domingo, 14 de fevereiro de 2016

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA XV


O ano de mil novecentos e sessenta e oito merece uma capítulo à parte. Para muitos, eu inclusive, esse não foi um ano normal, daqueles que começa em janeiro e trezentos e sessenta e seis dias depois a data é outra. Ano bissexto para começar, o que, segundo pessoas ligadas a crendices, já é motivo de preocupações. E o que aconteceu de demarcável em minha vida? Muitas coisas: fiz quinze anos, entrei para o ensino secundário (na época chamava-se curso científico), comecei a namorar, a beber e a fumar, comecei a frequentar bailes e tirar garotas para dançar o dois pra lá dois pra cá (na dança nunca consegui fazer nada mais que isso, sou uma nulidade como dançarino), passei em um concurso para ser contínuo num banco e comecei, então, a trabalhar (não deu certo), comecei a conhecer pessoas, a achar a convivência com as meninas muito interessante, a frequentar a zona boêmia com os amigos (embora eu nunca tenha transado com uma prostituta eu ia acompanhá-los e ficava de papo com as putas enquanto elas esperavam os clientes), entrei para a diretoria da união novalimense de estudantes secundários e saí logo depois (mais à frente explicarei porque), comecei a gostar de velórios e sempre tinha um no caminho de casa, uma vez que eu morava bem longe do centro da cidade, e teve o AI-5. Essa foi a pior parte.

E o que o AI-5 mudou na rotina de minha vida? Tirando o fato que esse ato fechou a união novalimense de estudantes secundários junto com o fechamento de toda a representação estudantil em todo o país e me tirou da tesouraria da entidade em Nova Lima, aparentemente mudou pouco na rotina de um garoto de quinze anos. Salvo que... e aí começam aquelas questões sutis de política cujo volume e intensidade a gente só fica sabendo com o tempo e com a experiência de vida.

Salvo que alguns amigos foram presos, outros desapareceram, outros ainda se tornaram delatores e se distanciaram de nós. Salvo que meu pai, sindicalista, se entristeceu com os episódios da política e com tantos filhos para criar (já tinha oito dos nove filhos) e aí o bicho pega. Trabalhava feito um louco para nos sustentar, brigava conosco por qualquer motivo besta que não fosse de seu agrado, dormia pouco e era muito nervoso e isso porque ele era assim mesmo e não tem nada a ver com política. Minha vida em sessenta e oito era barra pesada. Eu trabalhava o dia todo, contínuo de banco é aquele cara que faz tudo, é mandado por todo mundo, recebe todo tipo de gozação possível e tem que ficar calado. Conheci pessoas interessantes também. Tanto no trabalho quanto na escola, que frequentava à noite. Da escola até minha casa eram cinco quilômetros feitos à pé, junto com alguns colegas que moravam no mesmo bairro que eu. Ganhei uma bicicleta e a usava para ir trabalhar de vez em quando e minha mãe mandava uma marmita para mim até a casa de Dona Castorina, uma parteira que morava ao lado da igreja de santo Antônio e era amiga da família. Na casa dela eu almoçava e voltava ao trabalho. Aprendi a andar pela cidade de Nova Lima, conheci quase todas as suas ruas e bairros entregando avisos dos bancos. Em geral era bem recebido pelos comerciantes a quem eu mostrava os boletos bancários na versão da época.


Com trabalho e estudo eu tinha pouco tempo para diversão. Minha diversão principal era o futebol com os vizinhos, agora reduzido aos fins de semana. Preocupações com o futuro? Eu não tinha. Estudava o bastante para ter boas notas, o detalhe é que a escola, apesar de pública, era para uma elite da cidade. Apenas alguns garotos de periferia, como eu, tinha o “privilégio” de estudar o segundo grau. E os garotos e garotas do centro da cidade não perdoavam nossas bobeiras. O que me diferenciava dos demais é que minhas notas eram muito boas em quase todas as matérias, principalmente em Matemática e Física, duas disciplinas odiadas pelos colegas. Como eu me saia bem, eles me obrigavam, de certo modo, a passar cola para eles. Alguns eram discretos nisso, outros não eram nada sutis. No final ficamos todos amigos e eu não me incomodava em passar cola. Aprendi a fazer isso ou os professores eram condescendentes comigo? Olhando para trás, a partir de hoje, é que o ano de chumbo da política brasileira passou por mim de uma forma quase sem me preocupar muito. Apenas nos anos seguintes tomei consciência disso, através da música, da literatura, e dos depoimentos dos amigos mais velhos que sentiam na pele algumas dificuldades. E isso é assunto para muito tempo e que não me furtarei a tratar, mesmo que não me autorize a publicá-lo. Minha rebeldia dirá.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA XIV


