sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O QUE EU TENHO A PERDER?

Esta é uma boa pergunta. Afinal o que eu tenho a perder a esta altura de minha vida, aos sessenta e sete anos? Posso responder a essa pergunta partindo de variados aspectos de minha vida, de ontem e de hoje. Primeiro, vamos comentar sobre o tempo: eu sou um homem muito saudável, não tenho e nunca tive doenças complicadas, nem tomo medicamentos, só algumas vitaminas. Tenho uma mãe de noventa e três anos que também não toma medicamentos. Só está velha, em alguns dias levanta-se com dores nas pernas, mas eu creio que é apenas uma leve depressão, normal para a idade, e nesse dia ela gosta de ficar na cama. E só a esta altura de sua vida começa a perder a memória, não a lucidez. Significa que, do ponto de vista do tempo, eu ainda posso ter uns vinte e cinco a trinta anos de vida pela frente. E se eu continuar me cuidando e, seguindo as práticas saudáveis para o bom envelhecimento, eu posso chegar lá. Quero cuidar desse tempo que ainda tenho pela frente. Quero ganhar mais tempo.

Segundo, eu gosto de escrever e desde adolescente eu sonhava em ser escritor. A vida me levou para outros caminhos, precisava trabalhar em algo que me garantisse a sobrevivência logo. Aos dezoito anos meu pai me deu um “se vira, malandro”, ou seja, a partir dali eu estava por minha conta. Logo fui chamado para ser professor e segui essa carreira por mais de quarenta anos. Comecei a lecionar aos dezoito e parei aos sessenta e um anos. Foi um belo trabalho, eu sei, não o faço mais. Agora conto histórias e estórias de outras formas: principalmente escrevendo. Se terei público eu não sei, mas quero continuar contando histórias enquanto eu for vivo. Quero manter e aumentar estas oportunidades.

Terceiro, eu tenho muitos afetos. A dar e a receber. Eu tive dois casamentos que fracassaram por inabilidade minha, por culpa minha, embora não exclusivamente. Já perdi o afeto delas e no caso da segunda esposa, perdi também o afeto dos filhos dela, a quem ajudei a criar, na vida de quem eu tive uma enorme participação. Hoje eu tenho dois filhos, dois netos, ainda uma mãe, vários irmãos, sobrinhos e alguns bons amigos. E uma nova esposa e uma nova filha. Minha nova esposa é uma mulher muito carinhosa, alegre e dedicada. Quero tê-los a meu lado. Todos. Quero ter todos os afetos comigo. E por perto, se possível. E se estiverem longe fisicamente, que estejam perto, em minha mente.

Quarto, eu não tenho muito dinheiro. Tenho uma aposentadoria que me garante a sobrevivência com dignidade, mas deixei para trás, com minhas ex-mulheres, meu patrimônio construído com muito trabalho. Não me importo muito com bens, meu maior bem é minha vida. No entanto, eu poderia estar muito melhor financeiramente se soubesse e me dedicasse a cuidar mais de minha vida financeira, ou, como dizem hoje, de minha saúde financeira. Não fiz isso. Hoje as chances são ainda menores de criar novo patrimônio. Só tenho como bens, poucas coisas, que cabem no baú de um caminhão de mudanças. Só isso. Penso até em comprar um caminhão e morar nele, tantas mudanças eu já fiz e ainda vou fazer. Então, quero manter minha saúde financeira atual, por mais débil que ela seja. Eu ainda quero ganhar dinheiro, ainda quero ter um patrimônio mais sólido.

Quinto, eu sou um homem muito tranquilo, inteligente, de bom humor. Consigo sair de situações complicadas da vida com elegância e sabedoria. Já me afundei muitas vezes e, até hoje, consegui me levantar de novo. E consegui manter minha calma, consegui manter meu olhar na busca da profundidade das coisas. E minha alegria. Minha alegria, minha calma, minha inteligência são meus maiores patrimônios. Eu resumiria isso definindo-me como um homem sábio. E isso eu quero manter, sempre. Minha sabedoria. Essa ninguém me tira. E quero manter minha lucidez, para manter minha sabedoria.

Resumindo, tenho cinco pontos, características, patrimônios, que quero manter sempre comigo e me lembrar sempre de nunca me esquecer de me lembrar o quão importante essas coisa são: o tempo e a vida que ainda tenho pela frente, com saúde; as histórias que conto e que ainda tenho para contar, em vários suportes diferentes; os afetos, todos os afetos que guardo comigo, inclusive recuperar os afetos perdidos; minha saúde financeira, que quero melhorar, sem dúvida; minha sabedoria, alegria e bom humor. Simples? Sim, simples assim.


QUAL É O LIVRO QUE ESTOU A LER?

Exatamente ontem comecei a ler “Los cazadores de la unificación perdida” de H. F. Ranea Sandoval, Ediciones Colihue, Argentina. Um livro que fala de Ciências para os que se sentem jovens, ou seja, para mim. É um livro escrito por um físico argentino e que provavelmente vai contar uma história de uma parte importante da Física, justamente a que argumenta sobre as teorias de unificação das leis físicas.

E porque ler isso? Tenho duas razões para tal empreitada: primeiro, eu sou um físico de formação e adoro livros de divulgação científica sobre a Física, principalmente. Aprendi que as leis físicas nos ensinam muito sobe a vida. Se as pessoas tivessem paciência em estudar ciência, aprenderiam que a Física argumenta em torno dos fenômenos da natureza e os fenômenos da natureza têm muito a ver com a nossa vida pois somos partes dessa mesma natureza. Segundo, porque está escrito em espanhol e eu tenho um encontro marcado em menos de um mês com escritores de língua espanhola, pela internet, e preciso estar com a língua espanhola na ponta da língua, para me comunicar com estes escritores.

Sobre o livro em si, o título sugere uma busca, e parodia o filme “Os caçadores da arca perdida” que tem o Indiana Jones como protagonista. A busca em questão é a busca dos físicos teóricos em unificar as teorias da relatividade e da eletrodinâmica quântica, unificação que vem sendo tentada, sem sucesso, desde Albert Einstein. E que, provavelmente, dará fama mundial a seu autor. Imagino que o livro que continuarei a ler hoje se refere a alguns desses cientistas que buscam esta unificação.

Lerei outros livros em espanhol, neste mês, porque preciso melhorar minha comunicação nesta língua, como escrevi acima. Pois eu quero conversar bem com os latinos americanos. Pode ser uma boa meta, não é verdade?


QUEM É MEU MELHOR AMIGO?

Esta é uma boa pergunta. Minha resposta: EU NÃO SEI. Ao longo da vida tive uma série de bons amigos. Todos estão longe hoje. Claro, vivemos tempos de distanciamento social, mas eles sempre foram longe. Penso que eu sempre tive dificuldade em ter amigos por perto. Ou talvez eu tenha me deixado influenciar demais por mulheres ciumentas que cobravam de mim uma presença exagerada e, com isso, eu afastava os amigos para evitar caras feias para mim. Erro meu. Uma coisa é certa: como nunca parei nos empregos e nos lugares eu fui mudando de amigos.

Aquele amigo de infância, que nos acompanha pela vida, não tenho. Aquele outro que passa a juventude a seu lado, faz farras juntos, vai namorar juntos, vai a festas juntos, toma as primeiras cervejas juntos, não tenho. Aquele amigo que vira seu padrinho de casamento e por isso pensa que precisa zelar pela relação do casal, não tenho. Aquele amigo que vê seus filhos nascerem, apadrinha um deles e os acompanha crescer, não tenho.

