sexta-feira, 27 de setembro de 2019

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXX


Volto a escrever seguindo uma cronologia aleatória, não posso me furtar a pensamentos e lembranças que vem à minha mente. Sei que a memória é uma construção contínua, amanhã posso não me lembrar dos fatos que estou me lembrando agora, ou me lembrarei de uma forma diferente, como se os fatos mudassem à medida que os tempos do relógio se mostrassem diferentes, ou à medida que vamos acrescentando informações, mesmo que estas novas informações pareçam ser indiferentes ao fato que queremos narrar, não sei. Sei que cada vez que contamos uma história contamos diferente.

Certa vez li uma reportagem sobre uma cidade da Europa, cidade pequena, em um vale cercado de montanhas, cujas casas tinham telhados de pedras azuis. Telhados de pedra em cidadezinhas europeias são comuns, telhados de pedras azuis, como ardósias, não são comuns. Eu me encantei com as fotos, parecia uma cidade conhecida, onde eu poderia ter passado, então à noite sonhei que estava andando pelas ruas daquela cidade da foto, encantado com os telhados de pedras azuis. Nada de mais, salvo que dias, ou meses, mais tarde eu contava uma história, real, acontecida comigo, e disse a meus interlocutores que a história se passava em uma cidade de casas com telhados de pedras azuis. Parei assustado no meio da história, mon dieu, não é verdade. Estarei mentindo? Inconscientemente?

Por isso digo que escrever uma autobiografia pode ser uma empreitada perigosa e sei lá se minhas lembranças são totalmente reais ou se tem fatos acrescentados de sonhos, de visões, ou de invenções. Insisto, então, que minha autobiografia é desautorizada. Amanhã posso entrar em juízo contra o autor, perdas e danos por contar mentiras a meu respeito. O que sei é que exponho aqui minhas vulnerabilidades, essa é a razão principal de minha narrativa, o objetivo central de meus relatos. Na verdade, quero me purgar, me curar de minhas mazelas. Penso que expondo-as, contando-as para os amigo(a)s leitores, ele(a)s possam me ajudar a compreender minhas dores e como elas ainda me abalam. E, quem sabe, me livrar delas.

A minha história de hoje é verídica, por enquanto. Eu tinha uns quarenta anos quando conheci uma mulher interessante. Inteligente, madura, cheia de histórias de vida, um olhar ativo e altivo, carinhosa. De oitenta anos. Não dei muita bola, porque duas pessoas me apresentaram a ela: uma de quem eu gosto muito (até hoje) e outra de quem eu não gostava muito na época. Então fiquei dividido: gosto ou não gosto dela? O tempo optou pelo “gosto dela”. E nos tornamos amigos. Ela tinha filhos insanos, estranhamente arrogantes, como se sentissem as melhores pessoas do mundo e tivessem sido traídos pelo andar da carruagem, pelos acontecimentos políticos. A família tinha sido altamente beneficiada pelos tempos de ditadura, que findaram um dia, e as benesses às quais eles estavam acostumados sumiram, mas eles não tiraram o pelotão do quartel, esperando que, um dia, que não veio, as coisas voltassem aos eixos, eixos deles. Um ser dessa família se indignava sempre que seus filhos não conseguiram vagas em boas universidades, nem bons empregos, etc.

Essas são histórias paralelas, não me interessam. Quero escrever sobre minha amiga de quarenta anos mais que eu. Ela gostou de mim e sempre pedia minha presença em sua casa. Eu a visitava de vez em quando e levava livros para ela ler, ela gostava de ler, principalmente de poesia, algumas ela recitava de cor, aquelas parnasianas de sua juventude. Então me animei a levar poesias minhas para ela ler. Para minha surpresa ela gostou de meus poemas e os lia sempre e, inclusive os lia para as amigas.

Mas o tempo passou, vinte anos depois e ela estava centenária e, óbvio, não tinha mais o mesmo brilho, nem a mesma lucidez, apenas a mesma fleuma. Depois dos noventa anos ficava quase o tempo todo na cama, sob cuidados de terceiros. A família, seus filhos e netos insanos, cuidavam dela como se cuida de bebês travessos, sem vontades, como se fosse um problema a ser escondido no armário, ou pelo menos em um quarto do segundo andar, nos fundos, de um prédio de bairro classe média. Nunca mais saíram com ela, nem a puseram em uma cadeira de rodas para passear. 

Eu a peguei uma vez no colo e a levei para dar uma volta de carro e isso quase deu história. Eu soube que ela pedia que ligassem para mim, mas pedia àquela pessoa que não gostava de mim e o recado chegava com muito atraso. Mas sempre que eu a visitava ela se alegrava. Um detalhe dos encontros é que ela, em sua cama, sempre me beijava nos lábios. Loucura? Pode ser. Hoje imagino que era uma fantasia de uma pessoa que, quando jovem, vinte e poucos anos, teve que se casar com um homem apenas porque dele se engravidou, e com quem teve outros dois filhos. E algumas pessoas a julgavam uma mulher má, pois quando esse marido envelheceu e precisou de cuidados especiais ela o tratou mal. Maldade? Vingança? Tudo pode ser, mas eu a perdoo.  

O fato é que ela me beijava sempre que eu chegava e saia da beirada de sua cama. Eu o fazia meio sem jeito no começo, depois comecei a esconder o carinho das outras pessoas que por acaso estivessem no recinto, para não provocar celeumas. Mas celeumas aparecem. Surgem do nada. Como no dia em que ela estava hospitalizada e não se lembrava de ninguém, nem mesmo dos filhos, octogenários todos eles. Eu cheguei, me aproximei, beijei-a escondendo o rosto dela com minhas costas largas, comecei a conversar com ela e ela se lembrou de mim, e falou meu nome e continuou sem lembrar dos outros. E seus olhos brilharam quando eu disse que a levaria para ver o carnaval (estava próximo do carnaval). Então ela me disse que a última vez que saiu de casa foi aquela em que eu a peguei no colo e a levei para ver a decoração de natal na Pampulha. Quase dez anos antes.

