terça-feira, 15 de março de 2022

A DIFERENÇA ENTRE CUIDADO E CARINHO

Minha mãe tem noventa e cinco anos e precisa de acompanhantes cuidadores durante as vinte e quatro horas. Durante a semana ela tem a presença de uma funcionária contratada para os cuidados com ela e para as tarefas domésticas como faxinar a casa, cozinhar, lavar a roupa. Seu horário de trabalho é de oito até as dezessete horas, com uma hora de descanso. E à noite ela tem a presença de um neto, que mora lá e trabalha com vendas que ele faz, a maioria delas, pela internet. Durante os fins de semana, de sexta a domingo à noite, meus irmãos e eu nos revezamos nesses cuidados.

A razão dessa escrita é elucidar os dois conceitos acima considerando a nossa atividade de cuidadores de nossa mãe. Que não é fácil, mas não precisaria ser tão difícil. E é difícil falar e escrever sobre isso porque, afinal, trata-se de nossa mãe, uma velha dependente dos cuidados de outros, uma pessoa que sempre foi muito ativa, independente, inteligente, bem como manipuladora e controladora.

Nós já tivemos uma experiência de cuidadores, anos atrás, quando nosso pai ficou na cama entre abril e dezembro, quando veio a falecer. Oito meses em que cada um de nós ficava com ele durante vinte e quatro horas de cada vez. Foi uma experiência dura e ao mesmo tempo interessante. Isso porque ele aceitava a situação com muita paciência e muito carinho para com seus filhos cuidadores. Ele precisava ser medicado, lavado, ter suas roupas trocadas e ter sua bolsa de colostomia esvaziada de duas em duas horas e trocada de vez em quando. E estava fraco demais para fazer qualquer dessas coisas. Mas ele tinha um carinho no olhar, nas palavras e nos gestos. Foi uma experiência e tanto.

Pensávamos, então, que cuidar de nossa mãe, que não tem problemas de saúde, toma poucos remédios com hora marcada, caminha com a ajuda de uma muleta, come com as próprias mãos, e faz sozinha outras atividades, seria muito mais fácil. Ledo engano. Nossa mãe não é mais ativa, é agora dependente, mas continua inteligente, manipuladora e controladora. Vê defeito em tudo e não tem nem um pouco de carinho para com seus cuidadores. E isso faz a tarefa de cuidar dela ser muito pesada.

Minha mãe não teve uma vida fácil. Nasceu e morava na roça, seus pais viviam da colheita e, aos seis anos foi morar na cidade para estudar e nunca mais voltou. Na cidade ela morou em várias casas onde trabalhava para comer e ir à escola. Foi muito maltratada até encontrar uma família que a recebeu com um pouco mais de atenção e cuidado, mas, embora ela sempre negue, eu não acredito que essa família a tenha tratado com carinho. Ela, parece-me, não recebeu muito carinho na vida. Casou-se com meu pai aos vinte e seis anos, um homem machista, centralizador que também cuidou bem dela, mas eu assisti a poucas cenas de carinho entre os dois. Mas era o que ela tinha. Para quem nunca recebeu carinho, aquele pouco carinho estava bom para ela. Acredito que isso justifique a falta de carinho dela com a gente, seus filhos.

Esse assunto tem surgido entre alguns de nós, eu e uma irmã especificamente. No último fim de semana foi minha vez de cuidar. E eu me interrogava porque eu sempre fico muito cansado com esse ato de cuidar, e não deveria. Porque é fazer mais ou menos as mesmas coisas que eu faço em casa: cuidar de alguém, cuidar de minha casa, cozinhar, servir, etc. E porque eu fico tão cansado? Pior, com certa culpa por isso, um sentimento de culpa por ficar nervoso e quando volto para casa no domingo à noite eu fico sem dormir direito. E na segunda-feira tenho que dar um tempo para me recompor psicologicamente.

