segunda-feira, 26 de junho de 2023

O VOO DE COLOMBO

    Desde garoto Colombo gostava de subir qualquer coisa escalável. Com menos de um ano, engatinhando, subiu em uma cadeira à beirada de uma mesa, depois na mesa e chegou à janela. Com grades, ainda bem. Aos dois anos foi pego no alto da cortina da sala, escalou-a como se fosse uma corda. Daí a subir as torres da Cemig, para desespero de sua mãe, foi um pulo, quase literalmente.

    Subiu montanhas, escalou falésias, se equilibrou em corda bamba, trabalhou no circo, suas ocupações sempre traziam esse interesse quase obsessivo pelas alturas. Quando foi procurar trabalho obviamente escolheu um que lhe permitia olhar as pessoas de cima, do alto de seu pedestal, como se fossem formigas carregando os jardins, cada um a seu jeito. Ele sempre imaginava que, como pequenas formigas, as pessoas carregavam suas pequenas conquistas para casa e as guardavam como se fungos se tornassem e o bolor consequente os alimentasse ou os entorpecesse.

    Não era exatamente a vida que queria. Só lhe faltavam asas para sua transformação em um ser humano da categoria dos himenópteros, ou dos columbídeos, bastando decidir se preferia ser inseto ou ave. Imaginava que seus pais já haviam decidido por ele. Colombo deve ser uma palavra derivada de columbídeo, pois, em língua francesa “colombe” é aquela ave universal conhecida no Brasil como pombo. Então, por que não voar como uma columbídea? Ou paloma, em língua espanhola? Gostava da expressão “paloma mensajera”, ou pombo-correio.

    Em sua maturidade Colombo trabalhou na construção civil. Percebeu que suas habilidades alpinísticas o diferenciavam na profissão. Rapidamente subia nas alturas dos prédios em andamento, mesmo carregando um saco de cimento nas costas. Um empregado modelo, preferido pelos mestres de obra. Era querido também pelos colegas, que o achavam diferente, um distraído, sempre alegre. Tinha uma qualidade rara, intrínseca à sua personalidade: era querido pelas aves. Sempre haviam pássaros em seu entorno. Ele os alimentava, óbvio. Alguns pássaros o acompanhavam de uma obra à outra. Principalmente aquela pomba-azul.

    Pomba-azul? Existe isso? Tal como o cisne negro, a gente pensa que não existe até vermos um. A partir dessa visão, essas raridades passam a nos acompanhar pela vida. Colombo deu até um nome para a pomba-azul. Era Colombina. Formavam uma dupla, Colombo e Colombina. Ele até aprendeu a falar arrulhez, para emitir arrulhos tais que a Colombina. Deu certo, pois ela sempre aparecia quando ele começava a arrulhar.

    Um dia, a Colombina azul não apareceu o que deixou Colombo preocupado. Não conseguiu trabalhar direito naquele dia. Recebeu com mau humor, raro mau humor, os deboches dos colegas.

    — Está solteiro hoje, Colombo? Sua Colombina arrumou outro marido?

Fingiu não ligar, mas seu mutismo não era normal. Estava deveras preocupado. Passou o dia olhando o horizonte, arregalando os olhos na tentativa de ver ao longe se sua ave se aproximava. Nada. O sol já estava no meio de sua descida para se esconder atrás das montanhas distantes, desenhando no céu o pedaço diário de seu analema, quando ela chegou, machucada. Colombo tentou cuidar da bichinha, mas ela se manteve distante, ferida, dolorida.

    De repente surgiu uma ave de rapina, um gavião ou um carcará, provavelmente o mesmo que a ferira, e desferiu mais um golpe em suas asas já sangrentas. Colombina tentou voar e caiu das alturas do prédio em construção. Colombo não teve dúvidas. Saltou, sem as asas dos columbídeos ou dos himenópteros. Esqueceu-se deste detalhe: suas asas eram apenas imaginárias e não suportavam o peso da queda. Morreu na contramão sob os olhares assustados dos colegas peões da construção. A luz do sol do fim de tarde deu um colorido especial à cena, digna de um Sigaud, quiçá um Portinari, já que os dois eram amigos. De místico, virou música, do Buarque, que não sabia dessa Colombina, apenas de outra, da Noite dos Mascarados.

@paulocezarsventura

 


terça-feira, 6 de junho de 2023

A NÃO ESCUTA COMO VIOLÊNCIA À PESSOA IDOSA

 

Existem várias formas de violência no mundo, cometidas aos outros, com várias denominações diferentes que estão além, ou paralelas, à violência física. Machismo, racismo, aporofobia, legbtfobia, xenofobia, misoginia, idadismo, etc. Assistimos, ou ouvimos, casos e mais casos dia a dia através das mídias jornalísticas e hoje também nas mídias sociais. A não escuta à pessoa idosa também é uma violência, pesada, cruel, pouco explícita, pois se passa no ambiente familiar, por isso mesmo pouco difundida como tal.