Um dia ela me disse que estava chegando ao fim e que eu não voltasse mais. Não voltei, embora tivesse notícia de que ela teria me chamado algumas vezes, e pedido para telefonar para mim, as pessoas de sua proximidade pensavam que estava delirando. Claro que estava. Os recados chegaram depois de sua morte, ao cento e dois anos. Aí eles diziam: Paulo, como ela gostava de você.

Algumas pessoas me definem como mulherengo. E algumas pessoas muito próximas. Eu concordo. Escrevi e li poesias para uma mulher de cem anos. Que me beijava nos lábios. E que se sentia feliz quando me via. E que se lembrava de mim quando não se lembrava de mais ninguém. Os detratores dirão que não perdoo nem as velhinhas. Mas se alguém perguntar se eu tive um amor sincero eu direi: sim, eu tive. Felizmente, mais de um.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXIX


Humberto Mauro, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Sarraceni, Guimarães Rosa, Oswald de Andrade, Carlos Drumond de Andrade, Thiago de Melo, Manoel de Barros, Torquato Neto, Wali Salomão, Pixinguinha, Villa-Lobos, Ernesto Nazaré, Chiquinha Gonzaga, Zé Coco do Riachão, Cândido Portinari, Yara Tupinambá, Lígia Clark, Hélio Oiticica, Rodolfo Caniato, Francisco Prado, Luiz Carlos Alves, Jaguar, Ziraldo, Henfil, Marília Pera, Yonná Maglhães, Jofre Soares, Sérgio Ricardo, Othon Bastos, Geraldo Del Rey, Leonardo Vilar, Tom Zé, Gal Costa, Maria Bethânia, Francisco Magalhães, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Mário Faustino e muitos outros cujos nomes se perderam em minha memória, mas com mesma ou maior importância em minha formação cultural, a vocês eu agradeço e peço perdão, simultaneamente. Agradeço porque nos anos mil novecentos e sessenta e tantos, alguns de vocês estavam construindo um país que pudesse ser digno desse nome, outros foram apenas precursores. Mas a ditadura militar, de mil novecentos e sessenta e quatro interrompeu bruscamente o processo. Alguns se perderam, outros foram forçados a mudarem para sobreviverem. O Brasil mudou de rota, a construção ruiu. Peço perdão porque a minha geração não foi capaz de dar continuidade à obra em curso.

Peço perdão a meus filhos e a meus netos, por ter me acovardado, com medo, e não haver me movimentado o suficiente para fazer voltar o rio a seu curso. O desvio foi fatal. E o que temos hoje é uma legião de governantes sem caráter, sem moral para reconstruir uma nação digna. Não são homens, são chupa-cabras, sanguessugas, vampiros a sugar o sangue de pessoas e de instituições apenas para alimentar seu egoísmo.

Não dá para recuperar, não dá para desfazer o passado e continuar como se nada houvesse acontecido. A nossa elite cultural de hoje também não tem moral nem caráter para liderar um processo de recuperação do país. A mudança só pode vir de baixo para cima, só pode vir da periferia. Temos que criar outro país e encontrar novos rumos. Hoje eu boto fé na cultura que vem das periferias, dos movimentos negros, dos indígenas (que são os grandes diferenciadores de nossa cultura com relação à cultura europeia, mesmo à luso-fônica), dos quilombolas, das culturas afro-brasileiras em geral. Boto fé nessa moçada que hoje chega às cidades, às universidades (graças a um pouco de lucidez de alguns governantes de um passado recente) e que mostram sua cara, sua arte, sua disposição de encontrar um lugar ao sol, com suas diferenças em relação à cultura estabelecida, branca e racista.

Em Belo Horizonte, vamos ao Teatro Espanca. É lá que essa nova cultura toma força.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXVIII


Escrevo essa página de minha autobiografia em um dia dedicado aos professores: quinze de outubro, considerado o dia do professor. Eu exerci este ofício durante quarenta e três anos e ainda hoje sou convidado para proferir palestras e ministrar oficinas para professores e alunos, e me pergunto: um professor aposentado ainda é professor? A resposta é sim. Entrou no sangue e agora faz parte do DNA.

Ainda me lembro do primeiro dia. Escrevi sobre isso em algum lugar anterior, mas não custa relembrar para introduzir a questão nesta narrativa. Eram cinco horas do entardecer de um dia de fevereiro do ano de mil novecentos e setenta e um (eu tinha dezoito anos), eu estava de calções pretos, sem camisa e de kichute (um calçado usado para jogar em campos de terra), no centro do campo de futebol, posição que eu jogava, suado, quando um carro para à beira do campo, desce uma mulher morena e bela, de óculos escuros e saias curtas. Ela me chama pelo nome. Eu a conhecia, ela havia sido minha professora em algum tempo de ensino médio e era amiga de minha namorada na época. Claro que a turma de futebolistas assobiou, gracejou e brincou comigo. Aproximando de minha amiga, fui logo ouvindo: Tome um banho rápido pois preciso de você para dar aulas de matemática na escola que eu dirijo, em Rio Acima (MG). Eu? Sim, você mesmo. A primeira aula é as dezenove horas e temos uma pequena viagem a fazer (uns vinte quilômetros entre minha casa e a escola na cidade vizinha, por uma estrada de terra, na época). E foi assim que eu deixei de ser um jogador de futebol mediano e tornei-me professor. Em todos esses anos apenas uma vez tentei exercer outra profissão. Tentativa que durou oito meses. Quase sem perceber fui retornando à sala de aula.