Foi então que me veio à cabeça uma resposta: existe uma diferença nada sutil entre cuidado e carinho. O cuidado pode ser unidirecional. Um cuida de outro que não cuida de um. Alguém precisa de cuidados e contrata uma pessoa, um cuidador profissional, ou recorre a outra pessoa, no nosso caso um filho(a), para desempenhar esse papel. Mas o carinho nunca é unidirecional. Se for, ele finda um dia. O carinho necessita de uma troca. Dois se acarinham.  Essa foi minha resposta à questão: porque não consigo dar carinho à minha mãe? Simplesmente não guardo em minha memória nenhuma cena em que minha mãe tenha me colocado no colo e feito um carinho. Conversei isso com uma de minhas irmãs e ela também não se lembra. Pior, teve que se cuidar, ser assistida por um psicólogo quando percebeu que sua filha não recebia dela o carinho que ela deveria dar, mas que recebia dela. E como também está sendo difícil para ela cuidar de nossa mãe.

Talvez isso explique porque eu sempre falhei em meus relacionamentos. Quando começava a receber muito carinho eu saía fora. Porque o carinho é mais que o contato de mãos na pele. Carinho é a troca de afagos na alma.

32 PALAVRAS

Conhecer, saber, informar-se, compreender, entender, capacitar-se, habilitar-se: são muitas as nuances do aprendizado e muitos verbos com significados próximos, e diferentes, sobre essas nuances. Lembrei-me de um artigo que li em uma revista científica francesa sobre a cultura indígena: afirmava que tribos amazonenses têm trinta e duas palavras diferentes para distinguir diversos tons de verde. Contei isso para uma amiga chinesa, como quem conta vantagens, ela me disse que os povos habitantes dos desertos gelados do norte da China também têm trinta e duas palavras diferentes para distinguir os diversos tons de branco. Chamou-nos atenção o fato de o número ser o mesmo: trinta e duas palavras. Trinta e dois tons de cores, para as diversas cores? Existiriam trinta e duas palavras diferentes para distinguir “tonalidades” de conhecimento? Iniciemos uma lista. Sete palavras já foram escritas no início desta crônica, quem quiser ajudar a fazer crescer a lista enviem-nos as palavras, com seus significados. Eu já passei por vários desses estágios e, recentemente, acrescentei uma palavra por minha conta e risco: ressignificar, palavra que o dicionário online de meu editor de texto se recusa a validar. Preciso ressignificar isso.

Mas o que seria ressignificar? O conhecimento é como uma bola de neve montanha abaixo: vai crescendo à medida que a bola rola. Vai se acumulando, se acrescentando aqui e ali. Todas as teorias do conhecimento, de Rousseau a Paulo Freire, passando por Piaget, Vigotsky, Vallon e Maturana, são unânimes em dizer que conhecimento não brota em árvores. É preciso conhecer e reconhecer para conhecer mais. É preciso ter conhecimentos prévios para se apropriar de conhecimentos novos, para que esses tenham significados. Essa é a base, por exemplo, da Aprendizagem Significativa, de Ausubel. E ressignificar? O que seria uma Aprendizagem Ressignificativa?

Arrisco dizer que ressignificar conhecimentos é tirar lições positivas de conhecimentos acumulados mesmo que a experiência inicial em sua primeira, ou anterior, apropriação tenha sido negativa. Ressignificar é eliminar traumas transformando-os em lições de vida. Ressignificar é aumentar a bola de neve e ver seu potencial de energia crescente à medida que desce o morro, levando conhecimento transformador e não destruidor.

Ernest Heminguay perdeu os originais de seu romance em um naufrágio no Mediterrâneo e foi para Paris choramingar com Gertrude Stein. A escritora americana deu-lhe o melhor conselho que poderia dar: - “Escreva de novo, certamente sairá melhor”. “Por Quem os Sinos Dobram” não é apenas, provavelmente, melhor que os originais afogados. É uma obra prima, merecedora do Nobel. Isso é ressignificar. Transformar o conhecimento, ou qualquer outra das trinta e duas palavras (considerando que teremos trinta e duas palavras para isso), em novo (mais positivo, melhor?) conhecimento.