Esta é uma pergunta retórica. O meu melhor amigo é aquele que, no momento, está mais perto? Talvez haja um candidato. Meu vizinho tem se mostrado bom camarada, bom papo, ajuda-me quando preciso, é o que tenho de melhor exemplo de amigo, no momento. E tem, entre aquelas que me acompanham nas redes sociais, alguns que talvez venham a se tornar meus amigos. Dizem que precisamos ter pelo menos uma mão cheia de bons amigos. Então, vou começar a fazer uma lista e testar o nível de amizade deles para construir minha lista.

Os principais candidatos são:

- Meu vizinho, compartilha comigo até suas aflições, ele que é um cara solitário e meio deprimido, mas tem me ajudado bastante nas pequenas coisas do dia a dia. É o que está mais perto. Tem um problema que pode atrapalhar: ele é de direita ferrenho. Mas já tive amigos de direita e que se mostraram bons amigos naqueles momentos em que bons amigos são necessários.

- Outro bom candidato é o amigo de Salinas, monge budista, e que fez a caminhada do sertão junto comigo. Eu o conheci há exatamente um ano atrás, no primeiro dia de caminhada. Mora perto, tem tempo, e tem me convidado para visitá-lo em suas propriedades.

- Mais um caminhante, um vídeo-maker, fotógrafo e virador profissional, tem passado algumas dificuldades no momento e eu tenho mostrado a ele que estou aqui e posso ajudá-lo. Ele responde positivamente a minhas conversas.

- Para colocar uma mulher nesta lista, existe aquela que mora comigo. Mas dizem que as mulheres da gente nem sempre são suas melhores amigas. Tenho dois exemplos disso. Quando você as deixa elas se transformam em inimigas.

- Mas tem uma ex mulher que é uma grande candidata a ser melhor amiga. Alguns testes são necessários.

- O músico caminhante que conheci também é bom candidato. Mora em São Paulo, mas tenho lhe ajudado com donativos nesses tempos loucos de pandemia. Ele se torna um candidato.

- Outros desta lista podem ser: Gisele, Alice, Jo de Aracaju, Pedroso, Cida, Regina.

A lista vai crescer, tenho certeza.

Vou continuar pensando nesta lista. Quero encher pelo menos duas mãos.


QUE MÚSICA SERIA O MEU AUTORRETRATO?

Meu autorretrato seria pintado com uma fusão de várias músicas, todas aquelas que ficaram em minha cabeça durante uma fase de minha vida e me ajudaram a construir meu arcabouço musical e emocional. Na verdade, são músicas que têm a ver minha formação, minha cultura, minhas vivências e minhas emoções. “Submarino amarelo” é uma música forte de minha juventude, dos Beatles, e um dia percebi que era a música que eu ainda assobiava no chuveiro, tantos anos depois. “Sem lenço, sem documento”, de Caetano Veloso, foi uma espécie de hino de minha juventude. Como eu me identifiquei com ela! Outras foram “Travessia” e “Maria, Maria” de Milton Nascimento e inúmeras outras do legado do Clube da Esquina, de Belo Horizonte, por contarem histórias que poderiam ser minhas, ou escritas por mim. E a “Quinta Sinfonia” de Beethoven, mas tocada ao acordeom pelo Oswaldinho. E, mais recente, todas aquelas músicas que dizem respeito ao universo literário de Guimarães Rosa e o sertão mineiro. E tem também a voz de Elsa Soares, a interpretação de Ana Cañas das músicas de Belchior, os Mutantes e principalmente Arnaldo Batista, o “Silêncio” de Arnaldo Antunes. Ou seja, um mosaico bem interessante seria meu autorretrato musical.


O QUE FALTA EM MINHA VIDA?

Faltam tantas coisas em minha vida e, ao mesmo tempo, não me falta nada. Paradoxo? Não, eu explico. Eu tenho uma renda razoável que me permite viver numa boa e isso é muito importante; por outro lado, eu tenho uma dívida grande, mas pagável com minha renda. Se não tivesse esta dívida eu teria um pouco mais de grana para viver. Falta então gerenciar melhor esta dívida para que ela diminua. Eu não tenho uma casa, já tive, então tenho que pagar aluguel, caro. Eu tenho alguns móveis dentro dessa casa alugada, eu tenho uma boa companheira que mora comigo, eu tenho comida farta na mesa, disposição para o sexo com minha mulher, eu tenho músicas tocando o tempo todo, eu tenho paz e calma, eu tenho alegria, eu tenho empatia, eu tenho simpatia, eu tenho vontade de viver, eu tenho vontade de escrever e escrevo, eu tenho pássaros no quintal, eu tenho um cachorro tranquilo e companheiro, eu tenho quadros na parede, eu tenho muitos livros, eu tenho um jardim para cuidar, eu tenho amigos para conversar e trocar ideias, eu tenho trilhas para caminhar bem perto de casa, eu tenho boa cachaça na prateleira para degustar quando quero, eu tenho uma boa cama para dormir quando me canso e tenho sono, eu tenho um carro na garagem, eu tenho um telefone para inclusive telefonar, eu tenho um computador de mesa e um notebook, eu tenho voz para cantar e pernas para dançar. Falta-me o quê? Posso viver muito bem com o que tenho. No entanto, eu gostaria de viajar mais, eu gostaria de ter meus livros publicados, eu gostaria de ter um carro novo, eu gostaria de ter uma bicicleta nova, eu gostaria de saber cantar, eu gostaria de tocar um instrumento, eu gostaria de fotografar mais, eu gostaria de algumas coisas que não tenho. No entanto, estou agradecido por tudo que tenho. Muito agradecido principalmente pela saúde que tenho. Chegar à minha idade e não ter problemas de saúde sérios é bom demais. Grato ao universo, grato à vida, grato aos pais pela herança genética, graças ao mundo por tudo que conquistei, grato pela sabedoria e conhecimento que tenho, grato pelos afetos que posso trocar com as pessoas queridas.

GRATO, GRATO, AGRADECIDO, MUITO OBRIGADO.


sábado, 11 de abril de 2020

DIÁRIOS DA QUARENTENA VIII – 10/04/2020



Passei o dia trabalhando na construção de um jardim suspenso com paletes coletados em um desmanche. Vai ficar lindo.
Agora à noite, ouço samba e danço. Viva a quarentena.

DIÁRIO DA QUARENTENA IX – 11/04/2020


Hoje é sábado de Páscoa. Em outros tempos haveria malhação do Judas com muita festa, muita graça. Mas em tempos de quarentena temos que manter o isolamento a distância social, trancados em casa. Eu estou trancado desde o dia dezesseis de março, quase não vejo ninguém, não saio à rua, apenas para abastecer minha geladeira e comprar uma ou outra coisa necessária para nossa manutenção em casa. Tenho livros, tenho discos, tenho uma conexão com o mundo através das redes sociais, etc. Então, mantenho uma distância nem tão isolada assim, já que posso me comunicar com o mundo, com os amigos conhecidos e desconhecidos. Todos estamos na mesma onda, todos com medo.
Hoje eu li uma frase interessante sobre o medo. “Medo a gente tem, mas não usa”. Era de uma pessoa que tem que lidar cotidianamente com situações provocadoras de medo. Mas não pode se entregar ao medo. Guardei a frase para mim. Tenho medo de pegar o vírus? Sim, tenho medo, mas não o uso. Me previno ao máximo, mas não uso o medo. Porque o medo nos impede de agir em casos graves, mas precisamos dele para duas coisas: para ter coragem e para não correr riscos desnecessários. Estranho? Aparentemente contraditório, correto, no entanto. Tenho medo, mas não quero usá-lo. Muito chique.
Trabalhei durante a manhã na confecção de jardins suspensos com paletes catadas em um desmanche. São paletes com defeitos e descartados, por isso, mas ainda úteis em mãos interessadas em construir alguma coisa. A madeira não é lá grandes coisas, mas têm, no entanto, um belo visual para o que pretendo fazer. Como não tenho muito espaço de terra eu o usarei para construir canteiros verticais para plantar hortaliças. Estão ficando bonitos.
Depois do almoço dei início à minha carreira de cineasta. Filmei a companheira elaborando um prato para seu público de seguidores no You Tube: cozinhando com a Gurgelita. O prato foi Quadradinhos de Tapioca, com tapioca granulada, queijo coalho, leite e sal, apenas. Filmando o processo de elaboração do prato desde a apresentação dos ingredientes até a degustação com a iguaria pronta. Foram oito tomadas de cena, cada uma com uns dois minutos em média, o que deve dar um filme com duração entre doze e quinze minutos. Os vídeos foram repassados para o editor que deve colocar o filme no ar brevemente. Veremos. Óbvio que lanchamos o produto final, com café. E ficou muito bom Parabéns à Gurgelita.
Amanhã devemos ir a Ouro Preto. Minha companheira tem um endereço lá, uma quitinete super legal, um lugar onde podemos ir para ficar uns dias sempre que quisermos. Vale a pena mantê-lo. Uma pena que estamos confinados em nosso endereço principal por causa de Seu Corona. Espero que no fim tudo dê certo. Sigamos em frente.



