terça-feira, 31 de janeiro de 2023

APOROFOBIA: POBRE E VELHO, QUE HORROR

Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)

O uso da palavra aporofobia é recente no Brasil. A maioria de nós teve notícia de sua existência e significado pelas intervenções do Pe. Júlio Lancellotti, de São Paulo. Em suas públicas indignações a respeito das alterações nos espaços públicos impedindo o acolhimento dos moradores de rua, ele imprimia o termo “aporofobia” nas fotografias desses locais. Ele fazia uma antipublicidade das marcas das lojas e instituições e poder público que colocaram pedras e pontas nos espaços de rua evitando, assim, a presença de moradores de rua. Nas cidades brasileiras, a aporofobia aparece principalmente no uso de grades, lanças e muros para impedir a aproximação de moradores de rua de residências e estabelecimentos.

De onde vem a expressão “aporofobia”? Situações muitas vezes classificadas como "racismo" ou "xenofobia" deveriam ter, na verdade, outro nome: "aporofobia". Este é o argumento da inventora da palavra, a filósofa espanhola Adela Cortina, que a criou nos anos 1990. De acordo com ela, há casos onde o ódio a imigrantes ou refugiados, por exemplo, não decorre da condição de estrangeiros, mas, sim, da situação de miséria em que essas pessoas se encontram. Em uma entrevista, Adela Cortina afirmou que criou o termo justamente para “dar visibilidade a essa patologia social que existe no mundo todo”. A filósofa afirma que “é comum tratar bem quem pode nos fazer favor ou dar algo em troca e abandonar aqueles que não podem nos dar nada disso”.

 

Por que há tantos pobres no Brasil?

Por que a maioria dos pobres são pretos?

 

Esta é uma questão mais política que econômica. E sua origem está lá no Império. Em mil oitocentos e cinquenta (1850) o Congresso brasileiro aprovou dois projetos de lei que colocaram as primeiras pedras pontudas para impedir a distribuição da riqueza no Brasil. O primeiro deles proibia a entrada de novos escravos no Brasil, mas, simultaneamente, impedia que os escravos e imigrantes pobres europeus fossem donos de terras no Brasil.  Na época a marinha inglesa pirateava os navios negreiros e libertava os negros que vinham para o Brasil como escravos. O governo inglês fazia enorme pressão para a libertação dos escravos. Com isso, os donos de terras e de escravos arriscavam ficar sem mão de obra e pressionaram os congressistas na elaboração de leis que impediriam o enriquecimento dos seus antigos escravos quando viesse a abolição da escravatura. Essa famigerada lei só perdeu a validade com a morte dos antigos escravos após a abolição em mil oitocentos e oitenta e oito.

O segundo projeto de lei foi ainda pior.  Em dezoito de setembro de mil oitocentos e cinquenta (18/09/1850) Dom Pedro II sancionou a lei que dividia a zona rural em latifúndios, em vez de pequenas propriedades rurais. As terras brasileiras eram tidas com pertencentes ao Império (na verdade, sabemos serem dos indígenas) e as terras rurais eram ocupadas por posseiros, ricos e pobres. A narrativa de argumentação dos congressistas era que os posseiros pobres não teriam condições de lutar e expulsar os indígenas (chamados de gentios) das terras e, ao mesmo tempo, cuidar da agricultura e pecuária. Dois crimes cometidos simultaneamente: contra os indígenas e contra os posseiros pobres. Os indígenas foram expulsos, muitos morreram e suas muitas de suas mulheres trazidas à força para os ambientes domésticos. Os posseiros pobres ficaram com trabalhadores rurais mal pagos ou vieram engrossar os nascentes aglomerados nos morros das cidades.