Lembro-me também da última vez. Também fevereiro, dois mil e quatorze. Sem pompa, sem despedidas. Aquela retirada quase invisível, sem avisar a quase ninguém. Nos últimos anos de trabalho fui me acostumando à ideia de parar e tornei-me o mais transparente possível para não ser percebido na instituição em que trabalhava. Missão bem-sucedida. Ninguém percebeu que eu me afastava. Descobri, tristemente, que ambiente de trabalho, como em uma instituição de ensino, não é ambiente que favorece amizades. As vaidades e individualidades são enormes e ultrapassam e escondem o trabalho coletivo. Os amigos que ficaram são alguns alunos. Dois anos depois voltei à escola e encontrei nos corredores um ex-colega de trabalho. Ele se dirigiu a mim e perguntou porque eu havia sumido. Aposentei-me, disse. Verdade? Eu não sabia. E o assunto caminhou para amenidades.

A ideia de transparência está ligada ao desapego. Para fazer outras coisas na vida eu necessitava me desligar da profissão, do cotidiano das escolas, da proximidade emocional com os alunos. Faço outras coisas na vida, mas atuo como voluntário, em outras escolas, ajudando professores e alunos em seus projetos. Sinto-me bem com isso.

Tenho muitos episódios e histórias interessantes vividas nesse tempo de trabalho. Iniciarei com um episódio que talvez tenha sido o primeiro caso marcante em minha vida profissional e que me ajudou a definir algumas condutas pedagógicas. Em mil novecentos e setenta e cinco eu trabalhava como professor de Física de turmas do terceiro ano do Ensino Médio do Colégio Padre Machado, na Savassi, avenida Contorno, Belo Horizonte. Uma das turmas era extremamente interessante, instigadora, com alunos inteligentes e revolucionários. Esses alunos incentivaram-me a unir a dois outros professores: Eci, professor de Matemática, e Sebastião, professor de História, igualmente revolucionários. (Sebastião tornou-se uma figura pública, ligado a uma ONG conhecida; de Eci não tenho notícias). Começamos a fazer um trabalho pedagógico diferenciado com esses exigentes alunos que se tornavam cada vez mais revolucionários, questionadores dos métodos de outros professores e da própria escola. Dois antigos professores da escola (Pudim, de Química, e Peninha*, de Matemática, seus apelidos) fizeram uma campanha devastadora contra nós três. Lembro-me de uma reunião de professores, convocada pela diretoria sob pressão dos dois, em que nós três fomos colocados no paredão de fuzilamento, na berlinda, para ser mais suave, e os dois professores citados até babavam de raiva. Defendemo-nos da melhor maneira possível, Eci e Sebastião eram ótimos argumentadores, mas ao final do ano fomos demitidos. Eu tinha vinte e dois anos. Conseguimos implantar algumas ideias nos alunos, eles fizeram a cobrança no ano seguinte. E os dois professores raivosos ficaram na história da escola como responsáveis pelas mudanças pedagógicas implementadas nos discursos e nas práticas dos professores e diretores. Copiadas de nós, é claro. Assim é a vida.

Hoje, quando perguntam minha profissão, ainda respondo: sou professor. Escondo que sou aposentado. Onde trabalha? Na escola da vida.

* Esclarecimento: esse Peninha não é meu querido amigo Carlos Afonso, com o mesmo apelido, também professor de Matemática, mas na UFMG, recentemente falecido.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXVII


Jandira, minha mãe, tem mais de noventa anos.  Hoje é segunda-feira, manhã, e estou em sua casa esperando a entrega de materiais para que se conserte o telhado da casa, que anda precisando de reparos antes da próxima chuva. A madeireira deu-nos o “cano” e ficamos a conversar de coisas da vida enquanto esperamos os que não chegam. Ela gosta de conversar, quando encontra alguém com paciência de ouvir, já que ela escuta pouco, ela aproveita para contar seus inúmeros casos acontecidos, vivenciados ou simplesmente ajuntados durante sua rica e longa vida, divertida vida segundo seus relatos. O “divertido” fica por conta de sua imaginação, ela sempre faz os casos parecerem divertidos, pelo seu jeito alegre de contá-los.

Jandira, minha mãe, mora sozinha apesar da idade. Acaba de me confessar que não vai morar com nenhum dos filhos por várias razões, embora alguns de seus nove pimpolhos insistam para que ela se mude para a casa de um deles. E eu lhe dou razão, seus motivos são óbvios. Ela mora em uma casa grande, duzentos metros quadrados de área construída, em lote de trezentos e sessenta metros quadrados, com quintal e jardim e algazarra de pássaros pela manhã, para os quais joga canjiquinha, para alegria deles. E em qualquer casa que for morar, ela se confinaria em um quarto apenas, não teria grande liberdade. Ela afirma, ainda, que morar na casa dos outros significa seguir regras dos outros, e, a esta altura da vida não quer seguir outras regras senão as suas próprias. E aqui onde está ela recebe as pessoas, conversa com toda a vizinhança, entra e sai a hora que quer, deita e levanta quando quer, faz sua própria comida, come nas horas certas por força de hábito.

Jandira, minha mãe, adora contar casos. Depois de tantos anos ouvindo-a eu já conheço a maioria dos casos que ela conta, escuto-os de novo como se primeira vez fosse, rio de novo, comento para que ela pense que é a primeira vez que o ouço, faço perguntas para ver se não há acréscimos na narrativa, alguma coisa que ela não tenha contado antes, em geral não, até as posições das vírgulas no texto falado são as mesmas. De vez em quando tem um caso inédito. Como da vez em que ela soltou a história de qual seria meu nome se meu pai me registrasse segundo sua sugestão. Essa eu nunca tinha ouvido falar nos mais de sessenta anos que eu a escuto. Segundo ela, o nome sugerido a meu pai, para meu registro civil seria Álvaro Francisco, nome de um radialista da rádio Itatiaia dos tempos em que ela tinha vinte e poucos anos e morava em Belo Horizonte no bairro Santa Efigênia. Meu pai, que se chamava Francisco, alegou que era Francisco demais, a concorrência seria grande. E, ainda, ele tinha ciúme de seus tempos de jovem, não seria nada agravável para ele saber que minha mãe pensava em um desconhecido (para ele) radialista toda vez que me chamasse pelo nome completo. Por isso não me chamo Álvaro Francisco.

