sábado, 25 de janeiro de 2014

MINHAS MORTES ***



Não foi minha primeira morte. Já tive outras. Claro, não sou funcionário da saúde, não trabalho em hospitais, mas já vi pessoas morrerem. Minha primeira morte, ainda criança, foi uma visão terrível. Vi uma caminhoneta descendo, sem freios, a estrada em frente à casa onde eu morava. Uma descida íngreme. Eu estava na curva da estrada e fiquei paralisado com a caminhoneta em ziguezague e alta velocidade. Ela capotou a poucos metros de mim e havia um senhor na carroceria. Morreu ali, na minha frente, todo machucado.

Já com uns vinte e poucos anos vi a morte lenta do avô de minha primeira esposa. Minha ex-sogra, sua filha, não saia de perto dele e o acompanhou em seus últimos momentos de vida. Nos anos mil novecentos e noventa, não me lembro exatamente quando, um cara atirou em outro a poucos metros de mim, em plena luz do dia, na Praça da República, São Paulo. E fugiu. Eu assisti o tiro e assisti a morte rápida do indivíduo.

Em dois mil e quatro presenciei um tiro, à queima roupa, em um cara, na minha frente, ao lado da minha casa, em construção na época. O indivíduo não morreu na hora. Presenciei o tiro, não a morte.

E, recentemente, na virada do ano, assisti a morte de meu pai. Vi sua lenta agonia, eu e minha irmã Maria Amélia. Sentamos à frente de seu leito de moribundo e ficamos assistindo, impotentes, a diminuição de sua respiração, até o fim. Eram dezenove horas quando ele deu sua última palavra, às vinte e duas horas ele deu o último suspiro. Após a morte, operações funerárias de praxe. Trinta e cinco horas entre o falecimento e o sepultamento, tempo de espera para a chegada de todos os filhos.

Eu não tive tempo de lamentar, não tive tempo de chorar. Na verdade, não tive vontade de lamentar nem de chorar. Alguns familiares me recriminam de não ter apresentado um semblante triste e choroso. Sinto muito, eu lamentei sua agonia, não a sua morte. Era o tempo dele ir.

Eu comemoro a sua vida. Tudo que eu já vivi em sessenta anos é apenas um pedaço pequeno perto do que ele viveu em oitenta e cinco anos. Ele viveu com galhardia, exercitou seu charme, esparrodou sua fina ironia e seu humor refinado, amou muito e muitas mulheres, trabalhou como um leão, esbanjou rabugice, distribuiu seus trovões indomados. Como um homem de seu tempo viveu todas as idiossincrasias do ser masculino nascido em mil novecentos e trinta e oito num país rural e machista.

Uma semana depois eu fui a uma festa de aniversário de uma amiga. Ela veio até mim com uma cara desolada dizendo-me de suas condolências. Eu lhe disse: - Não quero mais falar sobre isso. Já passou, eu estou bem e é sua festa. -  Também não vou mais escrever sobre isso. Apenas aquelas três horas finais em que eu e minha irmã estivemos a seu lado não saem de minha lembrança. Muito diferente das minhas outras mortes, embora eu me lembre nitidamente de todas elas.  

