quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

ENTRE MEMÓRIAS E ESQUECIMENTOS

 

Depois dos sessenta anos, memória e esquecimento travam uma luta ferrenha. Cada um querendo a primazia da ocupação dos espaços da mente. Já que o esquecimento ganha quase sempre podemos, pelo menos, discernir sobre o que esquecer e o que lembrar. Esquecemos, então, datas de aniversários, da hora de fazer pequenas e desimportantes coisas, do local onde o carro está estacionado, onde ficaram os óculos, a mochila, o tênis para a caminhada, o chapéu, etc. E quem mandou bater o portão sem se certificar que a chave da casa está no bolso? Como entramos em casa agora? Melhor se lembrar do tradicional bom humor, muito útil nessas horas. Depois dos sessenta, que razões para perder o bom humor? Tanta coisa para esquecer!

Jordelina, hoje com quase cem anos, começou a fazer teatro aos setenta. Algo escondido dentro dela, tanto tempo adormecido e que, de repente, brota em seu coração como roseira que esconde espinhos nas folhagens e mostra sua beleza a quem vê perfumes e cheira mistérios. Assim como disse Conceição Evaristo, a escritora, começou a se sentir viva aos setenta anos: “Nunca somos novas demais nem velhas demais para nada”.

Todos os mistérios vêm das sombras,
é na penumbra que nos desnudamos.
Tom pastel dos silêncios
brinca na memória dos bem vividos.

Moradora em uma cidade da região metropolitana, três vezes por semana tomava o ônibus que a conduzia à capital para ensaiar com seu grupo de teatro, todos os atores e atrizes já cheios de experiência de vida. O auge de Jordelina atriz foi na peça Morte e Vida Severina, baseado em obra de João Cabral de Melo Neto. Jordelina, mais de oitenta, brilhou. Cantou, dançou, representou provavelmente muitas das mazelas de sua própria vida. O grupo atuou em hospitais de crianças, em casas de repouso, em presídios até que foram convidados para atuarem em um grande teatro da capital. Eu estava lá, nos bastidores, porque me intrigava o fato de Jordelina estar quase surda. Como ela fazia para nunca perder a hora de entrar no palco, a hora de soltar a voz? Foi aí que entendi. Ela decorava a peça inteira e ficava na porta de entrada do palco observando e repetindo baixinho as falas dos atores e atrizes que estavam no palco. Assim não perdia sua vez.

Imagens são como sombras:

guardiãs de nossa memória

e de nosso medo da morte.

 Infelizmente, o grupo de teatro de atores e atrizes com “data de nascimento avançada” foi dissolvido pelos produtores, o diretor de cena demitido e as pessoas aconselhadas a irem para casa, como se mambembes fossem. O que fazer com aquele fogo na alma tanto tempo escondido e tardiamente aberto para todas as ardências de uma viva reconstruída? A depressão tomou conta de Jordelina, a solidão adquiriu dimensões devastadoras, as pernas de bailarina foram sendo tomadas pelas artroses, o esquecimento foi chegando devagarinho. A pandemia botou uma pá de gelo no que sobrou daquelas labaredas ainda insistentes.

Logo depois do Ano Novo deste ano de 2024, Jordelina recebeu a visita da neta e de alguns de seus bisnetos. Como vieram de longe, ficaram por alguns dias.

— Quem são essas pessoas que se instalaram em minha casa? Que crianças barulhentas e inquietas?

A memória dela, ausente, se juntou à quase ausência de sua audição. Jordelina, no entanto, continua contando causos, basta alguns ouvidos atentos se postarem em sua frente. Lembra da infância, dos tempos de juventude quando morou na capital. Na verdade, lembra-se de todos os momentos felizes de sua vida, aqueles mais antigos, menos dos tempos de teatro, os mais felizes de sua vida. Não teve diagnóstico de Alzheimer, apenas de perda continuada de memória.

Nossa memória é banco de dados
armazenados para quando tomarmos um vinho
diante do fogo das reminiscências.

Certo dia, uma de suas bisnetas, Maria, de uns cinco ou seis anos, sentou-se em sua frente e começou a fazer perguntas. Ela não as respondia, exatamente, mas contava causos que a menina ouvia atentamente. E Maria respondia com outros causos de sua curta existência, cheia de personagens das histórias que ouvia de seus pais. Foi um diálogo, fragmentado, maravilhoso entre duas pessoas com uma diferença de idade de mais de noventa anos, registrado apenas pelos olhares dos presentes admirados.

