domingo, 31 de janeiro de 2016

VIA ANÔMALA



Estou com o ego quebrado. Meu ego atlético sucumbiu ontem. Sempre me colocava no time das pessoas que não tem nenhum problema físico importante, com os indicadores de saúde em alta devido a diversos fatores, genético entre eles, ampliados pela escolha de uma vida saudável. De repente, isso muda durante um evento simples, desses que me dá muito prazer exatamente por ser uma afirmação objetiva dessa condição e alimentador do ego. Fui correr minha quilometragem do dia. Com uma diferença: estou em Palmas – TO, vim visitar filhos e netos, passar um fim de semana tranquilo. Chovia (chove nesta época do ano), temperatura vinte e três graus, muito bom para a cidade que bate os quarenta graus nos dias quentes sem chuva. Fui correr assim que a chuva parou. Da casa de minha filha até o Parque Cesamar (https://www.tripadvisor.com.br/Attraction_Review-g668997-d2414458-Reviews-Cesamar_Park-Palmas_State_of_Tocantins.html) são uns dois mil e quinhentos metros, no parque tem uma pista de corrida e caminhada de dois mil e seiscentos metros, então, ida e volta corresponde a um pouco menos de oito quilômetros, algo dentro de minha performance. Estou um pouco fora de forma, herança do braço direito engessado por causa de uma fratura idiota no dedo mindinho da mão direita, mas eu me controlo para que não passe dos limites. E como sei controlar o fôlego através da respiração, eu me sentia muito bem nesse exercício.
Ainda não sei se aí que mora o perigo ou se esses acontecimentos são frutos simplesmente do cisne negro que passou à minha frente naquele momento (in)oportuno. Devia ter corrido aquele tanto sem estar em boas condições físicas? Meu instinto para perceber situações de risco está afinado com os acontecimentos, com a minha percepção? Devo acreditar em minha leitura dos sinais que meu corpo emite sobre minhas condições momentâneas? Hoje estou cheio de perguntas, de dúvidas que não tinha ontem.

O que aconteceu exatamente? Ainda não tenho essa resposta, nem sei se terei. Durante minha corrida eu me senti muito bem, o corpo respondia satisfatoriamente ao ritmo imprimido desde o início. Na volta para casa, faltando um quilômetro para chegar a meu destino tive uma forte vertigem e comecei a me sentir muito mal, repentinamente. Parei de correr e caminhei lentamente o último quilômetro. Chegando à casa de minha filha eu me sentei e a funcionária da casa, que já trabalhou como assistente de enfermagem, tentou medir minha pressão e meu batimento cardíaco e não conseguiu. Chegou então minha filha, médica, também tentou medir minha pressão e não conseguiu. Ligou para um cardiologista conhecido dela, colega médico de trabalho, disse-lhe o quadro, e ele mandou que me levasse ao Hospital Geral de Palmas imediatamente, ele estava de plantão lá, que me atenderia. Foi assim que dei entrada no hospital, sentado em uma cadeira de rodas pela primeira vez em minha vida e foram logo me deitando em uma maca na sala de hemodinâmica, colocando vários eletrodos em meu peito e tentando medir meus sinais.

Pelo número de enfermeiros que surgiram para ajudar percebi que a coisa era feia. A pressão arterial estava em duzentos e trinta por cento e cinquenta e o batimento cardíaco em duzentos e dez. Puta merda. E não conseguiam furar minha veia para introduzir o medicamento. As linhas do eletrocardiograma eram totalmente irregulares e o médico diagnosticou uma taquicardia supraventricular com repercussões hemodinâmicas. Furaram-me em vários lugares onde passava a artéria visivelmente, inclusive na jugular, não havia fluxo sanguíneo para puxar o soro colocado. O médico já se preparava para fazer um corte em minha virilha para se chegar à artéria quando um enfermeiro avisa que conseguiu chegar à minha veia do pé esquerdo e o medicamento começou a fluir.
O curioso vem em seguida. Com a introdução do medicamento em minhas veias, a pressão sanguínea baixou para cento e dez por oitenta e os batimentos cardíacos desceram para setenta bpm. Como uma mágica. E eu voltei a meu estado natural. Qual a explicação para isso? Segundo o médico há em meu coração uma via anômala. O sinal eletro-cardíaco passou por essa via anômala em vez de passar pelo nó sinusal, que controla os batimentos cardíacos colocando-os nos níveis normais. Isso fez subir meus sinais. Parece que essa via anômala é algo congênito, tenho-o e não sabia, e ele nunca antes se manifestou. Só agora, aos meus sessenta e dois anos e onze meses de vida. Porque aconteceu agora? Que relação com a corrida? Que risco corri? Segundo os médicos presentes eu permaneci, durante uma hora e meia, mais ou menos, com batimentos e pressão em níveis altíssimos e não morri, nem tive um AVC, por causa de minha condição atlética.  Ou seja, eu vi a vó pela greta e nem percebi. Eu estava tranquilo, sem entender porque tanta gente em minha volta, porque os olhares assustados de minha filha e meu genro.