Darei um exemplo de um caso ao qual tive acesso (nomes imaginários). Adla é uma senhora de noventa anos, com caso de Alzheimer. A vida inteira trabalhou, criou suas filhas e ainda ajudou a irmã a cuidar da filha, e ensinou filhas e sobrinhas na arte da culinária. Com a idade avançada, filhas criadas e aposentada, foi morar com sua irmã em um confortável apartamento e a auxiliava no gerenciamento da casa e da família.

Sua situação se complicou um pouco com a chegada do Alzheimer, inicialmente leve, crescente ao longo do tempo. Solução escolhida pela família: interná-la em uma casa de repouso. Uma casa simples, não muito cara, bem cuidada, mas com muitos hóspedes.

A pergunta de Adla é: por que estou aqui se tenho uma casa grande, com jardim e quintal, onde mora minha filha e meus netos? Por que estou aqui se tenho dinheiro para sobreviver? Por que estou aqui se minha irmã, a quem servi boa parte de minha vida, também tem posses e uma casa até maior que a minha?

O fato é que ninguém a escuta. Ninguém a responde. Agora ninguém mais a visita, para não terem que inventar uma resposta inadequada. A não escuta migrou rapidamente para o abandono. A não escuta é uma forma de violência porque reduz a pessoa ao silêncio, cancela sua voz: se ninguém a escuta, por que falar? Esse caso é mais comum que a gente imagina.

Primeiro porque o diálogo intergeracional inexiste há muito tempo em muitas famílias. Aquele pai rigoroso e exigente, aquela mãe ranzinza, ambos sem muito diálogo com os familiares, tornaram-se pessoas idosas e não é agora que mudarão de comportamento e atitudes tão facilmente. Mudanças comportamentais e cognitivas acontecem quando casos emocionais ou ambientais mais drásticos acontecem. Ou com muita terapia. Comportamentos e atitudes são qualidades aprendidas e, muito provavelmente, muitas pessoas se recusaram a aprender, ou nem tiveram oportunidade, ou pensaram não ser importante. A sabedoria não é um dom, é um aprendizado, para todas as pessoas de todas as gerações. Talvez essa pessoa idosa não tenha escutado seus filhos, o que também não justifica a não escuta dos filhos em relação aos pais.

Outro caso mais próximo a mim acontece com Jordelina. Noventa e sete anos completa este ano, anda com dificuldade, mesmo com o uso de um andador, e com demência não muito avançada e certa confusão mental. Lembra dos fatos mais antigos, esquece o que comeu no almoço ou quem a visitou pela manhã. Um pouco surda.

Jordelina adora contar histórias. Sempre foi exímia contadora de casos descrevendo cada detalhe da narrativa. Se contava de novo para uma plateia nova repetia cada detalhe, até as vírgulas e as paradas para respiração. Como atriz amadora que foi, já idosa, decorava a peça inteira para não perder a entrada em cena e não esquecer o momento de sua fala. Hoje mistura os casos. Conta-os em sequência, como se tivessem acontecido no mesmo tempo e no mesmo lugar.

Um dia, ao visitá-la, contei-lhe um caso. Meia hora depois chegou alguém e ela iniciou um caso que eu já conhecia, de tanto ouvi-la contar. O mais surpreendente é que ela misturou o caso iniciado com aquele que eu lhe contara. Contou como se fossem um só e como se ela tivesse vivenciado os dois. Incrível. Perguntaram-me porque eu ria, não respondi por respeito.

Convivendo com ela aprendi uma tática interessante para praticar a escuta respeitosa, sem desmerecer a interlocução, sem perder a paciência da escuta e ainda ajudar a pessoa idosa a se lembrar de alguma coisa, mesmo se for difícil inicialmente. É o velho e eficiente método da pergunta socrática. Quando a conversa começa a ficar repetitiva e cansativa, faço uma pergunta que a faz pensar. Ou simplesmente dizer não sei. Nesse caso faço outra.

— Quando mesmo foi isso, Jordelina?

— Você se lembra de seu tempo de escola? Onde foi mesmo que estudou?

— Teve festa em seu casamento? Quem estava presente? Havia muitos convidados?

— O que você fazia em seu trabalho?

— Quantos vestidos de noiva costurou em sua vida?

— Que você realizou na vida que mais gostou?

— Quem te ensinou a andar de bicicleta?

— Você disse que jogou vôlei. Na sua época os uniformes eram curtos? Jogava com as pernas de fora?

— Ainda sabe cantar aquela música do Sílvio Caldas? E do Nelson Gonçalves, seu cantor preferido?

— ???

A escuta não precisa ser cansativa. Pode ser divertida, mesmo sendo as respostas não confiáveis. A não escuta é uma forma de violência. Violência silenciosa e muitas vezes despercebida. A escuta pode ser criativa!

 Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)

 

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...