 

terça-feira, 8 de março de 2022

MÃE, MULHER OUTRA


Mãe não é mulher.
Mãe é uma imagem de mulher
que se destrói
ao nos tornarmos homem.
Aí, mãe se refaz mulher.
Distante.
Mais próxima que antes.

 — Os filhos crescem, geralmente nos esquecem. Um dia se mandam e não voltam nem para uma visita. Nem parece serem filhos da mãe. Ainda bem que ficou um para me ajudar em minha velhice.

Com essa frase, que pode parecer carregada de ressentimentos, Zara começa a contar um pouco de sua vida ao jornalista que fora entrevistá-la. Ela completaria noventa anos naquela semana e o jornal da cidade tinha em pauta reportar um pouco da vida das mulheres idosas e suas histórias. Porque a história das mulheres idosas é mais de luta e sofrimento que de alegrias. No entanto, Zara trazia um sorriso ainda encantador em seu rosto marcado pelas rugas da idade. Entre um sorriso e outro, vai repassando a trama de sua existência, relembrada em impulsos de sua memória já estremecida.

Zara veio ainda jovem do sertão de Minas Gerais, lá dos gerais de Guimarães Rosa, onde o Urucuia serpenteia, às vezes raso, às vezes profundo. Pegou a estrada já com um filho na barriga, fruto dos avanços forçados do filho do dono da fazenda. A própria família a mandara embora. A mulher ser sempre suspeita é coisa antiga e mudou muito pouco. Nem a pós-modernidade conseguiu tirar-lhes essa culpa.

Chegou à capital sem saber para onde ir. Não queria que com ela acontecesse o mesmo que a muitas mulheres na mesma situação: cair na prostituição. Como era de boa conversa, pediu ajuda às pessoas, sonhando encontrar uma boa alma. Afinal, ela sabia cozinhar bem. Comida da roça, claro. E aprendia a dar uns alinhavos nas roupas quando precisou pegar a estrada. Medo e vergonha de trabalhar não tinha. Assim, pergunta aqui, conversa ali, conta história acolá, Zara foi convidada por uma senhora para trabalhar em sua casa, como doméstica.

Ficou por lá uns tempos, teve seu filho e a vida foi se conduzindo no automático das horas. Os patrões, gente boa, tinham filhos homens que, infelizmente, começaram a assediá-la.

— Muitos homens não conseguem ver uma mulher sozinha que se acham no direito de importuná-la. Levá-la para a cama para depois sair contando vantagem, conta Zara. São uns bobocas.

— E o que fez a senhora quando isso aconteceu? — Pergunta o jornalista.

— Fiz minhas trouxas e fugi. Foi aí que vim para Nova Lima. Para trabalhar e criar meus filhos. Tive mais dois, mesmo sem me casar. Porque queria ter filhos, não maridos. Eu já sabia que maridos costumam ser um atraso na vida da gente. Eles querem ser nossos donos, não nossos companheiros.

— A vida é muito dura com as mulheres solteiras e mães. Como se ter filhos sem marido fosse um atestado de ruindade, ou de incompetência. E pais que não são maridos desaparecem e os deixam crescer sozinhos, Zara continua relatando.

— E como a senhora conseguiu criar seus filhos? — Pergunta de novo o jornalista que, na verdade, preferia deixá-la falar à vontade que ficar provocando-a com perguntas.

— Aluguei uma casinha simples e comprei uma máquina de costura. Os móveis e utensílios da casa fui ganhando das pessoas. Existem pessoas bondosas, a maioria é. Rapidamente consegui trabalho. O problema maior é que os moleques ficavam muito soltos e iam para a rua. A rua é uma escola complicada. Ensina coisas boas e ruins.