E aí vem o fator acaso que nos faz tanto pensar. Por acaso foi a primeira vez que senti isso, por acaso eu estava em férias na casa de minha filha e ela é médica e percebeu a gravidade da situação, o que eu não perceberia se estivesse em minha casa ou em meu escritório, por acaso eu estava em uma cidade pequena a poucos quarteirões do hospital, por acaso o médico de plantão naquele hospital é um dos melhores cardiologista hemodinamicistas da cidade, por acaso tinha um leito vago na enfermaria da hemodinâmica, por acaso o atendimento local foi super eficiente, por acaso eu sou muito saudável para a minha idade. Muitos acasos simultâneos e eu sou um cara de uma puta sorte.

Saí do hospital no mesmo dia, depois de três horas de observação, os sinais voltaram todos ao normal, e eu me senti como se tivesse corrido uma maratona. O que, de fato, representa uma hora e meia com batimentos a duzentos e dez e pressão a duzentos e trinta por cento e cinquenta. Mais até que uma maratona. E agora José? Caso ou compro uma bicicleta? Tenho que consultar um cardiologista, fazer um cateterismo que irá até a tal via anômala e cauterizá-la. Simples? É o que dizem.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA XIII



XIII
Durante muitos anos morei em frente à mata do Jambreiro, em Nova Lima. Que deveria ser mata do jambeiro, pelos inúmeros pés de jambo, ou do Ingazeiro, pelos ingás. Duas frutas insonsas, de duvidoso sabor e que, no entanto, promoviam verdadeiras peregrinações entre nós moleque das imediações, para degustá-los. Era também um bom motivo para fugir de casa e embrenharmos pela floresta, apesar das recomendações de pais e mães e não irmos sozinhos. Mas onças, macacos, e cobras venenosas (de fato esses bichos trançavam por lá) não nos metiam medo. Onça só vi uma vez, de longe. Éramos muitos meninos e penso que ela teve mais medo que nós.

A mata do Jambreiro era densa, cheia de córregos. Ao lado dos córregos, caminhos, veredas, nos sentido roseano da palavra, nem era preciso fazer picadas. Mais de uma vez nos perdemos, sempre encontrávamos o caminho de volta. Quando em vez um grupo de caminhantes de Belo Horizonte se perdia entre jambeiros e ingazeiros. Não voltavam no mesmo dia, dia seguinte uma brigada dos bombeiros estava lá para os procurar. Quando não encontravam os perdidos vinham atrás de nós, os meninos, que já tínhamos fama de bons mateiros. Salvamos gente, certa vez até aparecemos nos noticiários da televisão. 

Atravessar a mata e subir a serra era brincadeira de um dia inteiro. Do alto da Serra do Curral a vista do belo horizonte que se vislumbrava à nossa frente era um prêmio para três horas de caminhada morro acima. Uma maravilha. A volta, mais descida que subida, era feita em menos tempo, malgrado o cansaço.

