bar onde íamos tomar uma cerveja às sextas-feiras à tarde: L’Irlandais na Place de Contrescape, no Quartier Latin. Sempre o mesmo bar. E mudamos a rotina do mesmo. O proprietário contratou um garçom português só para nos servir. Isso porque consumíamos bebida e comida e só pagávamos a conta ao final. Diferente dos franceses que pagam seu consumo antes de consumi-lo.

O melhor lugar para almoçar era em um restaurante grego, também no Quartier Latin, bem próximo ao Sena e à Catedral de Notre Damme. Uma comida simples, rápida e suculenta. Deliciosa. Uma visita ao Musée d’Orsay também era obrigatória pelo menos uma vez por mês. Lá ficam expostos vários trabalhos dos Impressionistas, algo estupendo.

Nem sei quantas vezes subi a Torre Eiffel. Sempre que um brasileiro me visitava, obrigatoriamente eu deveria conduzi-lo ao alto da Torre. Por fim, eu ficava esperando em baixo, na grande praça onde ela se localiza. Ou então sentava-me na mureta à margem do Sena e ficava a admirá-lo, ou a ler.

Não conheci a cidade inteira. Paris é menor que Belo Horizonte, em área urbana, mas tem mais ou menos a mesma população. O momento chique de minhas perambulações foi chegar a Paris, vindo de Londres, de bicicleta. Outra história que deve ficar na memória para ser contada depois do anoitecer. Minha temporada em Paris rendeu-me vários acontecimentos memoráveis, será sempre um prazer contar em uma roda de conversa, ou apenas deixar registrados em relatos em forma de crônicas. Não me furtarei a contá-los em algum momento de minha vida, antes e depois do anoitecer.

 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

MEMÓRIAS PARA DEPOIS DO ANOITECER - II

II – Fotografia do nascer do sol

Saí antes do nascer do sol. O céu estava claro e uma brisa, ainda fria, soprava em minhas orelhas. Meu destino naquela aurora era a praia. Queria fotografar o nascer do sol, que geralmente vinha como uma bola gigante e quente em meio às nuvens vistas ao longe dando um colorido especial onde o céu e o mar se encontram. Minha máquina fotográfica? Uma pequena Xereta, bem menor que os atuais aparelhos celulares que transforma todos seus possuidores em fotógrafos.

Na praia, os primeiros raios luminosos demarcavam o local onde o sol iria nascer. A praia estava absolutamente deserta. Notei a presença de um pequeno barco ancorado ali onde as ondas beijam a areia. Posicionei-me em um bom local, onde poderia enquadrar o sol e o barco, conforme a regra dos terços que eu havia aprendido em leituras sobre fotografia das revistas catadas nas bancas para facilitar meu entendimento da arte.

Só faltava um barqueiro para completar o quadro, pensei. E quando acabei de pensar, um homem apareceu de um dos inúmeros becos que conduziam àquela praia, sempre movimentada com o sol mais alto. Só falta ele parar no barco no momento que o sol nascer, pensei de novo. Como dizem que quando você pensa algumas coisas acontecem, aconteceu. O homem era o barqueiro, chegou e se abaixou ao lado do barco e começou a trabalhar com o intuito de colocá-lo no mar.

No exato momento em que ele se põe a remar, a bola de fogo solar cresce, se torna gigante e o céu se avermelha. Cliques, cliques, cliques. Eu estava no lugar certo, no enquadramento perfeito, a cor era perfeita, a foto saiu perfeita. Muito boa para um aprendiz de fotografia.

Eu a perdi nas andanças da vida. A cena ficou gravada na memória. E hoje, mais de quarenta anos depois, a registro para contar depois do anoitecer. Que ela fique também depois de meu anoitecer, daqui ainda muitos anos, claro.