Era o dia trinta e um de março de mil novecentos e sessenta e quatro. Não lembro-me se chovia, se fazia sol, se estava nublado. Em minha casa havia um aparelho de rádio construído por meu pai em um curso de eletrônica por correspondência, poderoso rádio que transmitia em ondas médias e curtas, frequência modulada ainda não havia. Esse rádio era a salvação de nossos dias, com as músicas da época, aqueles cantores e cantoras que minha mãe imitava enquanto estava no tanque a lavar a roupa, e com os noticiários à noite, a Voz do Brasil inclusive e, claro, Jerônimo – o herói do sertão. Isso antes da novela O Direito de Nascer. Foi nesse rádio que escutamos a triste notícia que o presidente Jango fora deposto, o Congresso fechado, o exército dominava ruas e espaços públicos em Brasília. A tristeza tomou conta de meu pai, que votara em Jânio e sua vassoura para presidente e João Goulart para vice-presidente (os votos eram em separado para esses dois cargos) e tinha João Goulart, o Jango, como herói nacional. Apesar de minha pouca idade eu entendi que coisa boa não estava acontecendo, pelo semblante do velho.

Os tempos não eram fáceis, mas havia um ar de liberdade, um ar de vitória dos trabalhadores e donas de casa, porque o orçamento doméstico era cumprido, o dinheiro dava para fechar o mês e os preços se mantinham. Lembro-me que um quilo de carne de primeira ficou em quinhentos cruzeiros durante dois anos, sem aumento. Sim, tinha uma fila para compra, não havia grande disponibilidade de produtos. Meu pai completava o orçamento da casa e da mesa com uma horta que nos servia de verduras e legumes o tempo todo e alguma grana das vendas dessas verduras e legumes que eu fazia pelas ruas da cidade.

A cidade de Nova Lima, onde habitávamos, era uma cidade operária, a mina de ouro da Morro Velho garantia trabalho pesado para muitos, e a classe operária não era muito satisfeita porque as condições eram duras. Tinha um sindicato atuante e a população elegera um deputado estadual (Dazinho) que bem os representava na Assembleia Legislativa do estado. Era uma cidade de “comunistas”, ouvi a frase muitas vezes. E aí o bicho pegou. Com a tal “revolução” militar esses “comunistas” foram perseguidos e muitos delatores de plantão se apresentaram. E nem havia a tal de delação premiada. Era delação por sacanagem mesmo. Conheci vários delatores, por causa da aproximação política de meu pai com os operários. Conheci também, e aprendi com eles, vários operários, trabalhadores de diversas categorias, principalmente eletricitários, sendo meu pai um trabalhador da companhia de eletricidade.


Como morávamos no pátio da estação distribuidora de eletricidade, e ela deve ter sido considerada estratégica pelo novo governo, o pátio e nossas casas eram constantemente vigiada pelos militares. A porta de nossa sala tinha uma pequena janela de vidro fosco e, de dentro de casa, assistíamos o vai e vem dos soldados a quem chamávamos de “cabeças de cuia”. Víamos suas cabeças de cuia passar para cima e para baixo defronte nossa janela. Era um silêncio triste a cada passagem deles. Como se eles fossem escutar nossas conversas. A rua tinha uns cem metros diante de quatro casas, moradias dos trabalhadores. Os cabeças de cuia ficaram em minha memória. A partir daí eu mantive uma distância segura de todos que usam fardas, mesmo bombeiros. A desconfiança desta categoria de funcionário público, policial, exército, ou coisa parecida, faz parte de minha constituição genética, hoje. Não gosto de policiais e pronto. Discriminação? Assumo. Tenho parentes que se tornaram policiais e eu gosto deles, sem farda. Vestem a farda e se tornam inimigos. E de inimigos mantemos uma distância segura. Nem tão próximo para não gerar intimidade, nem tão longe para não sermos pegos de emboscada. E como durou essa tal de ditadura militar. Tempo demais, suficiente para marcar toda uma geração de boas pessoas que não nasceram fazendo parte da tal de elite, que aplaudiu o confisco da liberdade da população. Que não volte. Nunca mais.

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...