quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O NOVEMBRO AZUL E NOSSAS ESCOLHAS

O Instituto Nacional do Câncer (INCA), órgão do Ministério da Saúde, estima mais de 70 mil novos casos de câncer de próstata, no Brasil, para o triênio 2023-2025. Este número representa 10,2% do total de novos casos de câncer esperados para o período. Um exagero.

O câncer de próstata é o segundo tipo de câncer mais comum em homens no Brasil, atrás apenas do câncer de pele não melanoma. A incidência é maior em homens com mais de 65 anos, sendo raro antes dos 40 anos. Por isso, os médicos consideram que a prevenção deve ter início nessa faixa etária, em torno dos 40 anos.

O diagnóstico precoce é essencial para o tratamento eficaz do câncer de próstata. O exame de toque retal é o método mais recomendado para a detecção do câncer em estágio inicial. O PSA (antígeno prostático específico) é outro exame que pode ser usado para o diagnóstico, mas não é tão preciso quanto o toque retal.

E por que os homens são tão resistentes ao exame clínico, o famoso toque retal? Meu pai teve uma prostatite aos 50 e poucos anos. A prostatite é uma inflamação na próstata, bacteriana ou não, tratada com medicamentos. Mas isso acendeu a luz amarela para ele. Machão e valentão que era, teve que se render aos cuidados de um urologista.

Pensa que morte

É só choro e sofisma?

Pensa errado!

(Paulo Cezar S. Ventura – “Haicais do Riobaldo”)

Ele se tratou e passou a colocar a atividade física em sua rotina diária. Por sorte não bebia além de sua dose diária, nem fumava. Começou a nadar, lembrando seus tempos de juventude morando em beira de rio, depois descobriu a dança. Frequentava, quase diariamente, as casas de dança com horários dedicados às pessoas idosas. Ele rejuvenesceu alguns anos. Faleceu aos 85, com sequelas de um outro tipo de câncer, o do intestino.

Voltando aos dados do INCA, algumas questões sobre as causas do câncer de próstata nos chamam a atenção. Em primeiro lugar, lógico, a idade. O câncer de próstata aparece mais em homens idosos. Mas, podemos envelhecer sem adoecer. Envelhecer é uma dádiva, com cuidados especiais à nossa própria pessoa fica melhor ainda. Eu, particularmente, não espero novembro chegar para me cuidar. Em fevereiro, mês de meu aniversário, dou-me de presente um checkup completo, incluindo o exame PSA, que se mantém estável há décadas, e o toque retal.

O segundo fator de risco é o histórico familiar. Se entre seus ancestrais, ou parentes mais velhos, há uma incidência de problemas na próstata, não deixe de se cuidar. O terceiro fator é a obesidade. Aquela história de que sua cintura deve ter menos de 1 metro é verdadeira. Na realidade, divida a medida de sua cintura pela medida de seu quadril, se o resultado for maior que 0,9, cuide-se. Sua barriga não pode ser maior que seu traseiro. Pessoas magras tem menos problemas de saúde que as obesas e vivem mais. Nunca vi um centenário obeso.

O quarto fator de risco é a alimentação rica em gorduras e carnes vermelhas. Se você é adepto daquele churrasco de picanha gorda todo fim de semana, atenção. Até pode ser, mas precisa colorir o prato em várias cores durante a semana. Todo prazer tem seu custo. Além do prato colorido, que tal uma caminhada, aqueles 10.000 passos diários? A inatividade física é o quinto fator de risco para esta e outras doenças, não apenas dos homens.

O sexto fator de risco é curioso e um tanto complicado em um país tão racista como o nosso: a cor da pele. Os homens negros (pretos e pardos) correm maior risco (mais de 50% a mais) de contrair câncer de próstata que homens brancos. As causas ainda não são bem conhecidas, mas sabemos bem que as condições de vida da população negra, no Brasil, são bem piores, em média, que as da população branca. Logo, os fatores ambientais superam, no caso, os fatores genéticos. Há ainda um fator hormonal. Os níveis de testosterona são mais altos nos homens negros. E esse hormônio masculino pode estar relacionado ao desenvolvimento de câncer, não só de próstata, segundo pesquisas mais recentes. Logo, homens pardos e pretos, precisamos ser duplamente cuidadosos.

O mês de novembro, ainda primavera, mas com temperaturas se elevando aos poucos, tem o céu às vezes azul, às vezes cinza, já que as chuvas são frequentes nesta data. Neste ano as previsões climáticas são turbulentas. No caso de nossa saúde, no entanto, temos escolhas. O novembro pode ser azul para as prevenções necessárias ao diagnóstico e tratamento do câncer de próstata. As escolhas são de duas naturezas: individual e social.

As escolhas individuais são mais óbvias e já muito comentadas no Portal do Envelhecimento. A prevenção individual nos coloca frente a escolhas que fazemos em relação ao nosso modo de vida. Manter um peso saudável, muito embora a obesidade seja também uma questão de saúde pública. Comer comida de verdade, seguindo uma dieta saudável, evitando produtos industrializados, é fundamental. Além de ser um fator importantíssimo na prevenção, ajuda a manter-se magro. Outras escolhas muito importantes são a atividade física regular, uso moderado ou nulo de bebidas alcóolicas e a ausência do fumo em sua rotina.

Já as escolhas coletivas, ou sociais, são as mais importantes e necessárias a serem feitas, e passam pelo poder público. Em artigo publicado recentemente neste Portal, em outubro passado, já coloca a prevenção como importante estratégia de controle do câncer (https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/prevencao-e-a-estrategia-de-controle-mais-eficiente-para-a-epidemia-de-cancer/).

Algo que ainda não aprendemos, e precisamos fazê-lo forçosa e rapidamente, é que a prevenção é muito mais barata que os tratamentos contra o câncer. No Brasil, e em vários outros países, o gasto público com o atendimento especializado é muitas vezes maior que o gasto com a prevenção. Especializamo-nos cada vez mais no combate às doenças e menos aos cuidados preventivos da saúde. E a prevenção se faz com informação, com educação, com letramento nas questões de saúde e prevenção, com fácil acesso às unidades básicas de saúde, com melhores condições ambientais de vida e trabalho, principalmente para a população negra e pobre.

Só assim nossos futuros NOVEMBROS serão AZUIS.

O viver, mesmo,

É o aprender a viver.

Isso é mesmo.