MEMÓRIAS PARA DEPOIS DO ANOITECER - I

I – As montanhas

Adoro montanhas. A primeira memória que me vem à cabeça são memórias de montanhas. Cordilheiras inteiras. Cresci em uma cidade montanhosa, com estradas sobe-desce, curva pra lá – curva pra cá. De fazer cidadão das planícies ter enjoos até ficar amarelo. Quando viajava para minha cidade eu podia cochilar tranquilo. Para saber se estava próximo de minha casa era só abrir um olho e olhar a montanha ao lado. Pelas curvas da montanha eu sabia se estava chegando. Se era hora de descer do ônibus. Nunca errava.

Minha casa de infância e juventude ficava em frente a mata ao pé da serra. A mata era nosso quintal e nosso esconderijo. Nossa diversão. Subi naquela serra inúmeras vezes, penetrando a mata, atravessando córregos. Ora rápido, ora devagar. Feliz, como sempre.

Mais tarde na vida subi outras montanhas. Escalei montanhas, à unha, na Serra do Cipó, para nadar em cachoeiras do alto do morro, Cheguei ao cume do Mont Blanc, nos Alpes franceses, por três vezes. Aquele clima gelado me entorpecia de emoção. Era estranho, para mim, ter um sol claro e a temperatura a menos dez graus. Em uma de minhas subidas, enquanto esperava o teleférico que me levaria da parada intermediária até o alto, eu tirei a blusa e a camisa para sentir o sol gelado nas costas. Queimava, mas de frio.

Recentemente eu subi o Mirador del Condor, no Chile. Uma montanha alta embora nem tão difícil de escalar. Sem necessidade de instrumentos, apenas as mãos e a coragem. Tenho uma foto minha levantando o punho tipo Pantera Negra. Feliz com a conquista daquela visão da outra montanha, em frente, a dos ninhos dos pássaros.

Depois de tantos movimentos pela vida, voltei às montanhas de minha cidade da infância. Agora quero encontrar tempo para subir novas montanhas. E fazer novos registros para contar ao anoitecer.


domingo, 24 de abril de 2022

VIDAS IDOSAS SEMPRE IMPORTAM

O movimento Vidas Idosas Importam agraciou-me com o diploma de Embaixador do Ano da Gerontologia. Explico, antes que me perguntem, e em poucas palavras, o que vem ser Gerontologia. Basta consultar o Google, que te conduz imediatamente ao Wikipedia. E lá está escrito o que segue:

“A Gerontologia é o campo de estudos que investiga as experiências de velhice e envelhecimento em diferentes contextos socioculturais e históricos, abrangendo aspectos do envelhecimento normal e patológico. Investiga o potencial de desenvolvimento humano associado ao curso de vida e ao processo de envelhecimento. Caracteriza-se como um campo de estudos multidisciplinar, recebendo contribuições metodológicas e conceituais da biologia, psicologia, ciências sociais e de disciplinas como a biodemografia, neuropsicologia, história, filosofia, direito, enfermagem, psicologia educacional, psicologia clínica e medicina”.

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), dos 210 milhões brasileiros, 37,7 milhões são pessoas idosas, ou seja, que têm 60 anos ou mais. Os dados são de 01 de outubro de 2021, Dia Nacional do Idoso, e fazem parte de uma pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que traz também outras estatísticas: 18,5% dessa população ainda trabalha e 75% dela contribuem para a renda de onde moram.

Os direitos dos idosos estão garantidos na Constituição Federal que, em seu Artigo 230, define que família, sociedade e Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando a sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade, promovendo seu bem-estar e garantindo o direito à vida, direitos registrados no Estatuto do Idoso, publicado em 2003.

Baseados apenas nesses registros oficiais da legislação parece que está tudo bem. Os idosos estão protegidos e não têm nada a temer. A vida do idoso seria um mar de tranquilidade se não estivéssemos no Brasil, um país onde as diferenças sociais atingem seus limites facilmente. E o que temos assistido diariamente são idosos sendo destratados e sequer ouvidas suas demandas, muito menos atendidas naquilo descrito sucintamente na legislação.

Muitos não têm onde morar ou habitam quartos sem condições sanitários, nos fundos das casas de seus parentes. Outros são destratados em locais públicos, e até mesmo seus familiares não têm a mínima paciência para a atenção ao idoso. As tristezas e amarguras dos idosos estão, muitas vezes, estampadas em seus rostos, em suas rugas, em suas doenças, muitas delas decorrentes simplesmente de um quadro depressivo.