sexta-feira, 10 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA VII - 09/04/2020


Levanto e vou escrever. E assim começo os dias, em todos os dias de quarentena. Ou melhor, em quase todos. Depende de que horas acorda minha companheira. Ela é um pouco mais dorminhoca que eu, acordo mais de uma hora antes dela. Há dias em que começo a escrever e volto para a cama, se ela está acordada fico com ela mais um pouco. Aí, já viu, né? O corpo pede um chamego, um carinho, e ... a manhã começa mais tarde, o texto se interrompe e continua depois. Hoje, como meu dedão do pé estava ferido, não voltei para a cama. Isso porque, ao me levantar apanhei o celular em algum lugar da casa (não o deixo no quarto), ele escorregou de minha mão. Para que não chocasse com o chão o moço aqui, em um reflexo de atleta ninja o amortece com o pé. Qual pé? Aquele com o dedão ferido. O pé mais ágil, o esquerdo. E onde o aparelho cai? Adivinhou se respondeu que ele caiu exatamente em cima do dedão do pé esquerdo. Passada a dor, café com ela e começo a escrever.
Hoje precisei levar uns livros ao correio para despachá-lo para um amigo que me comprou oito exemplares dos Diálogos do Ser-Tão. O Correio trabalha com horário reduzido, começa às dez e trinta e havia uma fila grande, doze pessoas para serem atendidas antes de mim, uma demora de mais de mais de trinta minutos. Depois enfrentei a fila do supermercado, e a fila de entrada lá foi de quase uma hora também. Em seguida, uma visita ao sacolão, a fila era menor, comprei o mais rápido que foi possível. Voltei para casa eram quatorze horas. Quase três horas para entrar e comprar em três estabelecimentos comerciais. Pelo menos os cuidados com a manutenção da distância, por parte dos estabelecimentos, eram visíveis.
Encontrei outra pessoa que usava o mesmo tipo de máscara caseira que eu: um lenço perfex, desses de uso na cozinha, para limpeza, dobrado e preso com uma fita atrás da orelha. EU vi uma médica ensinando a fazer através de um vídeo que me foi enviado por WhatsApp, penso eu.
Fui convidado pela Ana Cruz a participar de uma teleconferência via internet, com pessoas de seu grupo de clientes de terapia, a dar explicações sobre a parte de física quântica do livro A Cura Quântica. Procurei dar o máximo de embasamento científico para afirmar que a tal cura do autor não é quântica. É outra coisa. Que pode ser puro charlatanismo. Só que não sou dono da verdade para dizer: não é, o autor está errado. Tenho uma formação de cientista, e como tal, a dúvida é minha parceira. A dúvida é a maior ferramenta do cientista. Sem a dúvida a Ciência não avança. Por isso desconfiamos de autores que afirmam tudo com tanta certeza. Os fenômenos quânticos não se explicam com afirmações assertivas, elas se explicam com a experiência. Precisamos, então, de mais pesquisa sobre a consciência e a memória para termos um mínimo de certeza sobre os fenômenos de cura e da consciência. Senão, caímos no campo da seita.
Depois da teleconferência, que durou quase duas horas, terminamos o dia com a sopa do Guto, nosso vizinho. Que estava uma delícia.
Sigamos em frente.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA VI – 08/09/2020


Hoje já é dia oito de abril, estou na quarta semana de quarentena, vigésimo terceiro dia e estou bem. A quarentena tem sido ótima para ficar em casa comigo mesmo. Eu consigo esta façanha porque estou tranquilo e sereno. Quantas pessoas estão desesperadas porque não aguentam mais ficar em casa? Eu aguento. Não quero ser contaminado, não quero ficar doente, então fico em casa. Isso vai passar, eu sei.
Essa auto imposição de ficar em casa, nos leva a outros questionamentos. Sobre o tempo, por exemplo. Eu descobri que sou um poeta do tempo e do espaço. Em meus textos, poemas principalmente, disserto muito sobre o tempo e o espaço e suas relações, medidas, formas de sentir, etc. Talvez seja meu espírito de cientista, de físico por formação, o tempo sempre é uma temática. Em tempos de quarentena, de tempo passando devagar, vamos falar de tempo? Surgiu aí uma ideia: escrever sobre o tempo para crianças e jovens.
O tempo é frustrante? Só quando estamos com pressa e, de repente, temos que parar para dar um tempo para que as coisas se resolvam da melhor maneira sem nossa intervenção. E esse isolamento nos cria uma sensação de enorme inutilidade. Aos poucos ninguém mais te telefona, ninguém mais te manda mensagens, ninguém mais lê, curte e comenta o que você escreve nas redes sociais. Isso é isolamento total. E você descobre que não é mais útil para ninguém e tem medo de morrer assim mesmo. A sensação de inutilidade não açoda o desejo de morte. Sim, isso é uma forma de estar vivo, de se sentir vivo. Não ser útil para ninguém e não querer morrer. Porque nós somos mais que isso. Somos mais que a soma de nossas intenções, nossas vontades. Somos mais que a soma de nossos desejos. Tem algo na conta que conta mais que as parcelas e o resultado é maior que imaginamos. É aí que volta a esperança, exatamente quando estamos no escuro e percebemos que a luz da manhã vai chegar a qualquer momento e, como pássaros de madrugada, levantamos e nos preparamos para alçar voos. Só levamos conosco nosso passado, ele gruda em nós como eco de nossas falas, nossos gritos. Como eco, não como peso. Eco não pesa, apenas sussurra em nossos ouvidos. E assim podemos sair desse mundo escuro como os contos de Edgar Alan Poe.
E eu quero um belo dia hoje. Choveu muito à noite, amanheceu nublado, mas agora, quando levanto daqui para tomar meu café matinal, o sol brilha lá fora, ainda tímido, ainda tépido, morno. Mas meu coração está quente. O café que se coloca à mesa pelas mãos da mulher enquanto escrevo, está quente e me aquecerá o corpo, a começar pela boca, pela garganta e nela darei um beijo com a boca quente. E o dia recomeça. E eu em meu isolamento social, bem acompanhado, diga-se de passagem. O que não me faz sentir menos só. Pois tenho solidão de amigos, solidão de abraços variados e sortidos durante o dia. Eu que defendia a terapia do abraço. Precisamos de uns dez abraços diferentes por dia, cada um de mais de vinte segundos para a devida liberação e absorção de oxitocinas para melhorar o humor e a saúde.
Abraços, no entanto, só de quem vive comigo no mesmo espaço e faz a quarentena a meu lado. Convivemos com os mesmos vírus, comemos da mesma comida, dormimos na mesma cama, trocamos fluidos o dia inteiro, e noite também. Daí nos abraçamos várias vezes por dia, longamente, porque gostamos um do outro e para compensar os abraços não trocados com outras pessoas. E nos faz muito bem.
O dia hoje não foi de muito trabalho, fiz apenas o essencial da casa, algumas leituras, etc. Fui ao correio enviar livros, ele já estava fechado. Estão trabalhando em horário reduzido, só até quinze horas e trinta minutos. Perdi tempo. No caminho de volta para casa apanhei alguns paletes para fazer uma obra aqui. Um armário para a cozinha. Um teste à minha capacidade obreira, como marceneiro. E à noite assistimos a um filme engraçado, uma comédia leve e divertida, com Robert de Niro e Anna Hataway. Fechou o dia. Sigamos, então.