Jandira, minha mãe, repetir os casos que conta não é novidade para nenhum de seus filhos e amigos. Hoje, no entanto, surgiu algo novo. Ela me contou o mesmo caso, duas vezes, em um intervalo de uma hora. Uma senhora vizinha, quase tão idosa quanto ela, veio lhe fazer uma visita, como sempre, entrou para me conhecer, contou casos, riu, e ficaram numa delongada conversação, dessas em que um desentendido como eu não faz ideia de que elas estão falando, embora falem alto devido a dupla deficiência auditiva. Muito engraçado quando ficamos a ouvir, mas os assuntos são tão particulares das duas, melhor não ouvir. A vizinha tem um marido doente e veio pedir conselhos à minha mãe sobre que atitudes tomar com relação aos cuidados de seu marido que não sai da cama e precisa da atenção de uma cuidadora especializada, e a relação dela com a cuidadora não anda muito profícua. Conselho dado, anotado na memória talvez, o assunto se diversifica. E sobre qual seria esse conselho foi o caso que minha mãe me contou por duas vezes seguida.

Porque isso merece uma página de minha desautorizada autobiografia? Porque, aos noventa anos, ela começa a dar alguns sinais de que sua memória não anda tão boa, de que, finalmente, o desgaste imposto pela idade traz algumas dificuldades. E que, segundo ela, está chegando a hora de sua partida desse mundo, já que seu acordo com o divino foi de permitir que ela viva bem até os noventa anos, depois disso, a vontade dele será feita. Vale registrar que ele, o divino, seja lá quem seja, tem cumprido à risca sua parte do acordo. Jandira vive bem, tem saúde, não toma medicamentos, faz sua visita médica mais para contar casos para o médico que para efetivamente se medicar. E, como ela mesma diz, está enrugada por fora, mas por dentro é lisinha. Embora lisinha, embora vivendo bem, de vez em quando a pegamos tristezinha, com uma angústia Roseana, dessas que pega sem mais nem menos as pessoas do bravo sertão, que tiveram ou tem uma brava vida, de pegar em boi pelo chifre e jacaré pelo rabo. Será que o acordo se cumprirá? Fiz essa pergunta a ela e tive como resposta: o que tiver que ser será, já vivi tudo que eu queria. E seus casos repetidos à extravagância? Quem continuará contando?

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXVI


E um belo dia Santiago fez noventa anos. Faleceu aos noventa e poucos e deixou muita saudade, principalmente pelo seu bom humor e suas frases de efeito. A vida dele se liga à minha como eu mesmo, talvez, jamais imaginasse. Ele esteve presente na minha infância e juventude e seus filhos se ligaram a mim por toda a vida. Éramos vizinhos, morávamos em um pátio isolado dentro de uma subestação de distribuição de energia elétrica, sem muito contato cotidiano com a vizinhança, que era pouca, e nos víamos todos os dias. Aquelas coisas de vizinhos, encontrar na rua, brincar junto, brigar uns com os outros, mas correr uns para perto dos outros em qualquer pequeno contratempo. Mas Santiago, vinte e sete anos mais velho que eu, adorava futebol. Como eu. E, à medida que os pequenos iam crescendo, íamos formando nosso time de pelada. Era ele para um lado, eu para o outro. Porque éramos os mais velhos, tínhamos mais intimidade com a redonda e éramos donos da “caixa de ferramentas”. Depois tinha Marcinho e Júlio, os mais novos, nos dois gols e os demais eram distribuição conforme o dia e as presenças. Edilson, Eduardo e Guilherme, os mais técnicos, de maior domínio das jogadas, mais dribladores, e armadores de boas jogadas. Zezé, Edison e José Roberto mais durões, mais raçudos e necessários em qualquer time. Se tínhamos seis em campo já dava uma boa disputa. Às vezes contávamos com alguns meninos da vizinhança, mas nem sempre. E todos os dias, mais tarde ou mais cedo conforme a estação, nos reuníamos no pátio para uma pelada. Até escurecer.

Crescemos, mudamos, nossas casas foram demolidas, cada um foi para um canto da vida, mas a reunião esporádica nos enche de alegria e emoção. Nunca vi turma mais emotiva e chorona. Homens e mulheres. Não tem como encontrar um deles e não derramarmos algumas lágrimas. Dizem que amizade se mede com esses indicadores objetivos: quanta comida comemos juntos, quantas lágrimas derramamos juntos e quantas risadas demos juntos. Temos todas essas medidas no limite máximo.

Esse dia, ao qual me refiro nessa crônica, foi um desses dias, Santiago fez noventa anos, uma boa desculpa para nos encontrarmos. E comemos juntos, e choramos juntos e rimos juntos. E hoje dançamos juntos também. Todos dançamos. Dancei com as matriarcas, Alzerina e Jandira, dancei com os amigos de infância, dancei junto e dancei sozinho. Santiago se lembra de uns e não se lembra de outros, normal para a idade. Alzerina está feliz como uma menina, forte e lutadora como uma jaguatirica. E o time de pelada se reuniu completo, mais uma vez. Ninguém aguenta mais correr atrás da bola, corremos atrás das alegrias e corremos para manter longe, bem atrás de nós, nossas tristezas. Mas estávamos lá. Só faltou o Zezé Rodrigues, com sua alegria e sua porra-louquice doce de sempre. Mais uma vez comemos, rimos e choramos. E dançamos. Meus irmãos de sangue e de vida, eu vos amo.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXV


Dizem que é bom reconhecer seus erros, faz bem à mente, ao coração, sei lá a qual parte do corpo e do cérebro. Não importa, reconhecer erros pelo menos ajuda a pensar em fazer diferente daqui para frente. E de qual erro eu quero me redimir? Simples, apenas um errinho de nada, simples, porém devastador, destruidor. Eu sou uma fraude. Quê? Repete, por favor. Eu sou uma fraude. Em todos os sentidos. Eu fui e sou uma fraude como pai, tanto dos filhos biológicos, quanto dos adotados. Perdi o melhor da convivência com eles por pura negligência, por não estar presente, por não compartilhar com eles seus momentos importantes, com todos os quatro. Resultado: a distância deles comigo é flagrante, não sinto que eles têm aquele prazer em estar comigo como vejo em outras relações entre pais e filhos.