Felizmente não é meu caso. Tenho saúde, companhia de uma pessoa amada, carinho de uma filha e dois netos, uma aposentadoria e muita disposição. Por isso me coloco à disposição da causa, como ativista através daquilo que faço melhor: escrever, contar causos, conversar com pessoas ou grupos de pessoas, fazendo da escuta tanto uma provocação quanto uma atenção especial a quem precisa de usar a voz.

Estamos na causa: VIDAS IDOSAS IMPORTAM. 

sexta-feira, 15 de abril de 2022

AINDA É UMA ROSA



Envelhecer é assim: transformar a beleza anterior em novas belezas, provocando outras formas de ver e ser visto. A rosa prestes a cair no chão do jardim ainda guarda um pouco de seu perfume, diferente do perfume de antes, mas ainda perfume. Ainda tem a essência da rosa, nascida com uma finalidade no ciclo da vida, e finalidade alcançada, tipo missão cumprida. Suas pétalas envelhecidas ainda podem ser guardadas com carinho entre folhas de um caderno, ou virar adubo no mesmo jardim onde nasceu e cresceu. Tudo tem seu tempo e seu espaço de vivência e sobrevivência.

Neste fim de semana de feriado cuido de minha mãe, bem velha. Ela perdeu sua vitalidade, sua memória e sua audição. Ocasionalmente eu a pego na cozinha mexendo nas panelas. Como não tem mais a agilidade da cozinheira que foi um dia, não a deixo trabalhar no fogão. Ela esquece chamas acesas, torneiras abertas e pode se queimar pela falta de força nas mãos para pegar peso. Sua vontade é de fazer algumas das coisas que sempre fez, como quando eu chegava em sua casa e ela ia fazer sua famosa receita de pão de queijo com o cuidado maternal. Como não dá conta fica ansiosa, sem lugar dentro de casa.

Isso me remeteu a outra questão que pode ser importante no caso. Não tenho a resposta, mas a pergunta começou a me perturbar hoje: será que se ela tivesse passatempos seria diferente? Será que se tomasse seu tempo para fazer coisas manuais, tipo tricô e crochê, ela seria menos ansiosa? As coisas que ela gostava de fazer eram conversar, sair de casa e representar no palco. Todas essas atividades ficaram prejudicadas com a idade, a paralização pela pandemia, a perda de memória e a surdez. Principalmente pela pandemia. Ficar dois anos em casa sem ter o que fazer foi terrível para ela.

Agora, pensando em meu próprio processo de envelhecimento, o que devo fazer para não acontecer o mesmo comigo? Que hobbies deveria ter para envelhecer fazendo, mesmo que a memória e outras acuidades físicas e mentais se deteriorem? Algo que eu lembre como coisa antiga quando a memória falhar. O que sei fazer bem hoje e poderei continuar fazendo quando não mais conseguir fazer outras coisas? Hora de pensar em uma lista e me aperfeiçoar nas técnicas necessárias para executá-las bem. Ou quem sabe aprender atividades novas.

O que gosto de fazer e sei fazer bem, hoje, são: ler e escrever, dar minhas palestras (embora pense que as pessoas não têm paciência para escutar os velhos), cuidar de horta e jardim, fotografar e filmar (esses quesitos me dão prazer, mas preciso me aperfeiçoar), escrever cartas para os amigos, principalmente essas. Minha companheira insiste que eu aprenda a cantar e tocar um instrumento. Talvez seja essa uma saída interessante para amadurecer: aprender música. E fazer atividades físicas, claro. Sempre fui atleta amador, mais que nunca é hora de continuar. Será que me antecipei ao problema e o resolvi? O tempo dirá.

 

SER FELIZ DEPOIS DOS SETENTA

  A pergunta que todos fazem, inclusive eu, é: “é possível ser feliz quando a idade já se representa por um número tão grande? Como? É bem p...