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

COMPORTAMENTO


             i.   O trovão

Minha mãe sempre falava que os homens da família Ventura não falavam, trovejavam. O trovão não é um evento isolado, ele não aparece assim, sem mais nem menos. Primeiro um tanto de nuvens negras se aglomera e se avoluma, e se adensa, se movimenta, cria tensões entre elas e, de repente, raios, relâmpagos e ... trovões. O trovão é um descarrego de todas essas tensões acumuladas. Era isso que minha mãe queria dizer. Nós, os homens Ventura, deixávamos acumular as tensões e, ao trovejarmos, já havíamos descarregado em sei lá quem, talvez um pobre coitado que nem soberbo era, cujo defeito era estar próximo, todos os nossos raios e relâmpagos. Lembro-me de não sei quantas brigas eu ia cozinhando a chateação e quando as nuvens negras se adensavam sobre minha cabeça eu só parava quando alguém me puxava. E a briga era aos berros, trovejando. Com o tempo tive que aprender a controlar esses trovões. O único jeito era não deixar as nuvens negras se avolumarem. Movimentos, esportes, corridas na chuva, pedaladas de horas, até ficar cansado e esparramar nuvens para todos os lados. Isso me custou um casamento, custou a distância de pessoas queridas. Acho que aprendi. Hoje me considero um doce de pessoa. Falo baixo, não mais trovejo (raramente), aprendi a escutar primeiro, com muito, muito custo. Hoje, com o aprendizado da meditação, da respiração controlada, consigo ficar calado, embora de vez em quando minha companheira ainda tenha que me chamar a atenção por alguma ligeira recaída. Esse é um tipo de comportamento que me custou caro mantê-lo e caro modificá-lo.

             ii.      As mulheres

Quando criança e adolescente eu era absurdamente tímido. Não conseguia conversar com outras pessoas, apenas observava comportamentos alheios. Aprendi, pelo menos, a ser observador. A prestar atenção em tudo à minha volta. E, chegando em casa, comentava tudo que meu radar de observação havia registrado. Assim, tinha também muitas histórias. Soma-se a isso a educação severa que eu recebi, principalmente no sentido de respeitar as pessoas, respeitar as mulheres. Para minha mãe era manter distância das mulheres. Com isso tive poucas e insatisfatórias experiências sexuais até conhecer uma mulher e casar com ela. Quando levei um susto estava casado, com vinte e poucos anos e dois filhos. Tudo era muito lindo, maravilhoso, mas em dado momento eu quis conhecer as mulheres, conhecer várias mulheres. E namorei, escondido, o quanto pude e não deveria, era casado. Entre os trinta e os quarenta anos, namorei uma infinidade de mulheres. O que me custou o casamento primeiro e quase me custou o segundo ainda recém iniciado. Tive que tomar uma decisão. Minha segunda companheira, e atual, é uma pessoa maravilhosa, inteligente, bonita, bem humorada e muito companheira. Tive que parar de namorar. Mantenho as mulheres a uma distância segura. Sou um mulherengo nato (outra fama ruim dos homens Ventura). Mas hoje a palavra mulherengo tem outro significado para mim. Meu universo cotidiano é primordialmente feminino. Tenho muitas amigas, trabalho com muitas mulheres, rodeio-me de muitas mulheres, exercito meu charme, mas não as namoro.

             iii.      O trabalho


Eu nunca soube qual era minha vocação. O trabalho foi aparecendo. E fui pegando à medida em que era necessário. Primeiro, em casa mesmo. Tínhamos uma horta grande, que produzia muito, e eu vendia os excedentes. Desde tenra idade saia com um balaio de verduras e legumes para vender na cidade. Conheci a cidade de Nova Lima de cima a baixo, entrava em todos os seus becos para esvaziar o balaio. Aos quinze anos passei em um concurso para ser contínuo em um banco. Que horror. Consegui ficar dez meses nesse trabalho. Para nunca mais me meter com contas dos outros. Como eu tinha que entregar cobranças para os clientes do banco eu conheci o restante da cidade, as poucas vias e ruelas que ainda não conhecia. Este foi o único lado bom do trabalho. Então resolvi me ocupar apenas dos estudos. Como passei no vestibular para Física, sei lá porque escolhi essa disciplina, fui logo chamado para ser professor na mesma escola em que eu acabava de me formar no ensino médio. E nessa profissão fiquei até me aposentar. Colecionei locais de trabalho, porque eu não sou muito afeito a chefias, a mandantes, e sempre que eu me chateava com algum deles eu mudava de local de trabalho. A vantagem de ser professor de Física é que nunca faltou local de trabalho. Ele me procurava. Mas eu nunca foquei muito no trabalho. Essa foi uma falha grande, hoje o sei. Mas consegui ser professor por quarenta anos, parei agora e invisto em outra profissão: a de coach.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