Fui e sou uma fraude como marido. Nos dois casamentos. A primeira esposa, hoje, sequer me olha nos olhos, prefere não me ver, o que cria certos constrangimentos quando estamos no mesmo espaço ao mesmo tempo por causa dos filhos e netos. A segunda esposa quer me ver pelas costas. Diz que é um sacrifício viver comigo e que não tem mais nada para me falar. Está esperando eu decidir quando vou fazer as malas e ir embora e deixá-la em paz e livre. E não se separa de mim por princípio. E que eu devo ir para lhe dar uma chance de ser feliz outra vez.

Fui uma fraude como professor e pesquisador. Não valorizei meus diplomas e títulos, poderia estar ganhando mais hoje como aposentado porque não tive paciência de enfrentar a burocracia e defender meus direitos trabalhistas. Deixei coisas para trás, tinha uma preguiça enorme de preparar provas e corrigi-las, deixei de publicar artigos e livros, e relatórios incompletos que me são cobrados até hoje.

Sou uma fraude como escritor. Tenho um livro publicado e não estou fazendo nada para colocá-lo à venda, em distribui-lo permitindo a leitura de outros. Relendo o que escrevi até hoje e escrevo nos tempos atuais, fico com a pergunta: quem vai ler essas merdas? Apesar disso sou compelido a sempre escrever mais e mais, penso que não sei fazer outra coisa. Vou deixar enormes arquivos cheios de poemas, crônicas e outros assuntos armazenados em alguma nuvem, inacessíveis porque ninguém terá a senha de entrada.

Sou uma fraude como coach. Gastei um bom dinheiro me formando neste ofício, imaginando que poderia ajudar muita gente e ainda ganhar um bom dinheiro. e onde cheguei? Em lugar nenhum. Não tenho clientes, ninguém me procura, aqueles a quem eu atendi não me indicaram a ninguém. Isso é uma prova de que não gostaram de meu trabalho, então me indicar para quem? Meu pensamento agora é se vale a pena continuar com essa farsa.

Entrei para um grupo de marketing multinível na esperança de conseguir entusiasmar outras pessoas a entrarem também e até o momento não consegui mostrar essa possibilidade nem para minha própria família, se bem que coloco em questão se, de fato, eu tenho uma. Porque nesse momento, domingo dia dos pais, eu estou absolutamente solitário na cozinha de minha casa escrevendo bobagens. Como entusiasmar alguém se a minha maré anda tão baixa? E trabalhei o dia inteiro, fiz muitas tarefas hoje, mas, quem se interessa? Também não fiz nada para agradar alguém, não estou interessado se alguém se interessa ou não pelo que eu fiz. A própria solidão que sinto agora não me preocupa, a gente tem que saber ser só, independente, para conseguir sobreviver neste planeta chamado Terra, neste lugar chamado mundo. O fato, no entanto, é que estou cansado, muito cansado para tirar a bunda da cadeira e ir fazer algo de útil, porque escrever essas porcarias aqui não é útil nem para mim mesmo. Penso que não serve nem como desabafo.

Diante dessa constatação, de que sou uma fraude e que quase nada se aproveita de tudo que eu fiz, fica a pergunta: se eu morrer hoje, quem chorará por mim? Quem velará meu caixão antes que ele entre no crematório? Quem sentirá minha falta? Quem dirá – ali vai um grande cara? Que legado deixarei que faça com que alguém se lembre de mim daqui dez anos? Ninguém e nada são as respostas para essas perguntas.

O que fazer agora? Dizer que vou ali na esquina comprar um cigarro e desaparecer, não serve, pois eu não fumo. Poderia dizer que fui tomar uma cachaça no boteco da esquina, mas também ninguém acreditaria já que nunca fiz isso. Bebo minhas pingas em casa mesmo. Sair à francesa, de fininho para que ninguém perceba? Fazer alarde, xingar, chorar, bater a porta e dizer adeus? Esperar mais um tempo para ver como as coisas ficam? Ou ficar e tentar reverter o processo? Será que poderia corrigir esse “pequeno” erro? Eu poderia ainda tentar ter um papel importante, de protagonista, neste ambiente em que vivo? Que devo fazer para modificar minha vida daqui para frente e viver melhor que hoje? O que fazer amanhã para mudar esse quadro e me sentir importante?

Quero ser importante para alguém. Para mim mesmo, pelo menos.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXIV

No meio do caminho entre minha casa, no bairro Cabeceiras, na época considerado a beirada do fim do mundo, terra de estranhezas e de pobrezas, e o centro da cidade, havia uma venda. Venda de bairro, dessas que vendia de um tudo, na verdade o que mais se vendia era a cerveja, a cachaça da boa (?) e tira-gostos bem preparados. Como o dono da venda parecia ser um sujeito de bem, a casa estava sempre cheia de gente. O que me chamava a atenção, no entanto, era uma foto na prateleira da venda. Uma mocinha sorridente, bela, um sorriso de flor em desabrocho. Todos os dias interrompia minha caminhada vigorosa a rumo de casa, vigorosa porque minhas recomendações eram de não perder tempo na rua, a rua como um depositário de más companhias e de provocações à mente e à alma de um jovem mancebo. Eu nem me lembro que idade tinha, uns quatorze, quinze anos, a libido começando a fazer parte de minha biografia, e tinha aquele sorriso particular na prateleira da venda. Se não fosse a timidez escandalosa eu entraria e pediria que me apresentassem à proprietária daquele sorriso, certamente ela me receberia com alegria, ninguém com aquele sorriso tornado público pelo próprio pai seria indelicada e deselegante com um jovem admirador. 