(Paulo Cezar S. Ventura – “Haicais do Riobaldo”)


Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)

 

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

O SETEMBRO AMARELO DA PESSOA IDOSA

 

Em março de 1998 estive presente no Espaço de Exposições da Porta de Versalhes, em Paris, porque ali acontecia o Salon du Livre que, naquele ano, homenageava a literatura brasileira. Tive a oportunidade de conferir o lançamento de obras de autores como Chico Buarque, Lygia Fagundes Teles e outros que, mesmo não sendo os meus preferidos, como José Sarney lançando Maribondos de Fogo, e Paulo Coelho com seu Alquimista, estavam ali representando nossa cultura. Fui assistir à palestra de Lygia Fagundes Teles, que discursava sobre o poder das palavras e o cuidado que os escritores devem ter ao fazer suas escolhas, quando os assentos livres a meu lado foram ocupados. Viro a cabeça e quem eu vejo? A atriz Catherine Deneuve, a Belle de Jour, e uma assessora. Fiquei com ouvidos em Lygia, nariz em Catherine, para sentir seu perfume, e olhos entre as duas.

Por que estou a lembrar-me disso? Anos mais tarde, já de volta ao Brasil e residindo em Belo Horizonte, fui chamado a correr até a casa de minha irmã, 2 km próximos, porque seu filho havia tentado se matar. Não corri, voei até lá e ajudei-a a conduzi-lo até a Unidade de Pronto Atendimento, por sorte bem perto. Ele se tratava de uma forte depressão e engoliu todos os medicamentos prescritos de uma vez. Uma lavagem estomacal deu conta de trazê-lo de volta à vida.

Comecei, então, a dedicar-lhe os poemas que passei a escrever sobre a importância dos pequenos prazeres. Cada um que escrevia eu lhe enviava e todos eles terminavam com uma reverência à vida e à importância de manter-se vivo. Em um deles eu comentava a respeito daquele famoso encontro entre Lygia, Catherine e eu.

 

Brindemos nossas musas, Cecéu,
pela eternidade delas através de nosso testemunho.
Viver nelas (como escreveu Yoko Ono)
é uma dádiva e uma necessidade.

 

Cecéu tinha menos de vinte anos, sobreviveu, formou-se em Psicologia e hoje cuida de pacientes mentais em situação de risco em uma cidade do interior de Minas Gerais. Mas, os suicídios continuam um grande problema. Enquanto os jovens suicidas são bem sucedidos no ato em 1 a cada 200 tentativas, as pessoas idosas suicidas têm sucesso em sua própria morte em 1 a cada 4 tentativas. Porque eles planejam melhor a própria morte e, em geral, vivem solitários. Quando são encontrados já estão mortos.

O que mais nos chama a atenção é o grande número de pessoas idosas que se matam: uma média de 1200 suicídios de pessoas idosas, por ano, no Brasil. O caso mais próximo a mim, foi a de um conhecido conterrâneo, ex-vereador e ex-secretário de cultura da cidade, que se matou recentemente, causando comoção. Em princípio, a família negou o suicídio, alegou infarto fulminante, o que foi desmentido pelo laudo médico. Esconder o fato apenas leva a subnotificações e esconde, na verdade, o grande problema.

Causas reais? O padrão, depressão. Outras causas são também o alcoolismo (o que justifica um número maior de suicídios entre pessoas idosas do sexo masculino, segundo professores do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG), as dores crônicas e o diagnóstico de demência. As mortes autoinfligidas de pessoas famosas como os atores Flávio Migliaccio (aos 85 anos) e Walmor Chagas (aos 82 anos) trouxeram o assunto à discussão, mas nada mudou, porque mudanças exigem ações mais contundentes, as quais não conseguimos realizar, ainda.

É possível reduzir, até mesmo evitar, a morte por suicídio de pessoas idosas? Entre os profissionais de cuidados, não apenas de pessoas idosas, há até um slogan conhecido que mostra um provável caminho - proteger as pessoas contra os 4 D: desespero; desesperança; desamparo; três fatores que levam ao quarto, a depressão. E a depressão, por sua vez, pode conduzir ao suicídio. Os primeiros sintomas visíveis desses 4 D são a tristeza, a falta de vontade de fazer as coisas de sempre e a falta de prazer no cotidiano.

Assisti recentemente um documentário sobre cinco lugares no mundo onde há um grande e incomum número de pessoas centenárias, os denominados Zonas Azuis. Esses lugares são: Okinawa, no Japão; Sardenha, na Itália; Nicoya, na Costa Rica; Loma Linda, na Califórnia; e Ikaria, na Grécia. Em cada um desses lugares fatores culturais e ambientais ajudam a promover a longevidade saudável, cada um deles com suas características especiais. Os documentaristas, no entanto, resumiram as regularidades dos casos em cinco, que descrevo aqui dando a minha interpretação.

O primeiro deles é o movimento. De novo, encabeçando a lista, a atividade física regular, leve, de todo dia. Aquela caminhada despretensiosa, o agacha-levanta das atividades comuns que, além de tudo, ajudam no sono regenerador das energias.

A visão do vale

depois de subir a montanha

ao pôr-do-sol que se apresentava

valeu alguns anos de minha existência.

 

O segundo é a presença de jardins e quintais. Eles têm múltiplos benefícios, pois ajudam na movimentação necessária e no cuidado com a alimentação. A boa alimentação é sempre o segundo fator de todas as listas de ajuda ao envelhecimento saudável.

 

Jeito mineiro de viver perigosamente:

comer couve longe de seu quintal,

roubar muda de flores em jardins alheios.

 

O terceiro tem a ver com os trabalhos manuais, quem diria? Fazer as coisas com as mãos é terapêutico, pode provocar movimentos, treina a concentração e ajuda a melhorar a saúde mental. Trabalhar com as mãos não é negar a tecnologia, mas pode ser também usar a tecnologia a favor de novas artes. Escrever, que é o meu caso, também se encaixa neste quesito.

Escrevo meus versos para aprender

a encontrar a inspiração para melhor escrever.

 

O quarto é viver com menos estresse. Todos os itens anteriores ajudam a se estressar o menos possível. Fazer uma boa gestão da ansiedade e do estresse exige uma mudança de paradigma no modo de vida que é, principalmente, fazer uma boa gestão do tempo e da energia necessária para todas as atividades. A saúde mental agradece, óbvio.

Tenho a calma artesanal
de quem fabrica vácuos
e cheira tolerâncias na atmosfera!

 

O quinto item da lista resume, a meu ver, todo este bem viver: fazer da vida um ritual sagrado. E isso vai muito além dos rituais religiosos. A oração é apenas uma das possibilidades. Os rituais sagrados incluem a respiração consciente, a meditação, a dança, a amizade, o cuidado com os outros, os risos, o ritual alimentar, o amor e a sedução, entre outras possibilidades.