Pássaros, veados, pacas, micos, tatus, jaguatiricas, cobras, aranhas, eram os animais mais vistos no trajeto. Aliás, não eram sempre vistos. Eles sabiam se esconder, deixavam rastros. E alguns de nós sabiam ler os rastros. Era puro ensinamento e aprendizamento. Uns ensinavam os outros, com método didático mais antigo do mundo: perguntando. – Sabe de que bicho é isso? Sei não. Pisada de jaguatirica. E pelo jeito passou por aqui ontem. Veja as marcas, olha o mato pisado e amassado.  E esse assobiozinho repetido, sabe o que é? Esse tisc, tisc? É, esse mesmo. Sei também não. Assobio de jararaca. Ela avisa para sairmos do caminho dela. No mato tem que ter duas boas orelhas, além de bons olhos. E bons pensamentos. Maus pensamentos não combinam com esse silêncio quebrado pelo farfalhar de folhas e assobios de pássaros e parlamentamento de animais.

Cresci, atravessei a serra e fui para o belo horizonte estudar e trabalhar. Perdi muito daquela sabedoria, que necessita de ser estimulada sempre. E hoje não dá para entrar na mata. As mineradoras a minimizaram e cercaram. De vez em quando arrisco uma visita camuflada. Alguns caminhos ainda estão lá, escondidos. A mata chama nossa alma. E quase nos enfeitiça, como a iara dos rios. Certa vez, em Manaus, quase não voltei.



quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

PENSAR RICO X PENSAR POBRE



Pensar rico ou pensar pobre não é uma questão de dinheiro, é uma questão de estilo de vida. E que faz toda a diferença. Vejamos alguns exemplos antes de maiores considerações ao tema. Quanto pagaríamos por um prato de arroz com ovo no Brasil e na França? Na França não é caro para os padrões locais, mas o prato pode se chamar “oeuf ponché à la provençale” e pode ser chique ou não dependendo do acompanhamento. No Brasil pagamos caro se formos comer em um restaurante francês, muito mais caro que na França. Mas isso não é pensar rico exatamente. Pode ser exibicionismo puro ou pode ser pensar rico se for dar um presente a si próprio e comer com um grande prazer, sem nenhum exibicionismo. E pode-se comer arroz com ovo, pagando barato em um restaurante simples, ou em casa, mas com grande estilo. Ter estilo significa sentar-se à mesa em boa companhia, com os melhores talheres, comer com prazer, devagar, saboreando e sentir-se em Paris comendo “oeuf ponché à la provençale”.

Outro exemplo, esse recente. Em férias em cidade goiana fomos, eu e ela, fazer compras em um supermercado para o almoço desses dias. Pensávamos em algo simples, para rápida elaboração, porque nem sempre gostamos de ir a restaurantes e também porque corremos o risco de, em cidade onde somos forasteiros, pagarmos caros por comida ruim. E o que comprar? As opções  nos supermercados são, geralmente, poucas. Mas aí surge o inusitado. Como imaginar que em um supermercado de cidade de interior iríamos encontrar um pernil de cordeiro? Aí entra a tal questão de estilo, de pensar rico em vez de pensar pobre. É claro que compramos, temperamos, assamos e tivemos umas três refeições regadas a pernil de cordeiro que, aliás, estava divino. Tenro, bem temperado, assado ao ponto. Maravilhoso. O preço? O que pagamos pela peça no supermercado não chega nem perto de qualquer refeição (uma refeição) que faríamos em qualquer restaurante da cidade turística, para duas pessoas. O tempo? Levar para casa, temperar, ligar o forno e assar por três horas. Enquanto isso fazíamos outras coisas.

Pensar rico, e saber administrar as ações seguidas a esse pensar, só trás lucros. Pensar rico é pensar em si, é pensar e agir em prol de seu lazer e prazer, sem prejudicar outros. Aliás, é convidá-los para participar da festa. Pensar rico é não se preocupar com o que outras pessoas estão pensando a nosso respeito, é não ser exibicionista, é não ter inveja (inveja é coisa de quem pensa pobre, não necessariamente de quem é pobre).