Aquele era, no entanto, meu trajeto cotidiano, às vezes mais de uma vez por dia, ia e vinha entre minha casa e outras atividades como trabalho e escola. Certamente um dia coincidiria que aquele sorriso pudesse se encontrar com minha boca aberta de espanto e admiração, meu queixo caído. O tempo passou e a esperada coincidência veio de uma forma melhor ainda que eu pudesse esperar. As aulas começaram no primeiro ano do científico no Colégio Estadual e lá estava ela, só que tinham duas turmas de primeiro ano, uma voltada para estudos em Ciências Físicas, onde eu me matriculei, e ela na turma que privilegiava os estudos em Ciências Biológicas. 

Se chegamos a conversar nos intervalos, não me lembro. Ela vivia cercada de rapazes e moças. Como eu imaginava, era alegre e querida pelas pessoas em volta, as chances de me aproximar continuavam as mesmas de quando era apenas um sorriso em uma foto na parede da venda. Aliás, a foto continuava lá, só não causava mais a mesma sensação, uma vez que eu era conhecedor da dona do sorriso, ao vivo, na escola noturna. E porque eu não me aproximava? Aí entra aquele espírito de cão vira-lata, pobre e feio que eu tinha de mim mesmo. Essa foi a pior herança que meus pais me deram, difícil de largar ao longo da vida. Um tanto porque eles ensinavam que éramos pobres e pobres precisam reconhecer seu lugar (que merda, viu?), outro tanto porque cada coisa “errada’ que eu fazia, ganha porradas até mesmo sem saber porque. Até hoje, de vez em quando este espírito maligno ainda não baixa em mim. E a escandalosa timidez, que nem timidez era, eu sei, era mesmo o espírito de cão, que se transformava vez ou outra, em cão chupando manga: terrível. 

O fato é que a moça crescia diante de meus olhos, eu comecei a namorar outras moças e nem pensava mais nela. Porque ao namorar as moças das proximidades eu entrei em outro mundo que muito me agradou: o mundo das mulheres. As interessadas em me namorar se aproximavam, algumas me pediam em namoro, percebi logo que eu não era feio e o espírito de cão na chuva foi se dissipando aos poucos. E sempre que eu ia aos bailes na cidade e cidades vizinhas eu encontrava moças interessadas em dançar comigo (não que eu fosse bom dançarino, até hoje não sou) ou ficar comigo. E aquela moça do sorriso sempre saia e namorava exatamente meus desafetos diretos ou indiretos, o que servia como uma barreira natural entre nós. 

Mais tarde, no terceiro ano do ensino médio, essa aproximação aconteceu naturalmente. O vestibular passou a ser unificado, o número de alunos se reduziu, não havia razão para a existência de duas turmas, passamos a estudar na mesma classe. E como éramos os que morávamos mais longe do colégio era natural acontecer de irmos juntos no caminho até em casa. E veio a necessidade de estudar para o vestibular que se aproximava, até passamos a estudar juntos, era comum ela ir à minha casa para passar uma matéria, resolver uns problemas de matemática, meu forte, ou de biologia, forte dela. O mesmo destino que nos aproximou nos afastou, passamos no tal vestibular, entramos para a universidade em faculdades diferentes, ela continuava a namorar meus desafetos, casou-se com uma figura legal, casou-se depois com outro, exatamente com a representação de pessoas de uma classe social da cidade que eu, se não detestava, pelo menos ignorava solenemente. Só a amizade ficou, apesar de tudo, sempre que eu a vejo, raras vezes, ela tem sempre aquele mesmo sorriso da garota da foto na prateleira da venda. Não é a mesma garota, claro, é apenas o mesmo sorriso, e as mesmas lembranças de minha juventude.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXIII


As viagens de minha imaginação e memória são totalmente erráticas, vem e vão no tempo, acendem à medida que uma lembrança surge em meu pensamento e sinto vontade de escrever sobre o assunto. Parece que sempre tem alguma coisa que ficou para trás, algo que valeria a pena narrar, mesmo sem autorização para fazê-lo. Claro que quero contar histórias interessantes, falar das coisas boas que me aconteceram, ressiginificar, de forma positiva, meu passado e de algumas pessoas que rodeiam minhas vivências. Já ouvi da boca de historiadores que o bom da História é que podemos contá-la de outra maneira, da nossa maneira, e assim mudar nosso passado. Ele já passou, então modificá-lo não tem importância. Claro, existem os fatos marcantes, e as narrativas dos milhares de pessoas precisam convergir em alguma coisa que se aproxima da verdade sobre os fatos, mas, isoladamente ninguém, nenhum narrador, tem compromisso com a verdade dos outros, apenas com a sua própria verdade. E a verdade de cada um é aquilo que o constrói, que faz dele um cidadão respeitável. Sem querer estou justificando minha aventura, a de contar, à minha maneira, ou à maneira desse narrador desautorizado, acontecimentos de minha vida.

Durante três anos, entre os quinze e quase dezoito anos, eu frequentei o Colégio Estadual Augusto de Lima, em Nova Lima. Cursei o então chamado curso científico, hoje correspondente ao Ensino Médio. Algumas de minhas lembranças são difusas, a gente se lembra de acontecimentos marcantes, e eles estão fugindo de minha memória, provavelmente porque deixaram de ser marcantes. Como assim? Como um acontecimento marcante de nossa juventude desaparece aos poucos de nosso pensamento? Aquela fase de minha juventude não existe mais? O que mais lembro desses três anos, é de minha total irresponsabilidade com a vida. Isso mesmo, eu era um irresponsável incorrigível. Sem querer analisar, mas esboçando uma análise provisória, meus pais eram tão exigentes, tão ameaçadores, tão severos, e isso me marcou pela vida toda, que o contraponto a isso era viver uma vida o mais irresponsável possível para não me sentir vazio. Porque a responsabilidade era deles, não minha. Bom, eu não fumei maconha, pitava um cigarrinho escondido, um holiude (hollywood) com filtro, naquela época surgiram os cigarros com filtro para diminuir a nicotina (será?).

