quinta-feira, 30 de julho de 2015

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA III


A maior vergonha de apanhar e ficar calado, senão apanhava mais, é a modelagem de um caráter medroso. Custei a me dar conta disso. Um moleque da vizinhança, bem maior que eu, corria para me dar umas porradas sempre que me via. Até hoje não entendi porque aquele moleque tinha tanta vontade de me bater. Eu corria, lógico. Porque aprendi a apanhar, não a bater. Ele tinha o dobro de meu tamanho, claro. Mas seria uma honra muito grande enfrentá-lo. E eu corria. Depois que cresci, nunca mais o vi. Eu o via sempre metido em confusão, é bem provável que numa dessas ele tenha se ferrado. Depois fiz amizade com um grandão de minha escola e que morava perto de minha casa. Ele era muito grande para sua idade e negro. Não sei por qual das duas razões os outros moleques se afastavam dele. Então eu me grudei. Ele era manso, mas como ninguém se atrevia a mexer com ele, eu ficava sempre por perto. Outra razão do distanciamento dos colegas é que eu já sabia ler, escrever e contar quando cheguei à escola primária aos sete anos. Isso me fazia o queridinho das professoras e era mais uma razão de ter uma turma querendo me pegar lá fora. Mas logo eu descobri outra razão para os meninos da escola quererem me socar: tornei-me o queridinho das meninas. Descobri cedo que as meninas gostam de meninos inteligentes e que posam de tímido. Eu era tímido de fato, desses de corar de vergonha por qualquer motivo. No entanto, venci a timidez para ficar perto das meninas e do meu amigo grandão (Roberto era seu nome). Grande time: um menino tímido inteligente, metade das meninas não tímidas da classe e Roberto, o preterido pelo resto da turma. O medo acabou totalmente no dia em que um desses grandões me pegou do lado de fora da escola, junto à cerca. Eu esperava minha irmã Zália sair para irmos juntos para casa e um dos meus “inimigos” me encurralou na cerca de tela e começou a me bater com seu cinto. Eu reagi. Tomei o cinto de suas mãos e o usei do mesmo jeito que ele havia começado. Dei-lhe cintadas, tantas quanto eu consegui antes de adultos aparecerem para nos separar. Foi então que eles repararam que era um mirradinho batendo em um grandão. Na verdade eu não era tão mirradinho assim. Tamanho normal, magro e comprido. Mas os demais eram maiores e tinham mais idade. Ganhei respeito. Deixaram-me em paz depois dessa. Mas continuei amigo do Roberto grandão e das meninas da escola. Tive até uma namoradinha que saia de seu lugar na sala de aula e vinha me beijar quando a professora saia da classe. Até que um dia a professora, Dona Laila (linda Laila) nos pegou de namorico e nos deu uma bronca daquelas.

Outra grande descoberta dessa época foi o futebol. Nem sei quando nem quem me deu a primeira bola, mas foi paixão ao primeiro chute. O problema era a falta de parceiros da bola. Eu era o mais velho dos garotos da turma da Cemig. Meu irmão Zé Ricardo era dois anos mais novo e não era nada chegado na redondinha. Eu tinha sempre que negociar com ele para podermos fazer um bate bola de dois. Logo descobri um campo de futebol nas redondezas, uns quinhentos metros de minha casa, o campo do Montanhês. O problema era driblar a vigilância do pai e ir até o campo na hora da pelada. Foi assim também que eu descobri os meninos da vizinhança do condomínio, moradores do lado de fora da placa “atenção, alta tensão, perigo de morte”. E eles descobriram que a placa só assustava, mas o perigo era controlado. E esses meninos de fora começaram a ser quase de dentro, só para bater uma bola comigo e outros que iam crescendo e também começaram a gostar da redondinha. Essa paixão pela bola foi sempre um dos capítulos interessantes de minha vida e irá, sem dúvida, aparecer mais tarde, autorizadamente, nesta autobiografia desautorizada.

As notas sempre foram muito boas. Isso me dava algumas vantagens na organização doméstica. Eu tinha que trabalhar na horta, ajudar minha mãe no trato com os menores, e estudar. E gostava de estudar. Estava sempre na frente nas lições e lia muito. Lia tudo que aparecia na minha frente. Com isso, meu velho me comprava livros, me ajudava nas lições, mas me dava umas porradas se eu não cuidava direito de seus pés de couve, ou se atazanava os irmãos. Eu aprendi a lidar com essas coisas e não levava tudo a ferro e fogo. Não cresci nem revoltado nem carrancudo. Moleque, brincalhão, feliz. Os brinquedos preferidos eram colocar o arco para girar, fincar espetos de ferro no chão formando figuras, de motorista de caminhão (esse era para agradar o irmão e ele bater uma bolinha comigo), bater bola, lógico, correr pelos pastos da redondeza, ouvir o rádio, ouvir a mãe cantar enquanto trabalhava e outras coisas mais.


