sexta-feira, 28 de março de 2014

O SUMIÇO DA BOINA


23/03/2014

Viajei para Ushuaia, Argentina, depois de uma parada de um dia em Buenos Aires, e tinha a boina na cabeça. O clima frio convidava a seu uso. Em Ushuaia nevava e/ou chovia quando saí do aeroporto e peguei um carro alugado para ir direto a Estância Rolito, a 150 km, onde passaríamos a noite. Na Estância estava muito frio e ventava muito. Troquei a boina quase vermelha por uma outro de lã, mais quente, que me protegia as orelhas. Para não perdê-la coloquei na mala. Guardei-a.
Não mais me preocupei com a boina. Quando se viaja todos os dias para diferentes lugares quanto menos se mexe na mala, melhor. Acumulamos roupas sujas num canto da mala separando-as das roupas limpas de forma mais ou menos organizada em função do que se vai usar nos dias seguintes. Os tempos de pausa sendo curtos o melhor a fazer é aproveitar o melhor possível os caminhos, novos caminhos. Um dia são os pinguins, outro é caminhada no parque da Terra do Fogo, depois a visita a outra estância, e a boina guardada na mala era certeza, a ventania era verdade, melhor tê-la lá.
Um dia sem vento aguçou-me a vontade de colocar na cabeça minha querida boina. Abro a mala e ... onde está? Reviro tudo, misturo sujas com limpas, cuecas com camisas, meias com calças, e cadê minha boina? Esvazio a mala, organizo-a de novo, e nada de encontrá-la. Como desapareceu? Para evitar perdas, sempre que deixo um quarto de hotel eu faço uma checagem de abandono. Com as malas do lado de fora, volto lá e verifico tudo de novo para certificar-me não ter deixado nada para trás. E porque alguém roubaria a boina se dentro da mala havia dois blusões de couro mais bonitos e caros?
Eu a comprei em Montevidéu uns cinco anos atrás. Estava frio e ela me aquecia a cabeça cada vez com menos cabelos. Em Belo Horizonte o frio é curto e eu a usava no inverno quando visitava cidades de temperaturas mais baixas. E foi assim que, em um passeio com meu pai, careca de todo, em uma cidade fria, eu a coloquei na cabeça dele. Ele reclamou o esquecimento de seu boné, aceitou minha boina de bom grado. Gostou tanto dela que eu deixei-a em sua cabeça pelo tempo que quisesse. – Não vai fazer falta não, filho? – Quando você não precisar mais dela eu a pego de volta. – Exatamente como aconteceu.
Nos últimos meses, doente, meu pai não a tirava da cabeça. Sentia muito frio. Nova Lima, sua cidade, é fria e ele, em sua fraqueza crônica e ampliada progressivamente, agasalhava-se sempre. Ao sair do banho precisava ficar um tempo debaixo dos cobertores para se aquecer. Levantava já com a boina. Em suas últimas fotos ela era presença constante. Com sua magreza evolutiva ela parecia maior que sua cabeça.
E eu a peguei de volta quando ele não precisou mais dela. Não sem impor minha condição de proprietário. Muitos a queriam como lembrança. A boina já era parte dele, como uma prótese. A boina e a bolsa de colostomia, depois de sua cirurgia.


E a boina desapareceu, misteriosamente, de minha mala, em algum lugar entre Ushuaia e El Calafate, na Argentina, tendo no caminho Punta Arenas e Puerto Natales, no Chile. Levada por um condor? Talvez eu não fosse mais o proprietário. Talvez ele tenha se apropriado dela de vez. Que a guarde bem, então.


sábado, 8 de março de 2014

A MORTE E A MORTE DE FRANCISCO


Escrevi que não mais escreveria sobre a morte e a morte de meu pai. Furo a promessa só por uma razão: sua imagem deixou de aparecer em meus sonhos. Ele aparece em meus sonhos como névoa fugidia. Pergunto, no sonho, à minha mãe: - onde está papai? Ela responde: - está lá na frente. Eu olho "lá na frente" e vejo apenas uma luz e uma sombra desaparecendo na curva. São a luz e a sombra que o acompanham, reconheço os traços no chão. Agora sim, escrevo novamente que não mais escreverei sobre a morte e a morte de meu pai. E mais: creio que não sonharei mais com ele.

( O título é uma paródia - homenagem ao título de uma novela de José Saramago - A morte e a morte de Ricardo Reis. Ricardo Reis é um dos pseudônimos de Fernando Pessoa).

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...