AUTO IMAGEM


Comecei a ler o BAÚ DO RAUL e parei para trocar a tampa do vaso sanitário. Tudo são mundanas filosofias, aquela filosofia que borrifa água na cara da gente. Quem gosta de rock'n roll gosta, pelo menos um pouco, de Raul Seixas. Continuarei a ler depois. Estou indignado porque achei esse livro no lixo da Rua Santa Cruz, Vila Mariana, São Paulo, junto com outras raridades, entre elas Rousseau, Engels e Nietzsche. Acho que temos um ex socialista naquele endereço. Jogou fora sua sociedade alternativa. 

Não quero ser guru. A única coisa que prego é, de fato, pregos em madeira. Também bato três vezes na madeira para espantar pensamentos malquerentes. Nasci em 1953, pouco antes de Raul começar a cantar a Sociedade Alternativa. Nesse momento, no entanto, Elvis Presley começava a aparecer com seu rock-country-blues, os Beatles ainda ensaiavam os primeiros acordes e a tal da bossa-nova se preparava para se lançar com tal. 

Aos onze anos de idade veio a maldita ditadura militar que mudou os rumos de muita gente boa, de muitos amigos chegados a nossa família e nossa casa vivia sob constante vigilância. Alguns amigos mudaram de rumo, outros ficaram sem rumo. Nenhum rumo. Foram para debaixo de uma terra que nem era a terra deles.

Nasci no interior de Minas, meu pai era andarilho no princípio, depois parou em certo lugar, do qual nunca mais saiu. Lá ficou cinquenta e cinco anos, até partir em definitivo. O espírito andarilho dos primeiros anos de vida grudou em mim. Em sessenta anos tive vinte e cinco endereços fixos e mais alguns temporários. Nada mal para uma pessoa sossegada.

Gosto de estudar, de ler, de escrever, de resolver problemas de lógica que me ajudam a pensar. Não tenho grandes habilidades manuais embora saiba usar o serrote e bater pregos em madeira. Podar o jardim também é uma habilidade. E subir em árvores e em montanhas. Jogos de cartas, dados e xadrez não é comigo não. Jogos de movimentos sim. Quando criança eram as cantigas de roda e outras brincadeiras mais perigosas como correr atrás de vaca no pasto e escalar a caixa d'água de quarenta metros de altura, no local onde morávamos. E fugia para a mata do Jambreiro para mostrar coragem, porque lá tinha animais perigosos. Nadar, correr e pedalar são os esportes de hoje, os que a idade permite: antes eu jogava futebol e peteca.

Graduei-me em Física e doutorei-me em Sociologia das Ciências. Em universidade francesa. Em Dijon, onde também aprendi a apreciar vinhos e queijos. Bebo, pouco, porque gosto. Gosto também de cozinhar e de comer bem. Fui professor quarenta anos. Adorava a profissão mas desapeguei-me dela. Hoje, inicio a carreira de coach. Em meio a tantos jovens coaches sinto-me responsável, jovem embora maduro pela mochila pesada que às vezes carrego. Nas sessões de desapego pelas quais tenho passado, descarrego a mochila. Leveza é tudo. Tudo que pretendo é ser leve e transparente. Minha bagagem precisa sempre ter menos de dez quilogramas para não precisar ficar parado na esteira dos aeroportos esperando malas.

Sempre gostei de meus cachos. Hoje eles estão brancos e os mantenho curtos. Mas quem tem cachos na cabeça pensa diferente. Os cachos e a cor morena da pele ajudam a definir identidades, mais que definir imagens. Um moreno de cachos na cabeça não é negro nem branco. Hoje nos definem como pardos. Pardo é essa cor indefinida, descorada. Eu prefiro os tempos, lá na roça, em que diziam que eu tinha cor "de burro fugido". "De burro fugido" pelo menos é cor. Mas, enfim, sou pardo. E honro minha parda "cor". No fim da história todos serão pardos. É para lá que caminha a humanidade.