 

Deuses, escambo mil vidas

por esses momentos mágicos

de convivência, amor e prazer.

 

É possível se tornar centenário sem as mazelas da idade? Sim, é possível, mas não sozinhos. É uma questão de vida em comum, de sociedade, de poder público, de cultura, de vida em família, de valorização da vida, de abraçar a causa em conjunto com a Urbis.

Não nos deixem sós. Gostamos, e precisamos, de viver com amigos e familiares. Felizes, enfim.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A ARTE DE ENVELHECER COM PRAZER

 

Cícero, o filósofo romano nascido no ano 106 A.C., nos deixou obras importantes sobre as quais devemos nos reportar em vários assuntos, sendo uma delas sobre o envelhecimento. Chegou em minhas mãos, por aqueles acasos fortuitos não negligenciáveis, seu livro Saber Envelhecer, publicado em 2007 pela editora L&PM. Nesse livro Cícero desenvolve a tese de que a arte de envelhecer é encontrar o prazer que todas as idades proporcionam.

Gostaria de revisitar a obra do filósofo trazendo, para hoje, algumas hipóteses feitas por ele e, principalmente, trazendo para minha vida vários de seus ensinamentos. Um deles é um conjunto de respostas a um questionamento daquela época e, incrível, ainda muito comum atualmente:

por que muitas pessoas pensam que a velhice é detestável? 

        1. A velhice nos afastaria da vida ativa.

“Não são nem a força, nem a agilidade física, nem a rapidez que autorizam as grandes façanhas; são outras qualidades, como a sabedoria, a clarividência, o discernimento” (Cícero). Temos grandes exemplos de pessoas idosas ativas, que nunca desistiram de seu trabalho, de deixar de lado a sua competência adquirida durante a vida. Cícero cita generais romanos que viveram ativos por muitos anos, ou políticos, os senadores e cônsules romanos. Sabemos bem, no entanto, que a vida média do cidadão romano era em torno de quarenta anos. A vida mais longa era privilégio de quem vivia na riqueza e tinha escravos para o serviço pesado. As guerras eram constantes e as tubulações de água eram feitas de chumbo, metal pesado que adoecia a maioria das pessoas.

Hoje temos vários exemplos de pessoas longevas, passando dos noventa anos e chegando aos cem com vida ativa. Faltam-lhes a força, a memória os engana, mas ainda conseguem muitos feitos. Sobretudo se amados pelas pessoas que os cercam.

O que é preciso para ter uma vida ativa? Difícil dizer, mas Niemeyer desenvolveu alguns projetos arquitetônicos com quase 100 anos. Tenho uma vizinha com 96 anos que está bem, lúcida e ainda comanda sua casa. O corpo humano é um mistério, a vida é um mistério. Não há regras, mas muitos conseguem, hoje, ter uma mais vida longa e mais ativa que antes.

       2. A velhice enfraqueceria nossos corpos.

Cícero escreveu sobre a velhice com 59/60 anos (no calendário atual) e já se considerava um velho. Ele mesmo afirma isso em seu livro “Saber Envelhecer”. Vale lembrar que teve morte trágica, sendo decapitado aos 61 anos, a mando de Marco Antônio, cuja tirania ele combatia ferozmente com seus discursos. É considerado um dos mais influentes escritores e oradores romanos, deixando um enorme legado para o latim e todas as línguas europeias surgidas posteriormente.

É evidente que ficamos mais fracos com o tempo. Sinto isso na pele. Do futebolista amador que fui até os 50 anos, treinando durante a semana e jogando aos domingos, fui sendo obrigado a mudar de esporte, praticando outros com menos exigência de vigor físico. Passei ao remo, depois às corridas de rua, hoje contento-me com caminhadas e pedaladas e exercícios de solo. Mas como disse Cícero “se tu lamentas a perda dos bíceps, não são eles o problema, mas tu mesmo”.

“É preciso servir-se daquilo que se tem e, não importa o que se faça, fazê-lo em função de seus meios” (Cícero).

Já ouvi uma frase parecida durante uma palestra em um ginásio para uma plateia de aproximadamente mil pessoas.

“Para fazer tudo que quero fazer, primeiro procuro os meios e recursos que tenho à minha volta e os adapto às minhas necessidades” (Marcos Rossi).

Só que Marcos Rossi não tem braços nem pernas. E se ele consegue fazer o que quer, por que eu não conseguiria só porque sou pessoa idosa? Sem desculpas, meu velho. Olhe em volta e siga em frente.

Cícero já nos dizia, há 2070 anos, que “o exercício físico e a temperança permitem conservar, até a velhice, um pouco da resistência de outrora”, acrescentando ainda: “mas não basta estar atento ao corpo; é preciso ainda mais ocupar-se do espírito e da alma”.

Ele também nos brinda com uma receita infalível, segundo ele, para exercitar a memória. “Aplico o método caro aos pitagóricos: toda noite, procuro me lembrar de tudo o que fiz, disse e ouvi na jornada”.

       3. A velhice nos privaria dos melhores prazeres

Este é um ponto polêmico porque, afinal de contas, o que é o prazer? Cícero considerava como prazerosa a boa conversação, à mesa, com os amigos, ao trabalho na agricultura, ao prestígio que ele mesmo possuía como orador, ao debate intelectual. Em suas considerações não incluía o amor e o sexo, e dizia que a paixão seria uma obsessão sem controle. Mas, ao mesmo tempo, “se a velhice não os aproveita da mesma maneira, ela não está totalmente privada deles”.

Ah, os prazeres! Como são cantados e contados pelo mundo afora! Como são bons! É bom ser aberto a sentir os prazeres da vida e não se envergonhar de senti-los! Quem tem prazer na vida, e pela vida, não sofre dos males ligados à tristeza. Depressão? Angústia? Ansiedades? São todos sintomas da falta de prazer.

O prazer é sempre simples e direto. Não tem meias-palavras, nem segue meias verdades. É preciso estar conectado com o presente, com a vida hoje, com as alegrias do cotidiano. No último Dia dos Pais tive o privilégio de ter, a meu lado, filhos e netos, que vieram de longe para estar comigo. Meu último grande prazer deste ano.

“Deuses gregos, romanos, africanos, brasileiros, budas, escambo mil vidas por esses momentos mágicos de convivência, amor e prazer”

(Paulo Cezar S. Ventura).