terça-feira, 7 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA V – 07/04/2020


Acordei cedo, quase oito horas, com o telefone tocando. Era minha irmã Ciça. Atendo porque telefonemas de irmãos sempre podem trazer alguma notícia inesperada, é aquela mania que a gente tem de pensar que notícia ruim chega bem cedo. E ela tem um filho que trabalha em um hospital, situação de risco em tempos de pandemia. Ela diz que não, pois ele chega e tira as roupas assim que sai do carro e já entra pelado em casa e vai direto para o banho. E suas roupas vão direto para a máquina de lavar. Ok. O que seria então? Cortinas. Ela queria saber sobre cortinas. E assim começo o dia.
Volto para a cama encontro a mulher acordada e sorridente. Começamos uma brincadeira de quase todas as manhãs: conversas, carinho, abraços, coisas e tal, antes de levantarmos e irmos para a cozinha fazer o café. Que hoje foi acompanhado de pão integral, queijo do tipo cottage e pasta de amendoim com óleo de coco e canela. Bem alimentados estamos.
Fui para o computador e começo a ler mensagens no WhatsApp e no Facebook. Sou surpreendido com um filme do Rafael Catatal, editado pelo meu querido amigo Raul Sampaio, com trechos do Caminho do Sertão. Fiz o Caminho do Sertão em julho de 2019 e até hoje o sertão não saiu de dentro de mim, e nem vai sair. Ele se instalou em mim como carrapicho, mas um carrapicho que gruda na alma e não sai de jeito nenhum. O filme em si é uma edição de 8 minutos de muitas horas que o Rafael fez durante os nove dias que foi o Caminho: sete dias de caminhada mais o dia antes e o dia depois. Foi uma experiência maravilhosa contada no livro Diálogos do Ser-Tão, da Rolimã Editora. Parei, claro, para ver o filme e agora estou aqui escrevendo sobre isso e sentindo na pele todas aquelas maravilhosas lembranças do feito. Sem mais palavras.
O filme me tocou tanto que não consegui, por um tempo, fazer mais nada. Aquele caminho foi um marco em minha vida e, pelo que posso perceber nos depoimentos dos colegas, foi um marco na vida deles também. Somos outras pessoas, temos outras percepções das coisas, novos sentimentos, além de novos amigos. Eu gostaria de encontrá-los mais vezes, e o faríamos não fosse a pandemia. Que merda. Minha coleção de afetos estando trancada a várias chaves, eu querendo exibi-la para os queridos e não consigo. Não posso sair de casa. Pena. Mas, depois dessa, colocaremos os afetos em dia.
Depois veio o almoço. Ela capricha sem demora e sem muitos rodeios nem devaneios na hora de preparar o rango. Comemos bem e leve. Arroz, feijão e um suflê de cenoura: cenouras, cebolas, ovos e queijo, além de temperos saborosos. E uma salada bem rica, bem condimentada, apimentada. Uma delícia. Fizemos um teste de filmagem na cozinha durante o preparo. Vamos colocar no ar, de novo, o canal You Tube da Gurgelita, uma vedete da cozinha com receitas saborosas e simples. Aguardem para breve.
Também conversei com Ana, minha futura autora, sobre uma apresentação ao vivo que ela quer fazer na quinta-feira e conta com minha presença e ajuda. Ela vai falar sobre o livro do Depaak Chopra, A Cura Quântica, e ela quer minha ajuda pois não quer embarcar em uma canoa furada. O livro fala sobre a cura baseada em medicinas indianas e alternativas, em que a cura é um construto da mente. Sim, pode ser, acredito que a fé ajuda bastante, temos muitos exemplos disso pelo mundo afora e todos temos um caso, pelo menos, em nossos círculos familiares e de amigos. Mas daí chamar o processo de quântico há uma distância enorme. Vou ler mais alguma coisa amanhã para participar da videoconferência na quinta-feira.
À tarde, voltei a assistir mais um episódio da série Altered Carbon, uma série futurista bem tensa e cheia de aventuras e lutas e busca de valores. Lutas entre o bem e o mal não são novidades, a questão é que, na série, quem é o bem e quem é o mal é uma dúvida complicada. Mas o filme tem tiradas filosóficas ótimas, alguns personagens são verdadeiros Aristóteles e fazem declarações alucinadas, mas cheias de verdades. Hoje ouvi de um robô que as coisas improváreis são as que mais importam em nosso (deles) mundo conturbado. Que barato! As coisas improváveis são as que mais importam. E que livros, nomes e carinho nos ajudam a lembrar que, mesmo nas horas mais sombrias, a vida deve ser saboreada. Uau! A verdade geralmente está sob a pele. Principalmente quando nossos rostos estão protegidos por nossas máscaras. Todas as máscaras. As que nos protegem do vírus e as que nos protegem de nós mesmos.
E hoje tivemos mais de cem mortos, no Brasil, pelo vírus. Eu ainda penso que nossos números estão falsos. O número pode ser bem maior. E me baseio nas informações que vejo na própria imprensa. Ontem, por exemplo, tivemos cinquenta e poucos mortos, segundo dados publicados pela imprensa baseados em informações oficiais. E ao mesmo tempo, a reportagem de um canal de TV nos informa que apenas em um cemitério de São Paulo houve vinte e sete enterros de vítimas. Percebem? Em um único cemitério vinte e sete enterros. E apenas cinquenta e poucos mortos pelo vírus. As contas não batem. Acreditemos, no entanto, e sigamos em frente.