Meus antepassados indígenas, da tribo dos botocudos, viviam às margens do Rio Piracicaba, em Minas Gerais. A terra deles se chamava Itajuru, a pedra do papagaio. Coincidentemente, a primeira escritura da ainda hoje denominada Fazenda Itajuru data de mil oitocentos e cinquenta (1850), lavrada por um cidadão de origem portuguesa de nome João Batista de Figueiredo. Ou seja, sancionada a lei, um rico cidadão foi ao cartório e registrou a terra. Um parente desse senhor, um tal de Miguel de Figueiredo, trabalhava no gabinete de ninguém menos que o Sr. Bonifácio de Andrada. Minha bisavó e minha avó, de fortes traços fisionômicos indígenas, carregavam esse sobrenome. E a Fazenda Itajuru ainda está sob os cuidados de um Figueiredo, primo distante.

O resultado dessa legislação está gravado no retrato do Brasil, ainda hoje.

Muita terra para poucos donos e pouca terra para muitos donos.

Tamanho da propriedade

Percentual de ocupação da zona rural

Percentual de propriedades e proprietários

Maior que 2 mil hectares

50 % da zona rural

0,7% dos proprietários

Menor que 25 hectares

0,5 % da zona rural

60% dos proprietários


 

Nada mudou desde então. Entra governo e sai governo, muda o Congresso a cada quatro anos e nada muda. A pobreza aumenta, os pobres ficam isolados nos aglomerados, novos nomes para as favelas.

Já sobrevoaram uma grande cidade brasileira durante uma tarde ensolarada? As cidades são símbolos vivos da aporofobia. Aporofobia urbana, com crueldade da arquitetura e urbanismo. Os bairros ricos são menores e em algumas cidades são ilhas de riqueza e beleza em um mar de pobreza. Ilhas são uma metáfora ruim: elas podem ser tomadas. Nossas ilhas de riqueza são protegidas pelo poder público e cercadas por grandes avenidas que separam os bairros de classe média alta dos aglomerados. Esses dois mundos não se misturam.

Quando você for convidado pra subir no adro da fundação
Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados...

(Caetano Veloso e Gilberto Gil)

 

Não se misturam, mas ambos envelhecem. Só que ricos e pobres envelhecem diferentemente. Em artigo anterior no Portal do Envelhecimento (https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/o-brasil-e-negro-mas-o-envelhecimento-e-branco/) destaquei as diferenças de tratamentos, em diversas esferas, a pessoas pretas e brancas idosas. O recorte não é muito diferente se focalizarmos as diferenças entre as pessoas idosas pobres e as ricas. Pessoas idosas pobres vivem menos sendo negligenciadas nos atendimentos pelos vários órgãos do poder público. A legislação pertinente, o Estatuto da Pessoa Idosa, já fez vinte anos e poucas coisas mudaram. Porque não se muda a distribuição de riqueza e consequente diminuição das desigualdades sociais apenas com uma legislação de proteção à pessoa idosa. Velhos e pobres continuam velhos e pobres. Ao aposentarem, as pessoas pobres têm seus salários diminuídos, quase sempre. As pessoas ricas, além da previdência social, geralmente têm um acréscimo pela previdência privada.

Há formas de combater as desigualdades? Sim, há. Várias. Todas dependem de mudanças nas legislações do trabalho, da previdência social e de mudanças culturais profundas. Porque a aporofobia está enraizada em nossa população, até mesmo nas mentes da população mais pobre. Sair da pobreza não significa que terão ações de auxílio aos parentes pobres. E aqueles quem colocamos no Congresso não parecem estar dispostos a lutar por essas mudanças.

Mesmo o crescimento econômico de uma nação não é remédio para a diminuição das desigualdades sociais. Com os programas de crescimento econômico e diminuição do desemprego devem seguir os programas de distribuição de renda. No Brasil, programas como o Bolsa Família são pífios. O gasto com a distribuição de renda no Brasil ainda é muito menor que os gastos dos países desenvolvidos. A França, por exemplo, gasta quase dois porcento do PIB com distribuição de renda. Outros investimentos sociais em Saúde e Educação são os principais remédios para a diminuição da pobreza, o resto é placebo.