Alguns parentes e amigos (principalmente parentes) se incomodam com minha alta autoestima. Afirmam, com desdém, que me acho o máximo. Estão errados, eu não me acho o máximo. Eu sou o máximo. E não gasto dinheiro com psicanalista para aumentar a minha autoestima. E dou o melhor de mim para os outros. Aqueles que estão perto e aqueles que se aventuram a me conhecer são bem vindos.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

ADEUS AO CHICO



"Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria...
Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos... 
Essa... a alegria que ele quer" (Guimarães Rosa).

Carrego comigo, para sempre, uma coleção dos últimos momentos do velho Chico, não o rio, mas o Francisco, que era forte como o rio. E que, no último dia do ano, nas últimas horas do ano, sob os fogos de artifício que anualmente marcam esses últimos momentos do ano, foi desaguar no mar do desconhecido pós-ciclo de vida, dessa vida. Lá se foi o Chico, e me deixou com essa forte coleção que não ocupará nenhum diaporama de exposição, ocupará apenas a minha memória. E antes que a memória se dilua, tento eternizá-la, pelo menos para mim mesmo.
Brindamos, e bebemos juntos, seu último trago de cachaça, aquela sua preferida de todos os domingos antes do almoço. Comemos juntos seu último tira-gosto, que acompanhou seu último trago. A cirurgia de depois o impediu de continuar cultivando esses prazeres. Foi quando a vida lhe pregou uma peça e o impediu de cultivar alguns de seus prazeres, esse entre eles. Nossa vida passou a ser mais de cuidados que de prazeres, eu (e os manos) cuidando dele, ele sendo cuidado fisicamente por nós, ele cuidando de nós espiritualmente para que a despedida previsível não fosse tão dolorosa. Apenas carregada de lembranças.
E eu tive a oportunidade de guardar essa coleção de últimos momentos. Guardo seu último olhar, antes que seus olhos passassem a enxergar outras coisas, além desse espaço, além de nossa consciência, além de nossa compreensão. Guardo seu último esboço de sorriso, exatamente quando eu entrei em seu quarto de últimos momentos. O sorriso foi tímido, carregado da dor que o comia por dentro, mas um sorriso. Anterior a seu último olhar. Guardo também sua última palavra audível, que ele proferiu olhando para mim. E sua última palavra pronunciada foi meu nome, como se ficasse contente em me ver e se despedisse simultaneamente.
Guardo em meus olhos o último movimento de seu gogó, antes que sua respiração findasse de vez. Guardo em meu dedo indicador direito a última pulsação de suas artérias. Eu com o dedo em seu pescoço, tentava sentir sua vida se esvair para registrar aquele infinitésimo último minuto, e assim registrei o último pulso da última onda de vida. Ainda sinto em meu indicador direito essa última vibração.
Fico com minha coleção de últimos momentos, mas não fico com a dor. Recuso a dor. Aprendi a alegria. Aprendi o bom humor. Aprendi as curtas frases de efeito capazes de fazer rir quem está próximo vivenciando os mesmos momentos, os duradouros momentos. Aprendi que a vaidade e o orgulho são mesquinhas características humanas que, felizmente, tem bons antídotos: o exercício da humildade e do perdão. Aprendi que um olhar e bons ouvidos podem dizer muito mais que discursos longos e vazios.

Sou capaz da alegria sozinho, mesmo com a perda de pessoas e coisas. E com a alegria quero viver até os meus últimos momentos, que, espero, sejam registrados por alguém que eu ame.



SER FELIZ DEPOIS DOS SETENTA

  A pergunta que todos fazem, inclusive eu, é: “é possível ser feliz quando a idade já se representa por um número tão grande? Como? É bem p...