 

       4. A velhice nos aproximaria da morte

A morte, ela, é incontestável. “Mas como é lastimável o velho que, após ter vivido tanto tempo, não aprendeu a olhar a morte de cima!” Com essa frase aforística, Cícero inicia seus comentários sobre a morte e eu, e qualquer um como eu, com muito mais passado que futuro, só posso concordar, depois de alguma reflexão. Na verdade, quem está seguro, mesmo sendo jovem, que não irá encontrá-la antes do anoitecer, na volta para casa com o trânsito maluco das cidades?

“Os frutos verdes devem ser arrancados à força da árvore que os carrega; quando estão maduros, ao contrário, eles caem naturalmente” (Cícero).

Contentemo-nos, então, com o tempo que nos for dado para viver, sem nos preocuparmos com o tempo passado. Perdido ou bem vivido, ele não tem retorno. Esse tempo que nos resta é sempre suficiente para vivê-lo com sabedoria, serenidade e honra. E se conseguimos assumir os encargos das funções que nos são ofertadas na vida, viveremos bem, sem nos preocuparmos com os pensamentos e ações alheias. A serenidade só possível com uma grande preparação.

Lembro-me perfeitamente bem da serenidade alcançada por meu pai em seus últimos momentos, após meses de dor e sofrimento. Eu estava a seu lado, sabíamos, os dois, que era chegado o momento de ele partir, e sua última palavra foi meu nome, com um sorriso. Assim também quero morrer, com sorriso nos olhos, mesmo com dor.

 

Finalmente

Não há uma espécie de tratado sobre a arte de envelhecer, cada um desenha sua tela como lhe aprouver. Como toda arte, essa também requer estudo, pesquisa, solução de problemas, desenvolvimento, técnica e muito trabalho. O trabalho de uma vida inteira, que exige conhecimento e cada vez mais sabedoria. Rabugice, mau-humor, chatice, mau-caratismo existem em todas as idades, não são defeitos inerentes às pessoas idosas. As características antônimas a essas, também, precisam ser lapidadas. Portanto, a arte de envelhecer com prazer é uma sabedoria (uma técnica) desenvolvida desde a infância. Quem tem prazer na juventude tem mais chances de envelhecer com prazer. Ou algo muito forte e importante precisa acontecer em algum momento de sua vida para uma ruptura comportamental acontecer. O prazer é, portanto, uma busca com criatividade.

Pessoas criativas são aquelas que se desprenderam de preconceitos instituídos, em qualquer domínio: ciência, arte, cozinha, relacionamentos, envelhecimento!

(Paulo Cezar S. Ventura)

sábado, 19 de agosto de 2023

JOÃO AMBRÓSIO, UMA VIDA, UM DESTINO

Elisa Augusta de Andrade Farina.

Presidente da Academia de Letras de Teófilo Otoni


João Ambrósio, um nome, uma história, uma vida. Quem o conheceu, não o reconhece como aquele homem distinto, amoroso, cavaleiro, sempre disposto a celebrar a vida.

Viúvo, foi depositado pela família, como objeto inútil, num asilo "O Lar Feliz", que destoava de todo efeito que se entendia por felicidade. 

Na sua viuvez não perdeu só a mulher, perdeu também, a si mesmo. Talvez tenha perdido o próprio nome. Já não sabe quem é: o homem que julgava ser não passa, quem sabe, de um sonho, agora perdido para sempre. Um sonho sonhado por ele e pela mulher, agora não dispõe de um sonhador. Tudo o que lhe resta de vivo, está no passado. O presente não existe. Um fosso enorme separa passado do presente. O passado de alegrias, o presente de restos, sobras. O futuro de incertezas. Mesmo assim, insiste em (sobre) viver.

Escuta o companheiro de quarto e desditas que o adverte: "não seja bobo João Ambrósio, eles aqui estão esperando que não pensemos, mas se isso acontecer e deixarmos de pensar estamos enterrados. É no pensamento, com e através dele, que permanecemos vivos. Temos que resistir, para existir".

João parecia nem escutar o que seu companheiro de infortúnios lhe dizia, continuava apático, alheio a tudo.

Dia de visitas. Todos ansiosos, menos o João que continuava deitado, absorto, olhar perdido...

De repente, uma menina aproxima-se da sua cama e chama-o: "vovô João, vim contar para o senhor uma história legal que aprendi nesta semana, na Escola. O senhor quer ouvir? Lembra-se de mim? Sou a Mariana, filha da Henriqueta que trabalhou em sua casa. O senhor gostava um tanto de mim. Dava-me muita atenção, brincava comigo. Lembra das nossas brincadeiras? Uma vez me deu um cachorrinho, o Pirralho. Ele manda lembranças...

João Ambrósio abriu um sorriso e com lágrimas, abraçou a menina.

A mãe da garota se aproximou e disse: "senhor João, estamos aqui para alegrar os seus dias, o senhor foi tão bondoso para conosco, quando foi meu patrão. Não é porque foi abandonado pelos seus que será esquecido por quem só recebeu e não teve tempo de retribuir o carinho que nos dispensou. O amor não pode se separar da gratidão. Apesar das circunstâncias, a vida continua a valer a pena.

Em todos os dias de visitas, o João Ambrósio, ficava inquieto esperando a doce Mariana, que com sua alegria e inocência, mudava o rumo de sua triste existência. Estava mais animado, corado, até conseguia sorrir. A sua vida tomou outro rumo. A neta "do coração" , substituiu os netos, filhos dos seus filhos, que nunca vieram vê-lo, nem sequer seus filhos se fizeram presentes para escutá-lo e sanar as suas dificuldades.

E o tempo passava... Cada dia sobreponha as tristezas com a alegria que a pequena Mariana e sua mãe lhe proporcionavam.

Gostava de ficar pensando em todas as coisas boas que a vida lhe dera. Agora tudo tinha se esvaído, como bolhas de sabão soltas só vento. Não conseguia entender o abandono que sofrera. Isso doía tanto nele que foi abandonado...

Será que repercutiu nos filhos que o abandonaram naquele asilo triste e frio? Se isso acontecesse de fato, será um peso imensurável nas costas dos filhos por toda uma vida. Isto se tiverem sentimentos e aquilatassem o mal que lhe fizeram. Por mais que pensasse, não via justificativa sobre os motivos para o abandono definitivo e irrestrito. 

Essas reflexões consumiam a sua alma e entristecia o seu pobre e fraco coração. Não sabia até quando iria resistir... Isto não importava...