Além de pobre, envelheceu? Que horror.

Só não temos mais velhos pobres porque eles morrem antes que os velhos ricos.

 

"Envelhecemos para fazermos coisas que nunca fizemos,

é também isso que significa a velhice".

(Valter Hugo Mãe - @valterhugomae)

 

 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

O IDADISMO NOSSO DE CADA DIA

 

“A idade é uma das primeiras coisas que percebemos nas outras pessoas. O idadismo surge quando a idade é usada para categorizar e dividir as pessoas de maneira a causar prejuízos, desvantagens e injustiças, e para arruinar a solidariedade entre as gerações.”[1] Anoto aqui alguns exemplos que vi ou vivi.

Sou uma pessoa de setenta anos e estive no Centro de Referência da Pessoa Idosa (CRI) de minha cidade para tirar uma carteira que me permite passar nas roletas dos ônibus sem pagar. Setenta pessoas idosas compunham a enorme fila. Pessoas de vários bairros da cidade e de várias categorias sociais. Dois exemplos de idadismo simultâneos: uma atendente perdia a paciência ao atender as pessoas de raciocínio mais lento; outra tratava-as como se fossem crianças e se autovangloriava de sua postura. Fechei a cara para as duas. Muitas pessoas, mesmo as do serviço público de atendimento às pessoas idosas, não sabem como lidar com elas, conosco.

Os bailes populares de carnaval são famosos em minha cidade. No domingo de carnaval temos o Bloco dos Sujos, onde cada um sai com a fantasia que lhe apetece. Ano passado usei uma fantasia de indiano. Divertia-me solitariamente acompanhando a banda pelas ruas da cidade quando fui abordado por um jovem que me interrogou: você não está muito velho para isso, não? Dei uma resposta malcriada à altura da pergunta idiota.

Em uma casa de repouso para pessoas idosas de uma cidade da qual não me lembro no momento, um grupo de moradores, de ambos os sexos, resolveu realizar uma festa diferente a noite, longe dos olhares dos cuidadores. Promoveram uma festa sexual, totalmente consensual. Pegos no pulo, suas famílias foram convidadas a transferi-los, separadamente, para outras casas. Afinal, pessoas idosas não praticam sexo, nem qualquer outro tipo de ato libidinoso.

O idadismo não é um desrespeito somente às pessoas idosas. É comum aos jovens também. Algo do tipo: você está muito jovem para isso. A menos nos casos onde a idade seja uma barreira importante, como algumas coisas proibidas para menores para protegê-los, em geral “você está muito jovem” ou “muito velho para isso” revela um enorme preconceito e uma afronta ao livre arbítrio de cada um.

O idadismo pode se revelar também por uma autocrítica exagerada e sem fundamento. Quando pensamos de nós mesmos que estamos velhos demais para fazer isso ou aquilo, geralmente estamos sendo preconceituosos conosco.

Gosto de dançar. É muito comum convidar alguém e ouvir a terrível frase: estou velho para isso. E a dança é tão útil para as pessoas idosas! Um dos exercícios considerados importantes para a saúde cerebral é exatamente o que produz movimentos diferentes de sua rotina cinestésica. Quer coisa melhor que a dança para executar movimentos diferentes? Em lugar do tradicional dois para lá, dois para cá, que tal circular e rebolar bastante? O que melhor que o rock’n roll, dança de nossa geração, para esta fuga da rotina cinestésica?

O idadismo, no entanto, é estudado no mundo inteiro, com pesquisas universitárias, inclusive, para podermos combatê-lo. Conhecer para combater. Só conhecendo o inimigo para melhor lutar contra. Porque o idadismo deprime, corrói as vontades, destrói o livre-arbítrio invadindo as mentes das pessoas. Não pode ser naturalizado. Nenhum tipo de preconceito pode ser naturalizado, ou banalizado. A naturalização conduz às tragédias humanitárias, como as produzidas pelo fascismo, pelo racismo e tantos outros ismos.