Maconha eu provei só mais tarde, já adulto, sabendo o que fazia e aquilo não teve a menor importância. Eu também não bebia, apenas de vez em quando, aos fins de semana eu tomava uma cerveja com os colegas. Isso não significa que não tenha tomado uns porres, sim me embebedei algumas vezes, não muitas, e sabia que a repreensão em casa seria severa. Minha atitude de rebeldia doméstica era tramada aos poucos, não era coisa de rompantes, eu pensava o que iria aprontar e como enganar meu pai para ele nem ficar sabendo ou para ele ter ideia do acontecido sem ter a dimensão exata de minhas experiências. Porque a essa altura eu já estava cansado de tomar porradas, então eu precisava de coisas para enganar o velho e ele ficar na dúvida se aquilo aconteceu ou não. Isso até me dava certa satisfação e não fazia de mim um marginal desvairado, daqueles dos filmes de James Dean, de Juventude Transviada. O termo era esse, eu não era um transviado (palavra perdida no túnel do tempo, um dos significados de transviado no dicionário online de minha preferência diz: “Que se opõe aos padrões comportamentais preestabelecidos ou vigentes”). 

Curiosamente, eu tinha uma grande admiração pelos transviados de minha geração, mas não me comprometia com eles, não era um deles. Eu apenas os acompanhava à distância, como se as transgressões às regras que eles cometiam fosse ter efeitos colaterais em mim, ou como se eu pudesse aproveitar desses efeitos colaterais na sociedade. Aliás, foi exatamente o que aconteceu. Como, por exemplo, deixar os cabelos crescerem, usar calças jeans (eram importadas na época), ouvir e cantar rock’n roll (Beattles, Rolling Stones, Jethro Tull, Genesys, Moody Blues e outras, todas elas formadas lá nos anos sessenta, eram minhas bandas favoritas). E esse era um dos pilares da rebeldia. Em minha casa não tinha TV, essa coisa que se implantou como uma praga na nossa vida social na segunda metade dos anos sessenta, no Brasil, e o rádio, único rádio construído aos poucos com peças vindas pelo correio, era propriedade do patriarca. Então só se escutava aquela merda de Rádio Itatiaia e as porcarias da Rádio Inconfidência, como Hora do Fazendeiro. Em minha casa, na época, músicas eram só a caipira, preferidas de meu pai, e boleros, preferidos de minha mãe.

Aqui sou obrigado a fazer um parêntesis. Hoje eu rendo homenagem às duas estações de rádio citadas. A Rádio Itatiaia continua muito popular e a Rádio Inconfidência tem um papel fundamental para o desenvolvimento da cultura mineira. E eu adoro música caipira mineira de raiz, as vozes daqueles cantores de bolero e samba-canção me encantam, muito embora o rock’n roll continue no sangue. E ainda agreguei o samba, o jazz e o blues, além dos clássicos. Aliás, hoje, até mesmo o rap e o funck, porque não? A música evolui, transvia-se, e nós nos transviamos juntos, claro.
No Colégio Estadual eu estudava à noite e as lembranças boas da época vão se esvaindo aos poucos, como nuvens, as ruins também, se existiram já se evaporaram. Haviam lances desagradáveis, com o tempo eu superei qualquer tipo de trauma que eles puderam ter provocado em mim. Eu sei que sendo um jovem feio, magrelo, alto, de espinhas na cara, cabeçudo, pobre, mulato, morando longe e estranhamente inteligente (isso já era demais para muitos colegas) as minhas chances de passar ileso sem sofrer provocações de colegas eram nulas. Hoje chama-se a isso de bullying. Mas eu penso que era tão gente boa, ou tão ingênuo, que nada disso me incomodava. Felizmente os registros de incidentes por isso são pequenos, quase nada. Às vezes me encontro com um antigo colega que me reconhece e vem me cumprimentar e eu o provoco: você era aquele que rabiscou minha caderneta escolar, transformou meu retrato em careta, e rasurou minhas notas boas o que me obrigou a passar umas horas na sala da diretora ouvindo um sermão? Ou você era aquela professora que reduziu minha nota porque dizia que minha letra era feia embora eu não tivesse errado nada? Minha pequena vingança é deixar essas pessoas sem graça, meu máximo de malvadeza. Nem sei se isso me dá prazer ou se apenas aviva minha memória, mas não tenho muita paciência com hipocrisias. Mais triste é lembrar daquela irmã boazuda de uma colega a quem eu lancei uma cantada com muito custo, superando uma timidez quase infinita e ela me deu uma esnobada grandiosa, me colocando no chão a rastejar como calangos. Penso que vem daí minha predileção pelos calangos, esses animaizinhos rastejantes e sobreviventes entre pedras do jardim. Mais tarde eu me vinguei também grandiosamente namorando sua irmã mais nova só para provocar. Ela nem me deu bola, nem antes nem depois. Eu também não importei com isso, fiz o gênero “você não gosta de mim, mas sua irmã gosta”.

A nossa predileção nessa época de escola era enganar o disciplinário, que fincava os olhos vigilantes nos alunos do científico, pois gostávamos de chegar atrasados e sair antes da hora. Pela porta principal era impossível, então fizemos uma passagem secreta pelos fundos do colégio. De vez em quando resolvíamos fugir em massa no último horário, o professor do dia chegava e não encontrava ninguém. Atrás do muro havia um matagal por onde desbravamos um caminho que chegava ao Rego Grande que ultrapassávamos através de uma ponte improvisada, de madeira, escondida no mato. Nunca fomos descobertos pelo possesso e intrigado disciplinário. Ele chegou a implorar a colegas que o mostrassem nossa passagem secreta, nenhum de nós foi traidor no processo. Curioso é que os colegas de outras séries também não sabiam do caminho.