DIÁRIO DA QUARENTENA IV – 06/04/2020


Hoje começamos a quarta semana de quarentena. E estou bem, ela também. Talvez se eu estivesse sozinho não estaria tão bem. Tenho alguém comigo que me ajuda a viver, a pensar no dia a dia, a trabalhar. Juntos cuidamos do espaço físico, dos amigos e familiares, cozinhamos, lavamos, preparamos nosso dia a dia com carinho. E escrevemos. Agradeço profundamente à pessoa que vive comigo. E começamos a quarentena em 16 de março. Eu com uma gripe/resfriado bem forte, pensei até que estivesse com a Covid-19. Felizmente não, o resfriado melhorou. Ou sim, e também melhorou. Estou tomando meus cuidados. E ela também se resfriou, provavelmente pegou de mim, ou não. O fato é que aqui é muito frio e chove muito. Por isso resfriamos. Não estou achando esta quarentena chata por duas razões: estou bem acompanhado e eu me sinto bem estando quase solitário, quietinho, escrevendo minhas estórias. Só preciso ser um pouco mais criativo e produtivo. Estou trabalhando nisso.
E minha mulher de vez em quando passa em minha frente, sorri e diz algo alegre. Já passou aqui e me deu alguns beijos, agora está na cozinha preparando o almoço. Linda essa mulher. Eu me sinto bem feliz de tê-la aqui comigo. E me lembro de todo o bem que ela me tem feito, ouço com atenção e não me importo com o excesso de palavras e frases com que ela derrama seus pensamentos. Ela precisa falar, então que fale. Eu preciso escutar, então escuto. Isso porque escutar faz parte da formação da sabedoria de um cidadão e eu quero ser um cidadão com sabedoria bastante para também ser ouvido quando for necessário. E assim vamos levando os dias de quarentena obrigatória.
Ontem eu escutei uma frase em um filme, a escrevi para guardar e ela me parece ser daquelas coisas nas quais a gente precisa pensar para chegar naquele estágio de sabedoria que queremos alcançar. A frase é: “as tempestades fazem as raízes das árvores crescerem profundamente”. Ou seja, as árvores crescem suas raízes durante as tempestades para não serem derrubadas por elas, nem pelas tempestades futuras. Então finquemos nossas raízes nesta quarentena de enfrentamento de crise na saúde mundial e sobreviveremos às próximas crises, porque elas virão.
Outra frase, curiosamente dita pelo mesmo personagem, foi: “imortalidade significa viver eternamente com o que fizemos”. Não esquecer nossas ações seria saudável? Seria enriquecedor de nossas histórias? Viver eternamente com aquilo que fizemos, com nossos arrependimentos, com nossas ações, aquelas que mexem com todos, que criam relações e constroem arranjos sociais? É isto? Frase provocativa, essa.
Ainda uma terceira frase que me fez anotar no caderninho que sempre tenho a meu lado, foi: “com o tempo, até os amores viram pó”. Puta que pariu, esta frase é foda. Até os amores viram pó. E para o pó retornaremos.
O dia de hoje também foi tranquilo, de paz. Trabalhei bastante pela manhã, em coisas que podem me ajudar mais à frente. O que mais faço e penso que até faço bem, é escrever. Escrevi meus microcontos, escrevi as crônicas matinais e elas ficaram tão boas que aproveito parte dos assuntos aqui. Porque meus escritos foram bem filosóficos, usando frases que ouvi ontem em um filme. Depois do almoço demos uma caminhada, fui à caixa econômica imprimir uns talões de cheque, mas lá não tinha caixas eletrônicos com essa opção. Valeu a caminhada. Passamos na casa de um amigo para conversar um pouco.
Em casa comecei a ler e ver as notícias horríveis do dia: mais mortos, mais contaminados, e o presidente continua a aprontar das suas. Seu posicionamento não condiz com sua condição de presidente da nação. E seus atos tem seguidores tão mal intencionados quanto ele. Aliás, já nem sei quais são suas intenções, suas ideias são fixas em algumas coisas que não tem nada a ver com poder, com o poder que lhe é conferido. Aí mora o perigo. Ele quer demitir o ministro da saúde, mas a sociedade protege o ministro. E o clima fica tenso. Como um personagem robô me disse uma vez, não se pode salvar os homens deles mesmos. Quando eles seguem um caminho, mesmo que tortuoso e perigoso, nada consegue demovê-los de suas ideias fixas.
Por outro lado, tento manter a minha serenidade. O universo se rende às mentes serenas, sendo elas capazes de transformar o mundo com sua serenidade. Por isso, fico com a minha serenidade. Pois o fruto da árvore pertence à árvore. Minha serenidade me pertence e nada irá tirá-la de minha mente. Que precisa estar saudável. Espero não ter sido, nem vir a ser acometido do novo vírus. Ele poderia me ser mortal, sereno ou não. Parece que estamos em um beco sem saída. De um lado, a ciência e os cientistas tentam achar uma saída saudável para os males do mundo, de outro lado, o senso comum, os pensamentos aleatórios das pessoas os conduzindo cada vez mais para o interior do beco. E os becos nos atrasam na busca do que pode ser a verdade presente no caos. Sim, há verdade no caos. Encontrá-la é o problema. Porque a realidade pode ser, nada mais nada menos, que um somatório de ilusões, algumas ilusões perdidas no mesmo labirinto, no mesmo beco sem saída. Por isso procuro construir um jardim em meu labirinto particular. Construir e manter um jardim nos ajuda a por foco em nossos pensamentos. Então, sigamos em frente.

DIÁRIO DA QUARENTENA III - 05/03/2020


Findamos a terceira semana de quarentena, e é apenas o terceiro dia que escrevo esse diário. Porque não pensei nisso antes? Não sei. Poderia ter pensado, porque escrevo crônicas do cotidiano todos os dias e isso aqui é uma crônica, certo? Eu escrevi crônicas nesses dias de quarentena e muitos microcontos. Adoro escrever microcontos de até trezentos caracteres, não é exatamente uma escolha, é uma exigência do grupo do facebook do qual sou membro. E isso acaba sendo um hábito. Então, escrevo esses contos curtos, minimalistas. A história de escrever diários da quarentena surgiu por essas razões: o cotidiano de uma pessoa em minha idade, mais de sessenta quase setenta, é ficar em casa.
Recebo recados dos amigos de todos os gêneros – fique em casa meu querido; recados dos irmãos – Paulo, fique em casa; recado dos filhos – pai, fique em casa; recado dos netos – vovô, fique em casa. Apenas minha mulher, que divide comigo a quarentena necessária, diz de vez em quando – querido, estamos sem verdura para o almoço, vai ali no mercado e compra um pé de couve. Então eu ponho a máscara, calço os sapatos que já ficam do lado de fora, coloco meu chapéu e luvas e saio. Na rua costumo encontrar algum conhecido que me fala – meu senhor, não é melhor ficar em casa? Chego no sacolão, a duzentos metros de distância e tem um cara na porta, sem máscara e sem luvas, mas com uma garrafa de álcool em gel na mão e me besunta todo. Se ele estiver contaminado, eu já estou fodido. Compro meu pé de couve e a gente sempre compra algo mais do aquilo que colocamos como nosso objetivo inicial, comprar faz parte de nossa obsessão cotidiana e vamos ao caixa, e entramos em uma fila cheia de gente olhando uns para os outros como se fôssemos extra terrestres e sempre aparece alguém para te lembrar: - você não deveria estar em casa, seu velhote? Velhote é a puta que te pariu, jovem idiota.
Bom, depois de passar no caixa, uma moça que bem gostaria de estar em casa em um domingo de manhã e se encontra a contra gosto naquele recinto minúsculo vendo a cara de desconfiados de seus fregueses – será que essa moça não tem covid? Penso e logo deixo de pensar, porque pensar não imuniza ninguém, pago, dou um sorriso amarelo, ela me responde com outro sorriso mais amarelo ainda e volto para meu container doméstico, caminhando devagar só para ficar mais tempo na rua. Chegando em casa faço o ritual (estou começando a me acostumar com rituais, eu que não frequento igrejas porque não gosto de rituais): tiro os sapatos, as meias, as luvas, o chapéu, a máscara, lavo as mãos e a cara com sabonete e me besunto de novo com esse maldito álcool em gel. Aliás estou virando alcoólatra em gel, se o cheiro do álcool não for exatamente aquele, eu rejeito. Por isso parei de tomar cachaça, porque ela não tem cheiro de álcool em gel, então não me satisfaz.
Mas quem fez o almoço hoje foi eu, então deixei na geladeira o bendito pé de couve porque o meu interesse era fazer um peixe ao forno. Eu sou chique, né? Comprei ontem um filé de tucunaré, um peixe da Amazônia bem gostoso e o deixei hoje de manhã fora da geladeira para derreter o meio quilo de gelo que vem dentro do filé congelado. Com limão capeta que apanho no limoeiro do vizinho. Ele me deu acesso a seu quintal só para pegar o danado do limão capeta que dá mais que chuchu na cerca. Mas o limão capeta não tem nada de afrodisíaco, apenas ajuda na imunidade do velhote (velhote é a puta que pariu), importante se cuidar senão o corona vírus vai te pegar e não adiantará ter cara de velhote (velhote é a puta que pariu) sarado, ela vai te pegar do mesmo jeito.
Voltando ao peixe, que descongelou todo o gelo que o fedaputa do fornecedor coloca dentro para aumentar o peso, ajeitei-o na vasilha, besuntei-o (gostei da palavra) com um temperinho caseiro da mulher (coisa boa, a mulher e o tempero), e acrescentei cebola, alho, tomates, pimentões e batatas pré-cozidas e besuntei (ô palavrinha gostosa) com azeite de oliva e foi tudo para o forno. Fiz também um arroz com camarão pequeno e a madame fez uma salada das boas e fomos para a mesa. A essa altura eu já estava meio bêbado de tanto álcool em gel, mas mesmo assim abri um vinho português, um Porta do Casal, safra dois mil e quinze que, segundo enólogos, é a melhor safra da década no mundo todo. Convidamos também nosso vizinho, sim, o do limão capeta, não por causa do limão, mas porque é gente boa e sempre engraçado. Almoçamos os três aquele manjar por mim preparado (desculpem os auto elogios, mas ficou bom pra caralho), rimos e conversamos.
Depois do cafezinho, eu a mulher que comigo divide o espaço em quarentena (será que ela está me aguentando, afinal em meu currículo está assinalado pelas ex-mulheres que sou chato pra caralho) fomos para a cama entre juras de amor e cenas obscenas que não terei o desplante de escrever aqui. Afinal, estou gostando pacas dela e não posso expor nossos pormenores amorosos que não são nada menores, bom dizer. Estamos de lua de mel em quarentena. Afinal viemos morar juntos quando a porra do Sars-cov2 resolveu bagunçar o coreto e a economia do mundo e matar alguns velhotes (velhote é a puta que te pariu), principalmente aqueles com histórico de doenças. Ainda bem que chatice não é doença. Então, sigamos.