Durante a pandemia, principalmente em seu início, quando a maioria dos falecidos por covid-19 eras pessoas idosas, o idadismo aflorou no Brasil e, creio, em outros países também. Quantas vezes ouvi, muitas delas de jovens próximos a mim, que não havia problemas, pois eram os mais velhos os que morriam. Total falta de empatia. Mais que isso, as pessoas idosas estampam nos mais jovens o medo da morte. Uma pessoa idosa nos lembra de nossa finitude e vulnerabilidade. O que nos coloca, muitas vezes, em posição de negação. Negamos, e escondemos, aquilo que somos ou que podemos ser[2].

Os exemplos são muitos, mas, o que fazer para este duro combate ser bem-sucedido? O Relatório Mundial do Idadismo aponta três estratégias possíveis e importantes que devem ser aplicadas em conjunto.

1 – Elaboração de políticas e promulgação de leis que combatam o idadismo.

As políticas incentivam o combate assegurando o respeito à dignidade de todas as pessoas independentemente da idade e de leis de direitos humanos. Já as leis abordam e punem a discriminação com base na idade e na desigualdade.

2 - Intervenções educacionais incluem instruções que transmitem informações, conhecimentos e habilidades.

As intervenções educacionais introduzem atividades que melhorem a empatia por meio da encenação, da simulação e da realidade virtual. As pesquisas revelam que as intervenções educacionais estão entre as estratégias mais eficazes para reduzir o idadismo dirigido às pessoas idosas. As intervenções educacionais têm um papel central a desempenhar em qualquer esforço para reduzir o idadismo. E as pesquisas sobre como essas intervenções reduzam o idadismo relacionado a pessoas jovens continua em aberto.

3 – Intervenções de contato intergeracional que buscam o contato entre pessoas de gerações diferentes.

Segundo as pesquisas, o contato entre as gerações e as intervenções educacionais estão entre as mais eficientes para reduzir o idadismo direcionado às pessoas idosas, e são promissoras para reduzir o idadismo contra as pessoas mais jovens.

Essas intervenções devem ser colocadas em prática conjuntamente para serem bem sucedidas. Reduzir o idadismo é fundamental para uma convivência harmoniosa entre as gerações, com cada uma oferecendo e aproveitando o que há de melhor na vida: a troca de conhecimentos e saberes e uma vida saudável física e mental.

O Relatório Mundial sobre o Idadismo pode ser baixado clicando no link a seguir: https://iris.paho.org/handle/10665.2/55872. Ele está disponível para leitura, uso e compartilhamentos. Dê o primeiro passo para combater o idadismo. Apresente e estude o Relatório junto com pessoas de todas as idades. Será uma atividade de interatividade intergeracional bem interessante.



[1] Primeira frase do Relatório Mundial Sobre o Idadismo, publicado pela Organização Pan-Americana da Saúde, em 2022.

 

[2] Vale a pena ler o pequeno texto de Sigmund Freud, com esse título: A Negação. Pode ser encontrado em formato PDF na Internet.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

APOSENTADO, COM A CHAMA AINDA ACESA

 

Quando decidi me aposentar, tracei uma estratégia para isso. Comecei a aceitar serviços de consultoria para outras empresas, em assuntos sobre os quais eu desenvolvera competência e aos quais me dedicaria após a aposentadoria. Pensei com meus botões: quando o trabalho começar a atrapalhar a consultoria, é hora de me distanciar dele. E assim aconteceu: o trabalho extra deixou de ser apenas um trabalho extra, dediquei-me apenas a ele.