Pensar rico é dar-se um presente desejado e interessante, dentro de seu orçamento, claro, e imaginar-se como sendo a pessoa mais rica do mundo fazendo aquilo. Pensar rico é fazer o que gosta, é cultuar a si próprio, com estilo. É autovalorizar-se. É também pensar que, sendo grande, pode contribuir para o crescimento dos outros. Pensar rico é crescer para contribuir. É uma missão de vida. Pense rico.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA XII


Entre os quinze e os dezoito anos eu não tinha a menor ideia do que era namorar. Para mim significava encontrar uma garota, dar uns amassos, trocar uns beijos, se fosse bom marcar um reencontro que poderia acontecer ou não. Ter uma namorada era ter alguém que nos desse a permissão para isso. O que não significava que eu não arrumaria outra no dia seguinte, na esquina seguinte. O que não significava que eu assumiria um compromisso de longa data. Minha mãe me ensinava, e insistia, que eu devia respeitar as meninas. O medo dela era apenas para eu não transar com moças de família, mesmo se elas quisessem transar comigo. Ô praga, viu? Aprendi que praga de mãe pega. Pega, não, prega. Como carrapicho. E por causa disso, e também porque eu não tinha dinheiro para sair com as namoradas para lugares apropriados à  prática do amor livre em moda na época, ganhei uns chifres. E morria de raiva por ser tão ingênuo.

Por isso eu gostava de viajar. Em viagens para a casa dos parentes eu tinha algumas chances. Como iria embora depois o descompromisso era confortável. Uma dessas viagens era ir para a casa da tia e madrinha em João Monlevade. Eu tinha o carinho e bajulação da tia e das primas e um brinde fenomenal. Meu tio tinha um mercadinho na garagem de sua casa e uma funcionária bonita e simpática. Nos fundos da garagem havia um depósito de mercadorias onde guardava sacas de arroz, feijão, milho e outras maravilhosas iguarias. Maravilhosas porque eram camas perfeitas. Findo o expediente do dia, cerrada a porta do armazém, era o momento da hora extra. Ninguém da casa nunca nos pegou nesse conluio amoroso, se pegou fingiu que não viu. O problema era a justeza das férias. Rapidamente chegava a hora de voltar para casa. E nas férias seguintes o armazém havia fechado definitivamente suas portas, não sei se prejuízo nos negócios ou outro motivo qualquer.

Outra viagem interessante era ir para a praia em Nova Almeida, casa de praia de um outro tio. Quase sempre casa cheia, eu dormia em uma rede na varanda. Isso dava uma grande liberdade de entrar e sair desde que, quando os adultos levantassem para o café da manhã seus carros estivessem limpos da poeira do lugar e da neblina da madrugada. O que eu fazia com prazer porque tinha uns trocados para meu gasto e comida de primeira, porque a mesa do anfitrião, o tio, era sempre farta. E, à noite, eu tinha companhia na praia. Uma namorada praiana, nem sei que idade ela tinha, sei que trabalhava como professora, sempre me acompanhava. Assim descobri o prazer de transar ao relento, com a brisa do mar e o sussurro das ondas. Areia às vezes incomodava, mas... A praga de mãe continuava pregando.


Minha mãe afastava as moças que me procuravam em casa, insistia para que eu não enrolasse (enrolar = transar) com moças de família, as mulheres da zona eram transmissoras de doenças contagiosas, o que me sobrava? A vulnerabilidade a um preconceito recorrente: nem moças de família, nem mulheres da zona. As maravilhosas (hoje eu sei) moças libertárias, de pensamentos desamarrados a uma moral vigente e que, por isso mesmo, me enchiam de medo para manter um relacionamento estável, mas de quem eu não abria mão de encontros nas horas mais altas da noite para a prática de meu treinamento amoroso-sexual. Hoje eu me envergonho da não retribuição do mesmo carinho, da mesma disponibilidade, do fazer escondido como se elas não tivessem dignidade. Hoje eu reconheço que foram essas maravilhosas mulheres que muito me ensinaram na vida e tinham, na época, essa esdrúxula classificação: nem “moças de família” nem “mulheres da zona”. E esse meu envergonhamento só vem a público porque esse relato ficará contido nessa autobiografia desautorizada, uma vez que expõe dois fatos nada simpáticos: a influência negativa da mãe em meu aprendizado amoroso-sexual (junto à ausência do pai nesses momentos) e a construção de um preconceito na minha jovem cabeça. O velho problema de gênero na formação dos jovens!

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...