Este é o triste e avassalador cenário vivenciado pelos idosos, tratados como trastes inúteis por aqueles que devotaram o melhor de suas vidas e eles não conseguiram dar-lhes amor, por mais ínfimo que fosse...





sexta-feira, 11 de agosto de 2023

MEMÓRIAS DILUÍDAS, MEMÓRIAS RECUPERADAS



Nossa memória nos prende no tempo de hoje. Às vezes gostaríamos de ter o poder de ir à frente do relógio, ou de retroceder, nos momentos que assim o quisermos. Mas, o dia de hoje é sempre o definidor de nossas histórias. Até onde lembramos? O que lembramos se passou em que tempo e em que local?

A demência é definida como ausência ou perda constante e progressiva da memória, chegando a comprometer o pensamento, o senso ou a capacidade de se adaptar às ocasiões comuns e/ou sociais. Mais propriamente, a demência é o declínio geral e persistente das habilidades mentais, como linguagem e raciocínio, além da memória, e pode interferir nas atividades normais da pessoa e seus relacionamentos.

No entanto, fico a imaginar o envelhecimento como uma possibilidade de viajar no tempo e no espaço, o que nos permite colocar nossas imagens, memórias de vivências, quando e onde quisermos. E isso depende de como conduzimos a comunicação com nossos velhos e velhas. Tenho dois causos a narrar sobre essa versão pessoal e, talvez, intransferível.

Jordelina tem 96 anos e viveu, até o seu casamento, aos 26, em uma pequena cidade do Vale do Aço, em Minas Gerais. Menos um período de uns três anos, depois da segunda guerra mundial, quando residiu em Belo Horizonte. Ela devia ter uns vinte e poucos anos quando isso aconteceu. Hoje parece que todos os casos que ela conta aconteceram nesse período e no entorno do bairro onde ela residiu, àquela época, ou no bairro onde hoje reside, na região metropolitana de Belo Horizonte. Ou seja, sua memória recuperada indica que ela consegue viajar no tempo e no espaço, e suas histórias são remontagens de memórias, como uma colagem ou um fuxico de retalhos.

Sempre que a visito provoco-a com perguntas que lhe trazem à mente algumas imagens de sua vida, e ela as conta em uma nova narrativa, antes desconhecida. Como sua imaginação e inteligência são enormes, sempre foram, cada vez que conta um mesmo fato sai um novo roteiro. Em um desses momentos ela contou estar presente na inauguração do Edifício Acaiaca, conhecido prédio no centro de BH. E foi convidada a cortar a fita colocada à entrada do prédio.

O famoso Edifício Acaiaca foi inaugurado durante a segunda guerra, em 1943, anos antes de sua estadia na cidade em fins da década de quarenta e início dos anos cinquenta. Como o edifício é icônico e tem uma arquitetura muito típica da época, e nele havia um cinema muito visitado, não surpreende que faça parte de seu imaginário.

Outra memória de Jordelina ouvida nos últimos tempos, e que estava guardada no fundo do seu baú de lembranças, foi muito indicativa da viagem afetiva aos tempos passados. Segundo ela, esteve presente em programas da rádio Itatiaia, tendo sido convidada para cantar e fez muito sucesso, claro. E que havia um locutor na rádio que se chamava Álvaro Francisco, de quem ela gostava muito. Queria que seu primeiro filho tivesse esse nome, o que não aconteceu devido ao ciúme de seu marido, que também se chamava Francisco. O que descobri, depois de tantos anos de escuta, é que naquele tempo e naquele lugar ela viveu os momentos mais felizes de sua vida.

Quando conheci Suzana ela já estava com oitenta anos. Visitei-a acompanhado de amigos em comum e ela demonstrou simpatia à minha pessoa. As visitas continuaram, sempre acompanhado dos amigos, até que um dia a presenteei com um livro de poemas, quando ela confessou seu apreço à Poesia e que gostaria que eu aparecesse mais à sua casa para ler para ela. A partir de então passei a visitá-la só, para ouvi-la contar suas histórias e para ler poemas. Um belo dia ela me disse que teve um namorado na juventude que se parecia comigo e que também gostava de Poesia. A sua família, no entanto, não consentia o namoro e a obrigou a se casar com outro homem. Memórias afetivas, sem tempo e sem lugar definidos.

Suzana viveu mais de cem anos, mas passou os últimos dez em sua cama, depois de uma queda e outros problemas de saúde. Sua memória foi diminuindo a ponto de não se lembrar mais das próprias filhas, mas se lembrava de mim (ou do seu antigo namorado?). O fato é que quando eu me inclinava para beijá-la ela dava um jeito de beijar-me nos lábios, tipo selinho. Durante minha última visita, sua filha estava presente e, para sua enorme surpresa e indignação, Suzana disse meu nome.

— Como ela se lembrou de você se não se lembra de mais ninguém há muito tempo?

Minha hipótese, não muito forte, evidentemente, baseada nas histórias dessas duas personagens, cujos nomes reais omiti neste relato, é que elas guardam por mais tempo histórias vividas ou criadas em momentos e lugares nos quais elas foram felizes, transportando-as para momentos atemporais e lugares meta-espaciais. Lembranças e esquecimentos são estratégias de defesa da mente e do pensamento. Minha expectativa é que minha última lembrança seja aquela de um tempo e um lugar, não importa qual nem onde, mas de grande felicidade. Quero morrer sorrindo, mesmo se a morte vier acompanhada da dor.

(pcventura@gmail.com — @paulocezarsventura)

segunda-feira, 26 de junho de 2023

O VOO DE COLOMBO

    Desde garoto Colombo gostava de subir qualquer coisa escalável. Com menos de um ano, engatinhando, subiu em uma cadeira à beirada de uma mesa, depois na mesa e chegou à janela. Com grades, ainda bem. Aos dois anos foi pego no alto da cortina da sala, escalou-a como se fosse uma corda. Daí a subir as torres da Cemig, para desespero de sua mãe, foi um pulo, quase literalmente.

    Subiu montanhas, escalou falésias, se equilibrou em corda bamba, trabalhou no circo, suas ocupações sempre traziam esse interesse quase obsessivo pelas alturas. Quando foi procurar trabalho obviamente escolheu um que lhe permitia olhar as pessoas de cima, do alto de seu pedestal, como se fossem formigas carregando os jardins, cada um a seu jeito. Ele sempre imaginava que, como pequenas formigas, as pessoas carregavam suas pequenas conquistas para casa e as guardavam como se fungos se tornassem e o bolor consequente os alimentasse ou os entorpecesse.