Com isso minha aposentadoria não foi nenhum trauma. Foi apenas uma mudança saudável. Acontece que a consultoria terminou um dia, alguém começou a fazer meu serviço mais barato. Sem problemas, afirmei a mim mesmo. Eu já me dedicava a outro labor. Havia decidido me dedicar à escrita. Já tinha mais de um livro pronto, publiquei-os. Veio a pandemia e escrevi mais ainda. Só que o mercado de livros não é para amadores. Aprendi isso na carne. Todos gostavam do meu texto, mas não compravam meus livros. Sem problemas, voltei a afirmar. Tenho que aprender. Escrevi mais e mais, reescrevi mais ainda. Burilei, aperfeiçoei, aprendi com alguns mestres da escrita, penso estar pronto. Minha chama me diz: não desista.

Dois anos depois voltei a meu antigo local de trabalho: um centro de formação de técnicos e tecnólogos, engenheiros, editores, professores, etc. Passeei pelos corredores, parei na biblioteca, tomei um demorado café na cantina. Avistei inúmeros ex-colegas. Quase ninguém se lembrou de mim. Um dos que se lembrou, perguntou-me: está sumido, por onde anda. Ele não sabia que eu havia me aposentado. Lição do dia — todos somos substituíveis. Em nosso lugar há alguém que pode até ser melhor que nós. Precisamos estar preparados para isso.

Outra lição: trabalhamos para servir aos outros, não porque somos necessários. Somos úteis, não necessários. Tudo que fizemos, o nosso trabalho, fica apenas para nós mesmos. Fica para nossa história, não para as histórias alheias. Devemos fazê-lo bem feito para podermos contar boas histórias, nossas histórias. Se, por acaso, aparecemos em histórias alheias, ótimo. O que conta, no entanto, é nossa alegria com o nosso trabalho bem feito. Ponto.

Estar aposentado, não significa estar acabado, quase morto, sem eira, nem beira, nem mesmo a caminho do cemitério. Deste local, embora ele esteja lá no fim da luz, quero distância. Antes, eu visitava muitos cemitérios. Quando comecei a imaginar que um dia estaria ali, desapareci do lugar. Vou a velórios, não a enterros. Quando meu dia chegar, irei contrariado.

A chama ainda está acesa. Curto meus afetos, escrevo meus diários, dou palestras e conselhos aos amigos, artigos meus são publicados. Escrevia poesia para as amadas. Continuo fazendo isso, a amada está aqui ao lado, mas escrevo também para pessoas idosas como eu. Escrevo a elas com a intenção de dizer que somos pessoas idosas, não velhas. Acredite e viva. Com vontade e força.

Para manter a chama acesa e continuar a ser útil de alguma maneira, coloco foco em meus propósitos traçados e guardados em papel. Sim, gravei na nuvem, mas sou do tempo do papel. Preciso levantar e lê-los com as mãos, além dos olhos. E lá está escrito minhas palavras mágicas: contar, escrever, publicar e vender minhas histórias, disseminar meus conhecimentos e saberes, porque tudo isso poderá ser útil para alguém. Quem? Para alguém que poderá crescer com meus conhecimentos e saberes, mesmo sem me acrescentar nas referências. Enquanto isso, eu continuarei a contar minhas histórias.

Um viva aos aposentados, hoje, dia dos aposentados, vinte e quatro de janeiro.

Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)

 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O HOMEM DE TCHEKOV

  

“Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão de dólares, volta para casa e se suicida” (Anton Tchekov)

O cara se chamava Charles de Gaulle, o mesmo nome de um conhecido estadista francês, herói da Segunda Guerra Mundial. Seu pai, um professor de história fanático pela biografia do dito cujo, pensou que, assim, dava uma chance a seu filho de se empolgar pela história de seu homônimo e realizar grandes feitos na vida.

Ledo engano. O Charles de Gaulle da história francesa liderou a resistência contra os nazistas e se tornou o líder da reconstrução do país logo após a guerra. Foi presidente do governo provisório do pós-guerra, quando liderou a redação da nova constituição da república, foi primeiro-ministro e presidente da república eleito em dois mandatos.