Maria voltou com seus pais para sua casa distante. Jordelina sempre pergunta por ela: — Cadê Maria? O avô de Maria, filho de Jordelina, recebe um telefonema da filha, dizendo que chegou bem e a anciã vê os bisnetos pela chamada de vídeo do aparelho celular. De quem ela se lembra? — Olha, é Maria.

Esquecer é sobreviver: lembrar?
O futuro começa
no instante depois do verso
no primeiro beijo depois do encontro
na estória que se conta agora.




quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

NEM BRANCO NEM PRETO

A vida sempre foi colorida, nunca em preto e branco. Olho de minha janela e vejo as montanhas em verde, os telhados das casas em marrom, as paredes multicoloridas com suas janelas em branco, ou azul. Em meu jardim vejo muito verde, cor natural da vegetação, com flores em cores tão diversas que fica a impressão que algumas acabaram de ser inventadas na paleta de cores do universo.

Algumas tribos da Amazônia têm trinta e duas palavras diferentes para identificarem os diversos tons de verde das matas. Coincidências à parte, os povos das planícies siberianas chinesas também têm trinta e duas palavras diferentes para distinguirem os diferentes tons de branco.

Então, por quê reduzir a cor da pele dos seres humanos em apenas quatro palavras: branco, preto, pardo e amarelo? Amarelo? Quem é amarelo? Amarela é minha roseira em flor. Quando a jovem recenseadora do IBGE me perguntou com qual dessas cores me identifico, respondi: — verde é minha cor na terra e azul quando estou voando. Sou preto na sombra e descolorido dentro d’água. — Essas cores não podem, não constam do formulário. — Então, sou pardo, ou “cor de burro fugindo”.

Meu avô paterno era branco, de cabelos claros e olhos azuis. Casou-se com uma mulher indígena filha de um português. Tiveram mais filhos brancos que pardos ou amarelos. Não conheci meus avós maternos. Minha mãe não nos falava sobre eles, pois foi criada por terceiros, muitos terceiros diferentes. Ela tem a pele clara, mas escolheu casar-se com um homem de pele clara porque, segundo ela, não queria ter filhos com cabelos crespos. Ledo engano. Entre seus nove filhos, sete têm os cabelos crespos.

Em minha casa era assim, o Brasil inteiro é assim. O racismo está entranhado na cultura. A cor da cultura familiar não é a cor dos ancestrais, mas a cor dos chefes das famílias. Branca, portanto. Só mais tarde na vida é que podemos fazer outras escolhas, inclusive que cor podemos dar a nosso passado e à nossa cultura. Amadurecer e envelhecer nos permite ressignificar o passado. Minha mãe não me deixava namorar moças pretas. Hoje frequento terreiros de umbanda e candomblé, tenho amigos quilombolas e participo de ambientes culturais das comunidades negras. Com isso posso afirmar: nossa cultura é preta e indígena, o Brasil é mais preto que branco. Minas Gerais, um estado com a aparência de uma cabeça, tem a cara preta. É o IBGE quem afirma isso.


O QUE ESPERAR PARA 2024, VOVÔ?

Todos os finais de ano e início do ano novo as histórias se repetem. Sempre queremos algo novo, perspectivas novas, alegrias novas: desejos que quase nunca são satisfeitos, porque a mesmice reaparece depois da Folia de Reis. Retiram-se as luzes extras colocadas nas praças, as vitrines das lojas readquirem seu aspecto anterior. O que muda é o barulho das ruas, agora com os ensaios exaustivos das escolas de samba e dos blocos de carnaval que cresceram como pragas (muitos gostam) pelo Brasil afora. Depois do Ano Novo, espera-se o Carnaval chegar. E quem sabe a vida volta ao normal de antes. Mas as nossas esperanças permanecem. Ainda bem.

Para o ano novo, desejo:
— que o tempo não se meta
na vida dos amantes.
Nem dos velhos.

 

Principalmente dos amantes idosos e das amantes idosas. De todos os gêneros. Afinal, o que todos desejam, por direito adquirido, é viver, amar, aprender e deixar um legado. Frase que, originalmente publicada em inglês, carrega uma sonoridade maravilhosa (live, love, learn, and leave a legacy) todas com a letra l.[i] É exatamente o que nós, pessoas idosas, também queremos para nossas vidas: viver em paz, dar e receber amor, ainda aprender e cuidar daquilo que queremos deixar para as gerações futuras, muito além dos patrimônios materiais.