    Não era exatamente a vida que queria. Só lhe faltavam asas para sua transformação em um ser humano da categoria dos himenópteros, ou dos columbídeos, bastando decidir se preferia ser inseto ou ave. Imaginava que seus pais já haviam decidido por ele. Colombo deve ser uma palavra derivada de columbídeo, pois, em língua francesa “colombe” é aquela ave universal conhecida no Brasil como pombo. Então, por que não voar como uma columbídea? Ou paloma, em língua espanhola? Gostava da expressão “paloma mensajera”, ou pombo-correio.

    Em sua maturidade Colombo trabalhou na construção civil. Percebeu que suas habilidades alpinísticas o diferenciavam na profissão. Rapidamente subia nas alturas dos prédios em andamento, mesmo carregando um saco de cimento nas costas. Um empregado modelo, preferido pelos mestres de obra. Era querido também pelos colegas, que o achavam diferente, um distraído, sempre alegre. Tinha uma qualidade rara, intrínseca à sua personalidade: era querido pelas aves. Sempre haviam pássaros em seu entorno. Ele os alimentava, óbvio. Alguns pássaros o acompanhavam de uma obra à outra. Principalmente aquela pomba-azul.

    Pomba-azul? Existe isso? Tal como o cisne negro, a gente pensa que não existe até vermos um. A partir dessa visão, essas raridades passam a nos acompanhar pela vida. Colombo deu até um nome para a pomba-azul. Era Colombina. Formavam uma dupla, Colombo e Colombina. Ele até aprendeu a falar arrulhez, para emitir arrulhos tais que a Colombina. Deu certo, pois ela sempre aparecia quando ele começava a arrulhar.

    Um dia, a Colombina azul não apareceu o que deixou Colombo preocupado. Não conseguiu trabalhar direito naquele dia. Recebeu com mau humor, raro mau humor, os deboches dos colegas.

    — Está solteiro hoje, Colombo? Sua Colombina arrumou outro marido?

Fingiu não ligar, mas seu mutismo não era normal. Estava deveras preocupado. Passou o dia olhando o horizonte, arregalando os olhos na tentativa de ver ao longe se sua ave se aproximava. Nada. O sol já estava no meio de sua descida para se esconder atrás das montanhas distantes, desenhando no céu o pedaço diário de seu analema, quando ela chegou, machucada. Colombo tentou cuidar da bichinha, mas ela se manteve distante, ferida, dolorida.

    De repente surgiu uma ave de rapina, um gavião ou um carcará, provavelmente o mesmo que a ferira, e desferiu mais um golpe em suas asas já sangrentas. Colombina tentou voar e caiu das alturas do prédio em construção. Colombo não teve dúvidas. Saltou, sem as asas dos columbídeos ou dos himenópteros. Esqueceu-se deste detalhe: suas asas eram apenas imaginárias e não suportavam o peso da queda. Morreu na contramão sob os olhares assustados dos colegas peões da construção. A luz do sol do fim de tarde deu um colorido especial à cena, digna de um Sigaud, quiçá um Portinari, já que os dois eram amigos. De místico, virou música, do Buarque, que não sabia dessa Colombina, apenas de outra, da Noite dos Mascarados.

@paulocezarsventura

 


terça-feira, 6 de junho de 2023

A NÃO ESCUTA COMO VIOLÊNCIA À PESSOA IDOSA

 

Existem várias formas de violência no mundo, cometidas aos outros, com várias denominações diferentes que estão além, ou paralelas, à violência física. Machismo, racismo, aporofobia, legbtfobia, xenofobia, misoginia, idadismo, etc. Assistimos, ou ouvimos, casos e mais casos dia a dia através das mídias jornalísticas e hoje também nas mídias sociais. A não escuta à pessoa idosa também é uma violência, pesada, cruel, pouco explícita, pois se passa no ambiente familiar, por isso mesmo pouco difundida como tal.

Darei um exemplo de um caso ao qual tive acesso (nomes imaginários). Adla é uma senhora de noventa anos, com caso de Alzheimer. A vida inteira trabalhou, criou suas filhas e ainda ajudou a irmã a cuidar da filha, e ensinou filhas e sobrinhas na arte da culinária. Com a idade avançada, filhas criadas e aposentada, foi morar com sua irmã em um confortável apartamento e a auxiliava no gerenciamento da casa e da família.

Sua situação se complicou um pouco com a chegada do Alzheimer, inicialmente leve, crescente ao longo do tempo. Solução escolhida pela família: interná-la em uma casa de repouso. Uma casa simples, não muito cara, bem cuidada, mas com muitos hóspedes.

A pergunta de Adla é: por que estou aqui se tenho uma casa grande, com jardim e quintal, onde mora minha filha e meus netos? Por que estou aqui se tenho dinheiro para sobreviver? Por que estou aqui se minha irmã, a quem servi boa parte de minha vida, também tem posses e uma casa até maior que a minha?

O fato é que ninguém a escuta. Ninguém a responde. Agora ninguém mais a visita, para não terem que inventar uma resposta inadequada. A não escuta migrou rapidamente para o abandono. A não escuta é uma forma de violência porque reduz a pessoa ao silêncio, cancela sua voz: se ninguém a escuta, por que falar? Esse caso é mais comum que a gente imagina.

Primeiro porque o diálogo intergeracional inexiste há muito tempo em muitas famílias. Aquele pai rigoroso e exigente, aquela mãe ranzinza, ambos sem muito diálogo com os familiares, tornaram-se pessoas idosas e não é agora que mudarão de comportamento e atitudes tão facilmente. Mudanças comportamentais e cognitivas acontecem quando casos emocionais ou ambientais mais drásticos acontecem. Ou com muita terapia. Comportamentos e atitudes são qualidades aprendidas e, muito provavelmente, muitas pessoas se recusaram a aprender, ou nem tiveram oportunidade, ou pensaram não ser importante. A sabedoria não é um dom, é um aprendizado, para todas as pessoas de todas as gerações. Talvez essa pessoa idosa não tenha escutado seus filhos, o que também não justifica a não escuta dos filhos em relação aos pais.

Outro caso mais próximo a mim acontece com Jordelina. Noventa e sete anos completa este ano, anda com dificuldade, mesmo com o uso de um andador, e com demência não muito avançada e certa confusão mental. Lembra dos fatos mais antigos, esquece o que comeu no almoço ou quem a visitou pela manhã. Um pouco surda.