domingo, 5 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA II - 04/04/2020


Hoje o dia foi principalmente libidinoso. Ao acordar e durante a sesta fizemos amor, eu e ela, lógico. Foi avassalador o tesão nos dois momentos. Parece que a diversão sexual nos fortalece, nos mantém lúcidos neste período de loucura virótica. As pessoas têm medo de contrair um vírus, mais medo ainda de transmiti-lo para seus familiares mais idosos e estes morrerem. Oitenta por cento dos mortos pelo covid-19 está na categoria de mais de sessenta anos e com algum problema de saúde anterior. E o número de mortos cresce no Brasil e no mundo.  Mas nós criamos uma espécie de capa protetora, com a cumplicidade amorosa entre nós. Fazemos sexo, cuidamos um do outro, fazemos nossa comida e ficamos em casa a maior parte do tempo. Durante a semana, hoje é sábado, saímos poucas vezes. E sempre para dar uma caminhada ou fazer compras nos supermercados com cuidado e proteção. A vida é muito louca.
Saí pela manhã para comprar algumas coisas no supermercado e abastecer nossa geladeira e despensa de alimentos. E também para comprar algumas coisas inusitadas: pregos para fazer uma obra de madeira para decoração da casa, cola para colar peças de madeira e lixa para deixar as madeiras lisinhas e sem farpas que nos machuque as mãos. Estou pegando paletes usados pelas transportadoras, paletes jogados fora por alguma razão, e usando suas tábuas para construir um suporte para flores, ou um coxo para dar comida aos pássaros, ou uma casinha de cachorro, coisas assim. Na loja de material de construção o atendimento foi bem profissional e o atendente pegou o material solicitado para me entregar e depois passou álcool em minhas mãos e nas dele. Ele me disse ter imunidade baixa e, portanto, corre riscos. No supermercado os cuidados dos funcionários são bem menores. Eles disponibilizam álcool a todos, mas poucos usam máscaras e luvas e nem se importam em manter distância uns dos outros e dos compradores. Os compradores estavam mais cuidadosos.
Uma vez em casa seguimos o ritual de desinfecção: tiramos os sapatos, lavamos os objetos comprados, lavamos as mãos e o rosto, passamos álcool. E como temos tido pouco contato com pessoas, pensamos não estar correndo grandes riscos. O almoço tem sido leve, comemos o suficiente, quase não comemos carnes. Antes do almoço, claro, uma bebida alcoólica, em pequena quantidade. Hoje eu tomei uma dose de cachaça e dividi uma lata de cerveja, 500ml, com minha mulher. Apenas isso.
À tarde fomos dar uma caminhada. De casa à Praça dos Quatro Elementos, ida e volta, são uns quatro quilômetros. E lá na praça nos sentamos e fizemos uma meditação de mais ou menos meia hora. Isso nos deixa leves e relaxados. Meu método de meditação é fazer o exercício de respiração que faço para chegar ao transe leve: respiração lenta e profunda, enchendo e esvaziando o abdômen, e pensando apenas na respiração e pronunciando algumas palavras, como uma mantra, que nos faz pensar que estamos inspirando coisas boas e expirando nossas mazelas. Na volta paramos na peixaria e compramos peixe e camarão para o almoço de amanhã, que será minha responsabilidade.
Além de tudo colocado acima fiz também a leitura de parte de dois textos: dois livros que estou lendo. Um como produtor de texto, que é um trabalho de leitura intensiva, catando problemas de redação e de coerência do texto. Outro como leitor beta, que é aquele leitor que acompanha o trabalho do escritor no momento em que ele escreve para lhe dizer se alguma coisa não está legal. Ou se pode melhorar.
Mas o que me preocupa é o fato de que o corona vírus estar mexendo com todo mundo. E as diversas formas com que ele mexe conosco. Em minha vizinhança temos diferentes tipos: um pensa que a quarentena é um exagero; outro que está ficando meio maluco e com medo da contaminação. Os dois não são idosos, o primeiro com sessenta anos e o segundo com cinquenta e três. E os dois são bolsonaristas ferrenhos e acreditam nessa merda que temos como presidente. E, no entanto, têm comportamentos diferentes e contraditórios. E os dois estão sem trabalho e, provavelmente, ficarão sem dinheiro. Eu acompanho as notícias pelos sítios de notícias na internet e no rádio. Estou mais preocupado com a conjuntura do país e com a despreocupação das pessoas, o que pode colocar em risco os outros, que com a situação econômica. Esta se arranja depois que o risco de contaminação passar. Sempre daremos um jeito. Sigamos, então.


RETROSPECTIVA BEM HUMORADA 05


Aventura 03: Viagem de 20 dias pela Patagônia Argentina e Chilena. Fiquei impressionado com a Terra do Fogo, extremo sul continental do planeta. E com as geleiras.
Professoras primárias queridas: Laila Abalen e Léa Giorgini.
Maiores lembranças da infância: Minha mãe cantando Francisco Alves e Sílvio Caldas no tanque; descida de carrinho de rolimã, construído por nós mesmos, na rampa da rua onde morávamos, em Nova Lima; passeios pela Mata do Jambreiro desde a manhã até quase noitinha (conhecíamos a mata inteira e até fomos usados como guias pelo corpo de bombeiros quando um grupo de jovens se perdeu e os bombeiros não o encontraram); as partidas de futebol, aos fins de tarde, no campinho privativo dos moleques da rua, eu prum lado e Santiago pro outro no par ou ímpar (éramos os maiores); futebol no campo do Montanhês, bairro Cabeceiras, Nova Lima, aos domingos; subir na caixa d’água de mais de 30 m de altura para tomar banho dentro dela sem que nossos pais nos vissem; ir aos domingos ao cinema do Teatro Municipal de Nova Lima (hoje um patrimônio) assistir filmes de Mazzaropi, levado por meu pai; soltar papagaio (ou pipa, ou flecha) do pátio da Cemig no meio daquele emaranhado de fios elétricos e torcer para que o vento estivesse soprando para o outro lado; jogar bolinha de gude; namorar as meninas da escola primária; descer a rampa gramada, e muito inclinada, sentado em cima de um papelão, ou saco de linhagem, e ficar esperto para não dar de cara no muro; passar férias na Fazenda Potreiro, em Rio Piracicaba/MG, com meu avô Juquinha e andar a cavalo, tirar leite de vaca, pescar no rio à tardinha, subir no pé de jaca do quintal, chupar laranja do pomar, etc., etc.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