E assim seguia a vida. Cheia de brincadeiras, cheia de pequenas surpresas, cheia de trabalho, cheia estudos e aprendizados, cheia de luz. 

terça-feira, 28 de julho de 2015

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA - II


Antes que eu completasse cinco anos minha família (pai, mãe, eu, uma irmã e um irmão, a mãe grávida de uma menina) mudou-se para Nova Lima, Bairro Cabeceiras, Vila Madeira. Meu pai foi trabalhar na Cemig, em um local que chamam até hoje de subestação da Cemig. Se é sub é porque deve ter uma estação acima da sub na hierarquia, nunca entendi porque tem esse nome. Sei que é um local chave, ou nó, de uma rede de distribuição de energia elétrica do sistema brasileiro, hoje todos os pontos de distribuição são conectados, na época esse conceito nem existia. Morávamos a um quilômetro de distância do local de trabalho de meu pai, em uma casa que, até onde me lembro, tinha um quintal razoável, uma área na saída da cozinha com uma gangorra, ou balanço. Um dia caí do balanço, com a cabeça no chão, fiquei todo grogue e fui parar no serviço de saúde. Lembro-me de um médico olhando meus olhos com um fósforo aceso nas mãos pedindo que eu revirasse os olhinhos de um lado a outro para ver se eu tinha uma convulsão ou algo assim. Não tinha, só susto e medo. Mas criança adorava ir a hospitais, era uma forma de sair de casa e de todos lhe darem atenção, mais atenção que de costume, ô dó.

Depois de certo tempo nessa casa, já com mais uma irmã na família, mudamos para uma casa com quintal dentro da tal subestação. A casa era boa, com muros baixos, em uma região cercada tendo um portão com uma placa ameaçadora: “não entre, alta tensão, perigo de morte”. E nós lá dentro, junto com mais três famílias que foram chegando aos poucos. Cada família com algumas crianças que foram nascendo ao longo dos anos, até formarem grandes famílias com consideráveis proles. É a saga dessas famílias que vai aparecer na parte jovem dessa autobiografia desautorizada, na narrativa de minha juventude.

Fiz meu aniversário de cinco anos já nessa casa. Um momento engraçado dos meus cinco anos foi o presente que ganhei de aniversário: um jogo de copos azuis com uma jarra azul de vidro. Não achei nada engraçado. Criança de cinco anos quer ganhar carrinho, no máximo uma roupa, um par de meias, mas, um jogo de copos para beber água! Muito bizarro! Era um presente para os pais da criança, claro. Tive que engolir isso a vida inteira. Minha vingança é que, mais tarde, levei comigo os dois copos azuis que sobraram com o tempo. Eu os tenho até hoje. Cada vez que os pego para beber água, lembro-me desse presente de grego. De Sr. Vicente e D. Nazinha. Como era linda a D. Nazinha. Teve filhos (meus amigos até hoje), engordou enormidade e foi, a vida inteira, minha grande amiga. Ela tinha medo de dormir sozinha e, quando o marido viajava eu ia dormir na casa dela. Sempre me tratou como um filho e a vida inteira reclamou de minha ausência e das poucas visitas que eu fazia. Lembrar-me-ei dela sempre com um enorme carinho. Só não a perdoo pelos copos azuis de presente que, no entanto, são hoje os registros memoriais de seus olhos azuis. Beber nos copos azuis é um pouco como beber na fonte de seus olhos azuis.

A vida nessa nova casa não foi nada fácil. Fiz cinco anos e ganhei responsabilidades: molhar a horta e arrancar ervas daninhas dos canteiros de couve e de tomates. E tinha que ser bem feito senão... Porrada na orelha. Não sei como não tenho as orelhas tortas de tanto levar porrada. E como eu era o irmão mais velho, descontava neles. Estava sempre em desvantagem, claro. Porque para cada porrada que eu dava em um dos irmãos, ganhava mais duas. Descobri duramente que o melhor era ser gentil. Em geral, eu era. De vez em quando eu, inadvertidamente, dava umas porradinhas e vestia duas a três calças para doer menos, mas as porradas de meu pai sempre acertavam fora dos glúteos e doíam mais. Não adiantava o artifício. Cresci de porrada em porrada. Apanhei da vida muito menos, eu creio. As porradas da vida doeram menos porque eu já estava acostumado.

Outra responsabilidade adquirida foi aprender a ler e a fazer contas. Quem era o professor? O porradeiro mor da casa, óbvio. Se demorava a aprender, porrada. Se cometia muitos erros, porrada. Se errava nas contas, porrada. Minha cabeça que já era avantajada, cresceu mais. Fiquei cabeçudo de tanto levar porrada. Minha sorte é que eu aprendia rápido. Penso que por malandragem. Melhor aprender rápido e demonstrar destreza pelas matemáticas e leituras para me livrar das porradas. Meu pai me dava carinho também. Lembro pouco dos carinhos, porque era a hora do silêncio. Foi aí que comecei a amar o silêncio. Coisa boa era o silêncio, o melhor carinho que já recebi.

Entre os cinco e sete anos vaguei pela redondeza. Cumpria minhas responsabilidades, ganhava minhas porradas e ia brincar. Casa de muros baixos e portão aberto, tinha muito espaço para brincar. Numa casa vizinha morava uma família com uma garota da minha idade. Eu ia brincar com ela em sua casa, ou à frente de sua casa, já que os espaços eram grandes, ficávamos de namoricos infantis. Mas ela tinha uma vó que era uma megera. Tocava-me de casa, chamava a garota para dentro. Ela fazia suas maldades comigo. Descascava cana para os netos e me dava os nós duros da cana para comer. Sacanagem. E eu, besta que era, ficava mastigando com meus dentes de leite os nós duros da cana. Foi, creio, minha primeira ideia do que significa discriminação. O mestiço aqui não podia ficar muito tempo com as vizinhas louras que a vovozinha vinha logo atazanar. Filha da mãe. Essa família se mudou um ano depois e nunca mais tive notícias deles. Nem me lembro do nome da loirinha que brincava com o mulato aqui. Azar o deles.


Aos sete anos fui para a escola, aí já começa outra história.

SER FELIZ DEPOIS DOS SETENTA

  A pergunta que todos fazem, inclusive eu, é: “é possível ser feliz quando a idade já se representa por um número tão grande? Como? É bem p...