O principal motivo de nossas fugidas, meu pelo menos, era ir ao cinema, Cine Ouro ou ao cinema do Teatro Municipal. Como eu adorava cinema, era muito comum eu assistir aos filmes interessantes no meio da semana, nos fins de semana minhas obrigações trabalhistas e domésticas eram muito grandes. Dinheiro quase nunca eu tinha, o que me valia era a cumplicidade do porteiro do cinema que me passava escondido ou fingia receber de minhas mãos um “bilhete” de entrada. Sem ele minha cultura cinematográfica não seria a mesma. Eu era irresponsável, mas tinha bons amigos também. Esses amigos, perdidos no passado, foram o que de melhor ficou de todas as minhas vivências. A irresponsabilidade para algumas questões também. Não nego que minha tranquilidade de hoje é um pouco herdeira da irresponsabilidade daquela época, transformada pelas experiências da vida (por experiência pode-se traduzir as inúmeras porradas que a existência me concedeu e me fizeram amadurecer como banana caturra no cesto de palha envolvida no jornal).

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXII


Quero dar um passo atrás, como um caranguejo, para narrar mais um pouco sobre os garotos da Vila da Cemig, ou seja, nós que morávamos naquele espaço chamado subestação, totalmente cercado de arames altos e com uma placa no portão onde se lia: “Atenção, alta tensão, perigo de morte”. Perigo de morte e éramos quatro famílias, cheias de crianças, a morar no interior desse aramado. Torres altas, fios eletrificados a cento e quarenta e quatro mil volts de tensão, transformadores, painéis com sensores a indicar dados a serem transmitidos para outras subestações, via rádio. Os quatro pais das quatro famílias eram os funcionários do local e se revezavam no trabalho em horários alternados. Um ambiente técnico, responsável pela distribuição de energia elétrica na cidade de Nova Lima e cidades vizinhas, e a pergunta que sempre faço é o quanto esse ambiente marcou nossas vidas. Posso não ter a resposta definitiva, talvez as respostas sejam muitas, diversificadas e fragmentadas, certamente cada um de nós tem respostas diferentes, o fato é que nós crescemos naquele meio que nos isolava do mundo, de certa forma, e nos dava uma liberdade que não teríamos se crescêssemos em outros lugares.

Eu era o mais velho dos jovens, adorava futebol, então organizamos um espaço para o jogo, ajudados por um dos patriarcas que também adorava futebol e jogou o esporte bretão até mais de sessenta anos, enquanto aguentou. Na hora de dividir a turma para o racha, era eu para um lado e Santiago (o senhor) para o outro. Jogamos futebol juntos por mais de dez anos e nunca jogamos no mesmo time: era eu num time, ele sempre adversário. Quem mais ganhou, não sei. Sempre dependíamos da boa vontade dos outros em participar da pelada. E tinha uns que faziam hora, fingiam não gostar do jogo para negociar, talvez, sua participação. Com meu irmão Zé Ricardo, por exemplo, eu deveria brincar de outras brincadeiras que ele gostava para ter sua presença no campo. Depois ele foi para o seminário, aí vieram outros meninos ganhando corpo e manha com a bolinha. Alguns se tornaram bons jogadores, divertimos muito.

Mas o que me move nesta narrativa é o que aquele ambiente significava para nós? Significava espaço, brincadeiras variadas, confusão e barulho em tempestades, porque o mal tempo provocava distúrbios nas instalações técnicas locais. Transformadores explodiam de vez em quando, arregalavam nossos olhos de crianças, e nos dava assunto para o dia seguinte em nossas reuniões para brincadeiras. As brincadeiras mais animadas eram descer o morro em nossos carrinhos de rolimã, soltar pipas que chamávamos de papagaio que nós mesmos fazíamos com folhas de papeis coloridos, brincar de pega-pega, de esconde-esconde, de contar histórias, de pular corda, de equilibrar em cima dos muros, de correr atrás de vacas e bois segurando o rabo deles, de equilibrar em cima de carreteis enormes descendo o morro, de subir na caixa d’água (uns trinta metros de altura, nossos pais só ficaram sabendo quando nós, adultos, resolvemos contar) e nadar nela, escondido dos pais, lógico.

Nem tudo era brincadeira, evidentemente, porque meus pais exigiam também que estudássemos para termos notas boas, e trabalhar na horta para termos alimentos saudáveis para todos. E nisso meus velhos eram exigentes. E se não fazíamos as nossas obrigações direito, porrada na orelha. Poucos meninos moradores externos a nosso condomínio se arriscavam a entrar pelo portão da cerca, devido à placa. “Perigo de morte” não é um aviso a ser desrespeitado. Só alguns que nos viam e nos acompanhavam para a escola sabiam que o perigo era supervalorizado na placa, mas se nós morávamos lá dentro eles podiam nos visitar de vez em quando. E havia o campo de futebol, terreno aplainado por nós em tamanho de uma quadra de futebol de salão, cinco para cada lado, dois times no campo e um ou dois na espera, quinze minutos ou dois gols, o time perdedor saía e ia para a espera. E de vez em quando colocávamos uma rede no meio e jogávamos vôlei. Mas a nossa praia era o futebol. E as meninas nos acompanhavam em várias brincadeiras, algumas até mesmo no futebol.

Quanto às questões técnicas sabíamos que nossos pais eram operadores eletricistas daquele pedaço, crescemos com uma noção básica de eletricidade, alguns se tornaram técnicos e/ou engenheiros, eu me tornei físico, outros artesãos, e muitos viradores. Quer dizer, deixa que eu chuto e ainda corro para cabecear. E todos temos muitas histórias para quando nos reunimos em torno de uma mesa regada a cerveja e petiscos, com muita contação de causos. Essa vida plena em nossa infância nos marcou profundamente. E não temos medo de trovão, nem de tempestade. Thor mora em nossos corações e os deuses das chuvas e das descargas elétricas nos protegem. Para sempre, espero.

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...