RETROSPECTIVA BEM HUMORADA 04


O que já escutei sobre mim: dizem que sou chato. Respondo que sou chato, mas sou genial, como outros chatos geniais – Caetano Veloso, Paulo Francis, Nelson Piquet, etc.
O que também já escutei sobre mim: que sou sereno, tranquilo e que transmito confiança. Concordo.
Aventura 02: viajar de carro na França, Espanha, Portugal, Suíça, Itália, Alemanha, e outros lugares, sem destino certo.
Línguas: só aprendo línguas no calor das conversas com nativos. Assim aprendi francês e espanhol.
Prazeres: Uau, são tantos! Os melhores prazeres da vida são aqueles minúsculos prazeres cotidianos, que tornam a vida mais leve. O primeiro gole da cerveja na temperatura certa; comer a ponta do pão quentinho quando sai do forno; acordar com tesão de madrugada e sua mulher também; ligar o rádio e estar tocando sua música preferida; comer um pão de queijo com café em silêncio; ver uma criança lendo seu livro e se deliciando; ouvir uma poesia sua sendo declamada por um desconhecido; sentar na beira do rio só para escutar o murmurinho da água; andar descalço em riacho pedregoso; ver o por do sol; levantar bem cedo para ver o sol nascer na montanha; ver a lua cheia aparecer no alto da mesma montanha no mesmo dia que viu o sol nascer pela manhã; surgir uma pequena inspiração e minutos depois ter um poema escrito; comer angu e couve fina com feijão tropeiro e ovo; beijos; abraços; abraços e sorrisos de filhos e netos; sentir-se amado; amar; andar de bicicleta; tomar banho de cachoeira; uma boa prosa com amigos; caminhar em silêncio ao lado de pessoa amiga e perceber que a fala é desnecessária; receber uma mensagem daquela pessoa que você gosta muito e não vê há tempos; dançar coladinho; ouvir música de manhã ao acordar; etc.; etc.; etc..


RETROSPECTIVA BEM HUMORADA 03


Diploma: tenho vários. Certificado de conhecimento.
Amigos: um monte: certificado de sabedoria
Profissão: professor durante mais de 40 anos
Formação formal: Física e Ciência da Comunicação
Formação não formal: poesia, conversa afiada, resposta pronta, pedalada, banho de cachoeira, amizade, carrinho de rolimã, culinária, fotografia, pintura imaginária, desenho com dedos no ar, orelha boa para ouvir pessoas, aldravias, clássicos da literatura e outros nem tão clássicos, histórias em quadrinhos, passeios às margens do Sena e do São Francisco e das Velhas e do Cipó, degustação de cachaça, um pouco de alpinismo, escaladas em torres da Cemig, assistir Marília Pera e Katerine Ross no cinema, leitura continuada e eterna de Grande Sertão Veredas e Dom Casmurro, caçada de estrelas cadentes, busca do tesouro no fim do arco-íris, passeios na mata do Jambreiro, passeios na mata de Rambouillet, remo na Lagoa dos Ingleses, mordida de piranha no calcanhar, beijos na boca, por do sol pelo Brasil afora e outros lugares do mundo, nascer do sol nas montanhas e na beira mar, assistir O Corpo em Paris, pedalar na Inglaterra e na França, fazer o Caminho do Sertão, gostar da música do Makely Ka, Sérgio Pererê e Maurício Tizumba, o cordel do Olegário Alfredo, entre outros milhares de coisas que me ensinaram a ser o que eu sou.


DIÁRIO DA QUARENTENA I – 03/04/2020


Estou em quarentena. Isso não é novidade. Eu e milhares de outros. Há quem diga que é uma medida desnecessária, que a economia vai falir. Mas a economia é um ente abstrato, eu não. Eu sou concreto, de carne e osso e um poço de emoções. Estou em quarentena há duas semanas. Em princípio, comecei com um resfriado estranho: tosse, espirros, dor de cabeça, dor no corpo, dor de garganta. Sem febre. Com os anúncios dos sintomas mais genéricos da COVID-19, fiquei com um certo temor de estar covidiado. Parece que não, ou que sim, não tenho certeza. O fato é que meus sintomas foram mudando ao longo dos dias, e se afastando dos casos clássicos de pessoas contaminadas. Meu resfriado foi embora, fiquei mais tranquilo.
Eu me mudei para um novo endereço uns dias antes da deflagração da quarentena e isso foi uma sorte. Moro em uma casa ampla, grande, onde instalei meu escritório, biblioteca, cozinha e quarto. E tenho um grande espaço externo para trabalhar. Tenho também um vizinho que me empresta ferramentas para trabalhos genéricos, tipo passatempo. Aliás, trocamos ferramentas. A casa dele é em cima da minha e temos uma passagem comum.
Esta casa onde moro fica em um bairro sossegado e ela está no final do bairro e perto das trilhas na mata, onde posso caminhar sempre que não chove. E como chove aqui. Parece que estou em uma cidade amazônica, onde chove todos os dias. Hoje, por exemplo, choveu o dia inteiro. E esfriou.
Outra grande vantagem de minha mudança é que não moro mais sozinho. Tenho a companhia de minha namorada. Estávamos os dois começando um relacionamento e ele foi esquentando, esquentando, já ficávamos a maior parte do tempo juntos. Então resolvemos ficar em quarentena juntos. Logo, moro em um lugar super agradável e com ótima companhia. Ela, minha companheira, é alegre, acorda sorrindo, sorri o dia todo, cozinha maravilhosamente e toca violão muito bem. Ela veio com seu violão, seus livros e sua caixa de sapatos. Como é possível uma pessoa ter tantos sapatos? Ela tem mais sapatos que eu tenho de chapéus. Talvez ela pergunte: como é possível uma pessoa ter tantos chapéus? E com o frio que faz aqui, imagino que terei chances de usá-los, o que não fazia antes por causa do calor. Há anos não fazia frio e este ano parece que ele virá com vontade.
Hoje estou escrevendo mais que o normal. Tirei o dia para ler e escrever. Tive um pouco de dor de cabeça, mas foi ressaca mesmo. Ontem à noite eu e minha companheira fomos convidados para tomar um vinho com nosso vizinho de cima, em quarentena como nós. Tomamos duas garrafas enquanto minha companheira se dedicou ao violão nos presenteando com um belo repertório de música brasileira. E terminou em samba.
Em casa parece que o vinho subiu, ou desceu, não sei. O que sei é que nosso movimento na cama foi fora do normal. O que havia terminado em samba continuou em transa, das melhores dos últimos tempos, em nosso quarto. Uau! Que maravilha de sexo. Desse jeito a quarentena pode virar cinquentena ou mais. Estou me acostumando com a pessoa, a convivência tem sido das melhores. Creio que nos daremos muito bem. Já nos damos muito bem. Um amor diferente do que já senti antes está no ar. E não é vírus. Não morre com sabonete e álcool em gel.
Com relação ao trabalho, já que tenho a responsabilidade de conduzir uma editora, confesso que estou relaxado e relapso. Isso precisa mudar a partir de amanhã. Assumo aqui, no papel, o compromisso de mudar meu comportamento profissional. Preciso sobreviver ao vírus física, psíquica e economicamente. Sigamos, então.



terça-feira, 24 de março de 2020

RETROSPECTIVA BEM HUMORADA 02


Briga com irmãos: quem tem 8 irmãos tem que impor respeito.
Surra de pai: não cabe nos 100 dedos de pés e mãos.
Briga com vizinho: Na rua, meu caro, quem não bate apanha.
Primeiro emprego: aos sete anos vendia verdura na rua e ganhava comissão pela venda – uma lambada se não vendesse tudo.
Primeira poesia: quando ganhei o primeiro beijo na boca.
Primeiro beijo: aos sete anos (não foi na boca) de coleguinha de sala.
Primeira trepada: sua pele era de ébano e foi debaixo de um caramanchão.
Primeira visita na zona: aos sete anos, vendendo verdura.
Música que assobio no chuveiro: submarino amarelo.
Brincadeiras de menino: carrinho de rolimã, futebol, papagaio.
Grandes amores da juventude: Katherine Ross e Marília Pera.
Namorada perdida: quando eu voltar de férias vou pedir aquela garota para namorar comigo.