— Que o sofrimento não atemorize corpos.
Que morte chegue suave
aos doentes terminais,
ao som dos Beatles.

 

Sim, um dia ela vem. Para todos. Tive a honra de acompanhar o meu pai durante o período crítico de sua vida, justamente na terminalidade dela. Foi um dos maiores aprendizados que tive ao longo de minha existência. E dele também. Eu, amante dos Beatles, usei a música dos rapazes de Liverpool como trilha sonora, principalmente Yelow Submarine. Mas poderia ser outra música. Trilhas sonoras são colocadas a gosto do diretor de cena, sempre com o intuito de, através da emoção, sugerir novos olhares.

— Que a luz dos olhos de minha morena
brilhe como faróis em tempestades
e enxergue bem longe.
Guiando. Como sempre.

 

É o que a gente sempre espera das mulheres: que elas iluminem nossas vidas e nos guiem nos principais momentos de tomada de decisões. O que devemos fazer é criar as condições necessárias para que elas exerçam seus poderes de magia com alegria e serenidade. O que todo homem deve almejar na vida é uma parceira, ou um parceiro, feliz. Porque a felicidade se expande, seduz e atrai outras pessoas felizes.

— Que ninguém perceba o negro pela cor,
mas:
Pela beleza intrínseca. 
Pela inteligência tão normal de qualquer cor.

 

O racismo ainda está longe de deixar de existir. Ele é estrutural em nossa sociedade, ainda escravocrata. Algumas mudanças começam a acontecer através de algumas redes de comunicação. Nunca vimos tantas pessoas pretas nas telas de televisão brasileiras, tanto nas novelas e séries quanto na publicidade. Antes eu pensava que algumas coisas eram privilégios de brancos: comprar um imóvel, por exemplo. Outras ainda são. Ser atendido com dignidade nos serviços de saúde ainda é diferenciado pela cor da pele. Gostaria que toda pessoa idosa preta fosse vista, e atendida, com alegria nos olhos, pois ela trás a sabedoria dos ancestrais, sabedoria adquirida no sofrimento da vida.

— Que a indignação não desapareça
dos semblantes éticos.
São poucos.
Precisam crescer como pragas boas.

Só a indignação pode levar à frente um projeto de verdadeira mudança no caos da vida. Porque as pessoas se acomodam e começam a acreditar que é normal o sofrimento, é normal a dor do outro, é normal a luta anormal empreendida pela maioria. O que nos salva é nossa indignação.

— Que a vida, 
e a alegria de viver,
sempre renasça no sorriso das helenas,
tão pequenas, serenas.

Nossas esperanças sempre são colocadas nos ombros de nossas crianças. Sempre colocamos em questão que mundo deixaremos para elas, mas precisamos pensar também em que crianças queremos que cresçam em nosso mundo. Se temos a mínima ideia do que queremos para o mundo e para elas no futuro, coloquemos todas as nossas fichas na educação delas. Qualquer gasto com a educação é pouco, porque educação tem que ser analisada como investimento para o futuro, não como gasto.

— Que a minha poesia sobreviva
a minhas botas e a minhas luvas
(creio ser melhor poeta que boxeador)
e meu bom humor permaneça
além das memórias.

Botas e luvas são símbolos de minha trajetória e de minha luta nesses mais de setenta anos em que permaneço neste planeta. Já caminhei muito e já dei muita porrada na vida (ambos literal e metaforicamente). Foi pouco? Deveria ter feito mais? Perguntas sem respostas adequadas. Briguei muito para ter acesso àqueles quatro direitos fundamentais de todo ser humano: viver, aprender, amar e deixar um legado. Porque a indignação permanece. Porque vi o mundo mudar tanto e tão pouco ao mesmo tempo. Fisicamente tanto, mentalmente e espiritualmente tão pouco.

Que venha um ano novo com renovadas esperanças, porque esta não morre, segundo o ditado popular.



[i] Covey, Stephen R.; Merril, A. Roger; Merril, Rebecca R. First Things First: To Live, to Love, to Learn, to Leave a Legacy. New York, Francis Covey Co, 1996.

 

 

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...