Jordelina adora contar histórias. Sempre foi exímia contadora de casos descrevendo cada detalhe da narrativa. Se contava de novo para uma plateia nova repetia cada detalhe, até as vírgulas e as paradas para respiração. Como atriz amadora que foi, já idosa, decorava a peça inteira para não perder a entrada em cena e não esquecer o momento de sua fala. Hoje mistura os casos. Conta-os em sequência, como se tivessem acontecido no mesmo tempo e no mesmo lugar.

Um dia, ao visitá-la, contei-lhe um caso. Meia hora depois chegou alguém e ela iniciou um caso que eu já conhecia, de tanto ouvi-la contar. O mais surpreendente é que ela misturou o caso iniciado com aquele que eu lhe contara. Contou como se fossem um só e como se ela tivesse vivenciado os dois. Incrível. Perguntaram-me porque eu ria, não respondi por respeito.

Convivendo com ela aprendi uma tática interessante para praticar a escuta respeitosa, sem desmerecer a interlocução, sem perder a paciência da escuta e ainda ajudar a pessoa idosa a se lembrar de alguma coisa, mesmo se for difícil inicialmente. É o velho e eficiente método da pergunta socrática. Quando a conversa começa a ficar repetitiva e cansativa, faço uma pergunta que a faz pensar. Ou simplesmente dizer não sei. Nesse caso faço outra.

— Quando mesmo foi isso, Jordelina?

— Você se lembra de seu tempo de escola? Onde foi mesmo que estudou?

— Teve festa em seu casamento? Quem estava presente? Havia muitos convidados?

— O que você fazia em seu trabalho?

— Quantos vestidos de noiva costurou em sua vida?

— Que você realizou na vida que mais gostou?

— Quem te ensinou a andar de bicicleta?

— Você disse que jogou vôlei. Na sua época os uniformes eram curtos? Jogava com as pernas de fora?

— Ainda sabe cantar aquela música do Sílvio Caldas? E do Nelson Gonçalves, seu cantor preferido?

— ???

A escuta não precisa ser cansativa. Pode ser divertida, mesmo sendo as respostas não confiáveis. A não escuta é uma forma de violência. Violência silenciosa e muitas vezes despercebida. A escuta pode ser criativa!

 Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)

 

quarta-feira, 24 de maio de 2023

O QUE VOCÊ TEM A PERDER, VELHO(A) CAMARADA?

  

Esta é uma boa pergunta. Afinal, o que nós, pessoas idosas por definição (mais de sessenta anos), temos a perder a esta altura de nossa vida, além de nos perdermos de nós mesmos? Posso responder a essa pergunta, não por todos, mas por mim, partindo de variados aspectos de minha vida, de ontem e de hoje.

Primeiro, comentemos sobre o tempo: sou um homem muito saudável, não tenho e nunca tive doenças complicadas, nem tomo medicamentos, só algumas vitaminas. Tenho uma mãe de noventa e seis anos que também não toma medicamentos. Está velha, em alguns dias levanta-se com dores nas pernas, mas creio ser apenas uma leve depressão, normal para a idade, ou uma artrose própria da velhice. Nesses dias ela gosta de ficar na cama um pouco mais. E só a esta altura de sua vida começa a perder a memória.

Significa que, do ponto de vista do tempo, eu ainda posso ter uns vinte e cinco a trinta anos de vida pela frente. Se eu continuar me cuidando e, seguindo as práticas saudáveis para o bom envelhecimento, eu posso chegar lá. Quero cuidar desse tempo que ainda tenho pela frente. Quero ganhar mais tempo. Não devo nada a ninguém, então uso meu tempo como quiser. E quero usar o tempo a meu favor.

 

Perder tempo, a esta altura da vida,

é fazer o que não queremos e não gostamos.

 

Em segundo lugar, eu gosto de escrever e desde adolescente eu sonhava em ser escritor. A vida me levou para outros caminhos, precisava trabalhar em algo que me garantisse a sobrevivência logo. Aos dezoito anos meu pai me deu um “se vira malandro”, ou seja, a partir dali eu estava por minha conta. Logo fui chamado para ser professor e segui essa carreira por mais de quarenta anos. Comecei a lecionar aos dezoito e parei aos sessenta e um. Foi um belo trabalho, eu sei, não o faço mais. Agora conto histórias de outras formas: principalmente escrevendo. Se terei público eu não sei, mas quero continuar contando histórias enquanto eu for vivo. Quero manter e aumentar estas oportunidades. Essa motivação eu a manterei a todo custo. Contar histórias através da escrita e de outras formas é meu projeto de vida.

E você, velho(a) camarada,

o que te motiva a viver uma vida longa e rica?

Qual o seu projeto de vida?

 

Terceiro, eu tenho muitos afetos. A dar e a receber. Tive dois casamentos que fracassaram por inabilidade minha, embora não exclusivamente. Já perdi o afeto de muitas pessoas em minha vida, por distanciamento ou por incompatibilidades mesmo. Hoje tenho uma companheira, dois filhos, três enteados, dois netos, ainda uma mãe, vários irmãos, sobrinhos e muitos bons amigos. Gostaria de tê-los a meu lado. Todos. Quero ter todos os afetos comigo. E por perto, se possível. Se estiverem longe fisicamente, que estejam perto, em minha mente.

O que fazer para ter os afetos por perto e não mais perdê-los sem perder nossa autonomia intelectual, identidade e dignidade?

Quarto, eu não tenho muito dinheiro. Tenho uma aposentadoria que me garante a sobrevivência com dignidade, mas deixei para trás, com minhas ex mulheres e filhos, meu pequeno patrimônio. Desapeguei-me deles. Não me importo muito com bens, meu maior bem é minha vida. No entanto, eu poderia estar muito melhor financeiramente se soubesse e me dedicasse a cuidar mais de minha vida financeira, ou, como dizem hoje, de minha saúde financeira.

Não fiz isso. Hoje as chances são ainda menores de criar novo patrimônio. Só tenho como bens, poucas coisas, que cabem no baú de um caminhão de mudanças. Só isso. Penso até em comprar um caminhão e morar nele, tantas mudanças eu já fiz e ainda farei. Então, quero manter minha saúde financeira atual, por mais débil que ela seja. Eu ainda quero ganhar dinheiro, ainda quero ter um patrimônio mais sólido. Minha profissão é contar causos e histórias, mas não é só pelo dinheiro que continuo a trabalhar.

 

O que você faz para manter sua vida financeira

equilibrada e saudável?