RETROSPECTIVA BEM HUMORADA 01


Filhos:  4
Livros: 4 publicados, uns 10 no prelo e uns 20 planejados
Árvores: uma florestinha inteira
Osso quebrado: uns dez, só lembro deles na chuva de lua cheia quando todos doem ao mesmo tempo.
Tornozelo torcido: como fui peladeiro de toda semana, já aconteceu N vezes.
Namoradas: não contei não.
Projetos inacabados: centenas.
Primeiro carro: um Passat 1974.
Tombos de bicicleta: como pedalo desde os 15 anos, imagino que uma porrada.
Banho pelado de cachoeira: uma delícia até o dia em que quase perdi o saco por não o segurar com a mão ao pular do alto da cachoeira.
Praia de nudismo: só fui uma vez.
Susto no avião: uma vez, chegando em Floripa em tarde de tempestade; outra vez, chegando em Ilhéus ao perceber o tamanho e a localização do aeroporto à beira mar.
Sexo no avião: nunca
Sexo em viagem de ônibus: entre São Paulo e Juiz de Fora, e entre Belo Horizonte e São Paulo.
Sexo na praia: que saudade de Nova Almeida/ ES.
Susto na estrada: quase morri uma vez, em viagem de Belo Horizonte a Viçosa. E muitos outros sustos menos assustadores.
Aventura 01: pedalada entre Londres e Paris – 420 km em 7 dias.
Partos: nunca assisti a nenhum, eu caia no sono na hora do nascimento de meus filhos.
Arrependimento 01: comer pão de queijo em lanchonete em Manaus. Jeito de mineiro viver perigosamente.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

MEIA SETE


Meia sete. Parece o ano daquele fusquinha que fez sucesso entre os garotos de minha idade, mas lá pelos anos oitenta, noventa. De vez em quando a gente ainda vê um fusquinha meia sete, ou meia oito. Meia oito foi o ano do AI-5. Terrível. Em nome dessa loucura muita gente boa foi presa e algumas mortas simplesmente por não concordarem com o regime vigente. E tem umas bestas inumanas que querem reviver essas loucuras. Em nome de quê? De um patriotismo besta? De privilégios para alguns às custas da miséria de outros? Isso é assunto para mais de metro. Comecei a escrever aqui para falar de minha idade. Meia sete. É que hoje é meu aniversário. Estou sossegado em casa. Devo ter conversado com no máximo umas cinco pessoas hoje. Mudei de endereço e trabalho para dar uma mínima organização a meu esconderijo novo. E também porque recomeço a vida. Novo lugar para morar, novas pessoas em minha vida, nova forma de conduzir o trabalho e, espero, melhores resultados. Minha vida tem sido caótica, totalmente aleatória, um verdadeiro movimento browniano. Ainda bem que Einstein desvendou os enigmas do movimento browniano, então nem posso falar mal dele. Quando jovem eu queria ser gente grande, com grana, com sucesso. Lá pelos anos meia sete eu, com quinze anos, entrei para o que hoje denominam de ensino médio, fui logo convidado para ser tesoureiro da união novalimense de estudantes secundários, nos reuníamos aos sábados à tarde no Liceu de minha cidade. Não durou muito, o tal de AI-5 caçou nossa associação, nos colocou na clandestinidade e, jovens que éramos em uma cidade cheia de delatores (nem premiados eram), desistimos de continuar. Minha iniciante vida política se esfacelava logo de saída. E meu pai, vigiado que fora por ser sindicalista, impediu que seus filhos se enveredassem pela política. Teve medo por nós. Só desabrochou minha verve política de esquerda mais tarde, bem mais tarde, quando fui parar na universidade. E hoje, com os malucos que temos no poder, a luta retoma seus momentos mais cruciais. Temos que lutar por nossos parcos direitos adquiridos. Ainda nem sabemos o que é democracia e temos que reunir forças para mantê-la, aos pedaços que seja, em fragmentos, ora bolas. É o que temos.

Meia sete. Que número feio! E minha cara começa a mostrar as marcas do tempo, em forma de rugas, pelancas, manchas, flacidez. Uma barriguinha bem cuidada com muita ginástica insiste em sair de sua forma ondulada e tomar a forma arredondada. E a memória, essa danadinha, cisma de me abandonar nos momentos mais importantes. Justamente quando estou na presença, que muito me alegra, daquela pessoa que não vejo há algum tempo e seu nome desaparece no meio de minha barafunda mental. Quanto ao sexo, nem falo nada. Meu pênis adquire vontade própria e quando a vontade dele coincide com a minha é uma festa. Estou reaprendendo a transar. Emagreci uns quilos, mudei a alimentação, mais saudável agora, bebo menos hoje, caminho, pedalo, faço musculação, leio muito, escrevo bastante, tenho uma boa parceira, etc. e tal. Tento me manter informado e conectado com o mundo, ouço música boa, assisto filmes. Tudo isso para envelhecer com dignidade e autonomia, pois como disse Rita Lee, não é para os bananas, é para os fortes. Então, forte quero ser.

Meia sete. Quando encontro pessoas de minha idade eu fico, muitas vezes, chateado em perceber que a vida não é muito camarada para alguns. Vida sofrida? Trabalho demais? O que faz com que alguns envelheçam mais rápido ou mais devagar que outros? Porque eu também trabalho muito, dei muito duro na vida, nada foi fácil para mim. Uma vez encontrei um colega que não via havia tempos, ele me olhou nos olhos e disse quase com raiva. Você não envelhece porque sempre foi um irresponsável. Aquilo me chocou um pouco de início, mas depois fiquei me colocando no lugar e refutei a afirmação tão assertiva dele. Irresponsável uma ova! Sempre tive muitas responsabilidades e penso que dei conta delas. O que sou, na verdade, é bem humorado, alegre mais que na medida do possível, e nunca me deixei levar pelo pessimismo, pela tristeza, pelas palavras cheias de negatividade. Minha mãe ensinava, quando eu era criança, que não devia falar de desgraças porque desgraça sempre atrai desgraça. Segui seus conselhos. Muitos anos depois, em Paris, eu ouvi a escritora Lígia Fagundes Teles discursando, em francês, que devemos ter cuidado com as palavras. Elas têm uma força muito grande e alteram a vida daqueles que as pronunciam. Minha mãe é uma sábia. A fonte da juventude está, deduzo, em ter pensamentos e ações positivas, alegres, que espalhem sorrisos nos olhos dos outros. Mas aí reside também uma contradição importante. Eu espalhei também muita tristeza na vida de pessoas, principalmente de pessoas que eu amei e amo.

Meia sete. Nesse tempo todo quantas tristezas e lágrimas fiz derramar em olhos alheios? Quantos sorrisos consegui desenhar nas bocas de pessoas conhecidas e desconhecidas? Não se trata apenas de números, mas de profundidade. Uma tristeza profunda apaga quantos sorrisos? Esta conta é simplista assim? Não creio. Espero apenas que as pessoas tristes me perdoem. Que as pessoas tristes por minhas ações me perdoem em dobro. E que as outras sorriam quando me virem flanando na rua com meu rosto sereno. Porque sereno eu sou.


CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...