No entanto, teve contra ele o fato de ser o presidente da república no famoso movimento de maio de sessenta e oito, promovido pela juventude francesa, que protagonizou a maior mudança de costumes no mundo ocidental. Esse movimento trouxe a popularização do indigo blues e do rock’n roll. Foi um movimento tão forte na França que brigou o presidente Charles de Gaulle a renunciar ao mandato devido a sua posição contra os jovens ávidos por mudanças na sociedade.

Pois o nosso Charles estava do lado dos jovens “rebeldes”, para desgosto total da família, que tinham adoração pelo presidente. Sua foto empunhando um enorme cartaz contra a república saiu na primeira página do Le Monde e do Libération, com a chamada de reportagem que se perpetuou como se fosse uma enorme gozação: um De Gaulle contre l’autre (um De Gaulle contra o outro).

A vida de nosso herói marginal se tornou um inferno depois disso. Foi promovido a herói pelos seus pares, os jovens da Place de la République, e a um símbolo anti-herói pelos velhos da família e pelos fiéis à República Francesa. Não é que o nosso Charles, o nosso Charlito, detestava as duas posições? Repudiado pelo forças estabelecidas, teve algumas passagens pela prisão para se explicar. Recusou também a posição de herói e liderança dos jovens por não ter o mesmo posicionamento ideológico daqueles que protestavam. Afinal, ele explicava a sua presença nas passeatas e manifestações apenas como repúdio a seu nome. Seu protesto era contra seu pai que o nomeara Charles De Gaulle, nome do famoso herói presidente do país.

Isso o livrou de um processo judicial, mas não o livrou da chacota geral, que agora era nacional. Os mesmos jornais que o elegeram símbolo do movimento de maio de sessenta e oito, agora o ridicularizavam. Ele queria se esconder do mundo. Procurava um buraco onde enfiar a cabeça, como um avestruz. Não encontrou um que lhe fosse conveniente, então foi trabalhar em um cassino em Monte Carlo, como ajudante geral, da cozinha, da faxina, das reformas gerais nos prédios. Tinha seus momentos de sossego até alguém descobrir que seu sobrenome era De Gaulle. E o inferno, seu inferno particular, se incendiava novamente.

Monte Carlo é uma cidade de Mônaco, um principado independente situado no sul da França, próximo à fronteira com a Itália. É uma cidade voltada para o turismo, devido a seu encanto, seus cassinos, e a famosa corrida de Fórmula Um. Um verdadeiro paraíso fiscal para milionários do mundo inteiro. Foi lá que o nosso Charles de Gaulle foi parar. Tornou-se um anônimo funcionário em meio aos turistas ricos do mundo inteiro, alguns famosos. A maioria de seus novos amigos funcionários eram estrangeiros, muitos deles portugueses. Ali conheceu Carlos Silva, e se tornou seu melhor amigo, exatamente por terem o mesmo prenome. Minorou um pouco sua ojeriza pelo nome e pensava sempre em trocar sua identidade.

Por vezes a sorte aparece para alguns. Encontrou uma ficha perdida durante suas faxinas e resolveu tentar. Chegou timidamente à mesa de jogo, colocou a ficha no quatro-vermelho. Não custava nada verificar se o inferno ainda estava quente para ele. O vento soprou no inferno e veio a brisa: quatro-vermelho. A bolada estava alta, um milhão de dólares.

Charles de Gaulle voltou para casa, vestiu seu melhor terno e pôs fogo no apartamento. Quando os bombeiros chegaram, já era tarde. Encontraram um corpo carbonizado com os documentos protegidos. Os jornais noticiaram, em tom jocoso, a segunda morte de Charles de Gaulle. A família ficou consternada. Seu pai arrependido de ter dado aquele nome a seu filho, não pode nem ver o rosto do mesmo, tão desfigurado estava.

Um tempo se passou e as pessoas se esqueceram do episódio. Ninguém mais falava do assunto, que rendera apenas um tempo, três dias no máximo. Afinal, não era notícia que mudaria a vida das pessoas no mundo, nem mesmo de sua família. Charles estava alienado dos parentes havia algum tempo.