— Um de meus filhos foi pego pelo lado ruim da rua. Meteu-se em encrenca com as gangues do bairro e, certo dia, apareceu morto com um tiro no peito.

As lágrimas veem aos olhos de Zara ao comentar isso. Pode-se perceber que a dor ainda é muito grande, embora um tempo longo tenha se transcorrido.

— Depois disso, o segundo filho preferiu ir embora. Não queria ter o mesmo destino de seu irmão. Nunca mais voltou. Pelo menos sei que está vivo. Até me envia dinheiro ocasionalmente. Não preciso, então o guardo no banco, em uma caderneta de poupança. Se ele voltar um dia e precisar da grana, ela está lá no banco, à disposição.

Nesse momento entra Mauro, seu terceiro filho. Um mulato bonito, forte, ainda jovem, chega com Saulo que veio visitar a avó. Saulo é filho de Mauro, neto de Zara, carrega uma mochila com seus apetrechos. Veio direto da faculdade e entrou para ver o que estava acontecendo. Curiosidade de neto que mora vizinho à avó.

A tristeza nos olhos da vó Zara dá lugar ao sorriso escancarado, mostrando os dentes ainda bem cuidados. Zara é um exemplo no bairro. Muitos da vizinhança demandam seus conselhos e sua benção de benzedeira de boas rezas, que sabe curar mau-olhado, tristezas do coração. Quem a vê, hoje, nem imagina o quanto de dor e sofrimento pelo qual ela passou na vida. Com certeza, será uma bela reportagem.  


sábado, 5 de março de 2022

AINDA ESCREVO CARTAS

Neide me escrevia cartas quando eu morava na França. Era ótimo chegar em casa e encontrar cartas na caixa do correio (La Poste, lá): cartas dos familiares, carta de amigos e carta da Neide. Era especial. Porque ela me contava de sua vida e sempre me perguntava sobre mim, mas sobre minhas verdades. Neide era atleta, praticava um esporte do agrado dos mineiros: peteca. Tinha, por isso, as mãos grossas e calejadas. Sempre que podia eu a acompanhava em alguns jogos. Aprendi esse esporte com ela.

Em uma vinda ao Brasil, naquele período de vida na França, a visitei em sua casa. Estava triste e sozinha. Seu marido havia arrumado outra pessoa para dividir sua vida e isso a magoara. Ela não sabia o que fazer com aquela novidade e sofria. Curioso é que eu não conhecia ninguém de sua família. Havíamo-nos conhecido no trabalho e ficamos amigos, assim, sem mais nem menos. Nos encontrávamos para um cafezinho, uma conversa sem compromisso e para eu assistir seus jogos de peteca. Chegou a ser campeã municipal e estadual em sua categoria.

Um dia parei de receber suas cartas, e as minhas foram devolvidas. Que poderia ter acontecido? Em minha volta ao Brasil a procurei pelos caminhos onde pisamos juntos e ninguém sabia dela. Desaparecera sem deixar pegadas que eu pudesse encontrar. Algum tempo depois, uns anos depois para ser correto, encontrei, ao acaso, uma pessoa que trabalhara conosco no mesmo local onde nos conhecemos e que era sua amiga. Perguntei por ela e a resposta, surpresa, foi: — Neide faleceu, de câncer. E vocês eram tão amigos, como não soube?

Ela não quis que eu soubesse. Por isso publico esta crônica/carta. Minha primeira carta a ser mostrada no novo espaço (#aindaescrevocartas[i]) seria para ela. Vinte anos depois. Como não conhecemos os endereços de nossos queridos que se foram, impossível enviar uma carta. Penso também que lá não deva ter uma agência dos correios e a correspondência deve ser por pensamento, telepatia, algo assim. Se for assim, então, carta enviada.



[i] https://www.facebook.com/groups/1629135930765971

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...