 

Quinto, eu sou um homem muito tranquilo e de bom humor. Consigo sair de situações complicadas da vida com elegância e sabedoria. Já me afundei muitas vezes e, até hoje, consegui me levantar de novo. E consegui manter minha calma, consegui manter meu olhar na busca da profundidade das coisas. E minha alegria. Minha alegria, minha calma, minha inteligência são meus maiores patrimônios. Eu resumiria isso definindo-me como um homem sábio. Isso quero manter, sempre. Minha sabedoria, essa ninguém me tira. E quero manter minha lucidez, para manter minha sabedoria ativa.

 

Como cultivar e manter a sabedoria,

esse patrimônio intelectual e espiritual

muito poderoso em nossa idade?

 

Resumindo, temos cinco patrimônios, imateriais, que devemos manter sempre conosco e nos lembrarmos sempre de nunca esquecer de nos lembrar o quanto são importantes para nosso envelhecimento saudável:

1. o tempo e a vida que ainda temos pela frente, com saúde;

2. a motivação para desenvolver nosso projeto de vida, seja ele qual for (no meu caso, contar histórias, principalmente através da escrita, mas também em vários outros suportes que a tecnologia nos permite);

3. os afetos, guardar conosco todos os afetos, até mesmo recuperar os afetos perdidos;

4. a saúde financeira, para não sermos dependentes dos outros e podermos usar nosso tempo como quisermos;

5. a sabedoria, com alegria e bom humor, que sabemos hoje ser uma forte aliada contra a demência.

Simples? Sim, simples assim. Difícil assim. Não é fácil ser simples, no entanto, o melhor caminho está na simplicidade. Podemos ter, nesses caminhos que a vida nos oferece, ricas experiências em nossa maturidade e velhice. Afinal, queremos viver, não é? Nosso objetivo é ter uma vida longa e saudável e poder contar, com nossa própria voz, nossas histórias para que todos nos ouçam e nos respeitem. E fazer muito barulho para mantermos nossa visibilidade neste mundo que nos quer invisíveis e calados esperando o final, a transformação, a morte. Claro que temos muito a perder, mas nossa sabedoria nos ensina a aprender com as perdas para ganhar uma vida longa e saudável. Perdas e ganhos, não é isso, velho(a) camarada?

O que não podemos perder, de fato, é a nossa generosidade e nossa gratidão. Sem elas não manteremos nem mesmo nossos patrimônios imateriais acima.

 

 

 

terça-feira, 23 de maio de 2023

O PARAÍSO DAS RÃS NÃO EXISTE MAIS

O Paraíso das Rãs da Ilha de Chatou, onde Pierre Augusto e Oscar Cláudio passaram um verão pintando suas telas impressionistas, não existe mais. Uma barragem construída no rio para facilitar a navegação fluvial a inundou totalmente anos depois da passagem dos dois amigos com suas telas, pinceis e tintas. Pelo menos eles não estavam mais neste mundo para lamentar a triste invasão industrial. Apesar disso, registramos aqui nossa impressão, em uma narrativa provavelmente nada impressionista, sobre aquele momento.

Pierre Augusto e Oscar Cláudio já eram pintores mais ou menos conhecidos em Paris. Já haviam montado uma exposição com outros dois amigos que conheceram nas aulas de pintura do professor Carlos. A exposição foi um fracasso total, mas marcou, no entanto, a entrada em cena de um tipo de pintura que detonava com os princípios básicos da arte defendidos pela academia. Isso os colocou em cena, não o suficiente, no entanto, para manter a sobrevivência se não fosse os apoios financeiros dos amigos e os retratos de algumas pessoas ricas que achavam interessante ter um retrato diferente em suas paredes.

No verão daquele ano do século dezenove, os dois amigos juntaram suas telas em branco e demais apetrechos do ofício e se mandaram para a Ilha de Chatou, com o único propósito de pintar o que vissem, de registrar a impressão, de cada um dos dois, daquele cenário de muito sol, calor, dias longos e alegria.

A paisagem era o alvo. O máximo de interferência era uma pessoa, uma modelo, colocada na paisagem para ser adicionada ao quadro. Para Pierre Augusto essa modelo era ninguém menos que sua namorada, Aline, mais tarde sua esposa e mãe de seus filhos. O local, conhecido como Paraíso das Rãs, local marcado pelo coaxar dos anfíbios anuros.

Os dois amigos passavam o dia pintando. Às vezes pintavam o mesmo lugar duas vezes, com as linhas tênues e desfocadas, marca registrada das impressões que faziam. Pintavam em dois horários diferentes, só para registrarem as diferentes nuances da iluminação. Às vezes pintavam um quadro ao lado do outro, ao mesmo tempo. E assim inventaram a impressão panorâmica, bem antes da fotografia.

O almoço era sempre no mesmo restaurante. Ficaram amigos do proprietário e dos frequentadores contumazes naquela época do ano. A diversão no balneário era o banho de rio e o remo, por isso o restaurante ficou conhecido também como Bistrô dos Remadores.

Para deixar o registro ao mundo, a impressão daquele momento com os amigos, Pierre Augusto retratou a mesa do almoço, com a presença de Aline e seu cãozinho, do dono do restaurante em sua pose clássica de observador do local, com seu chapéu amarelo, além de outros amigos. Oscar Cláudio, pintando em outro local e registrando outro ponto de vista, não aparece na cena. Ao fundo se vê os barcos a vela, naquele Paraíso das Rãs, que o futuro lançamento do esgoto do norte e noroeste parisiense, mais a inundação provocada pela barragem, fizeram desaparecer totalmente da paisagem.

Mas, o registro do momento, da paisagem, do modo de vida de todos à época, ficou nos quadros pintados tanto por Pierre Augusto como por Oscar Cláudio. Em especial, o Almoço em La Grenouillère, ou Almoço dos Barqueiros se encontra em Whashinton, USA, no museu conhecido como “The Phillips Collection”. Pierre Augusto, que começou como pintor de pratos de porcelanas e em seguida imitador de obras vistas naquele museu perto de sua casa, o Louvre, deixou sua obra em grandes museus do mundo. Morreu pobre, como muitos artistas, mas mudou a história da arte no planeta Terra.

 

OBS: Quem quiser saber mais sobre as obras de Pierre-Auguste Renoir e Oscar-Claude Monet a Internet tem páginas, sítios e portais totalmente dedicados aos dois. Já Claude Monet conseguiu deixar grande parte de sua obra em um espaço-museu com seu nome em Giverny, a Fundação Claude Monet.

 

Pierre Auguste

Impressiona o mundo

No paraíso das rãs. 

 

 

 

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...