Poucos meses depois desse evento, em um navio saindo de Lisboa e vindo para o Rio de Janeiro, embarcaram dois amigos portugueses: um nascido em Espinho, cidade ao lado de Porto, de nome Carlos da Silva; outro nascido em Nice, cidade do sul da França e vizinha a Monte Carlo, de nome Carlos Santos. Ter nascido e vivido em Nice justiçava seu forte acento francês. Afinal, um milhão de portugueses vivem na França, para onde iam em busca de melhores condições de trabalho. Os dois amigos se instalaram no Rio de Janeiro e inauguraram mais um restaurante português na cidade, onde ainda vivem com suas novas famílias. O nome Charles De Gaulle continua sendo lembrado no mundo, mas apenas por ser herói da resistência francesa ao nazismo e presidente da França.


domingo, 22 de janeiro de 2023

SEGURANÇA OU AVENTURA, VOVÔ

Uma boa e capciosa pergunta, essa! Segurança e aventura não são, necessariamente, antagônicas. Imagino, no entanto, que quando a pergunta foi formulada à minha pessoa, meu entrevistador deve ter considerado a minha idade. Sou um senhor de setenta anos e já vivi muitas aventuras na vida, além daquele usual chavão que nos diz que a vida é uma aventura. “Viver é muito perigoso”, dizia Riobaldo, personagem do livro Grande Sertão: Veredas, do mestre João Guimarães Rosa.

Em minhas sete décadas de vida, realmente vivi muitas aventuras. Minha própria vida pode ser enquadrada na categoria de vida aventurosa. Nasci em uma cidade do Vale do Aço em Minas Gerais, passei os primeiros anos nômade à beira da estrada, cresci tendo uma floresta como quintal de casa, morei na periferia de uma cidade da periferia da capital mineira e consegui fazer uma faculdade. Mais que isso, defendi uma tese de doutorado na França, em uma Faculdade de Letras, mesmo sendo graduado em Física, justamente na mesa e na sala de trabalho do filósofo Gaston Bachelard. É ou não uma vida de aventuras?

Além dessas aventuras pela sobrevivência, realizei outras, consideradas pelos amigos como mais cheias de adrenalina: joguei futebol de campo e de salão durante mais de quarenta anos: escalei montanhas em minha montanhosa cidade, e também na Serra do Cipó e no Chile; caminhei longas distâncias durante vários dias dormindo pelo caminho; pedalei mais de quatrocentos quilômetros em uma semana mais de uma vez; nadei em mar bravio; fui professor durante quarenta e três anos; namorei muito; casei três vezes.

Imagino que a pergunta foi formulada com uma intenção: — “Será que aos setenta anos você levará uma vida mais sossegada, com menos riscos?” — Não sei o que seria uma vida sossegada. Se for ficar parado na frente da TV, digo que não. Se for encerrar o prazer de uma vida em boa companhia, também digo que não. Se for parar de caminhar e pedalar, com ou sem destino, a resposta também é não. Se for parar de apreciar as belas-artes das pessoas capazes de produzi-las, também digo que não. Se for levar uma vida sem a alegria e bom humor, sem a eterna busca da felicidade, claro que ouvirá um não bem grande e alto.

Evidentemente, aos setenta anos, as aventuras precisam ser planejadas com segurança. Aventurar-me não é mergulhar de cabeça sem antes verificar a profundidade da piscina. Nem é mais viajar sem saber o destino. Não dá mais para dormir no banco da praça, como já fiz várias vezes, ou no cemitério, como fiz uma vez. Não é pedir carona na estrada com uma mochila nas costas, como na juventude. Mas ainda posso me dar o prazer de subir algumas montanhas, de caminhar boas distâncias, de pedalar bons caminhos, de pegar um ônibus à noite para tomar um banho de mar pela manhã. Segurança não é viver na bolha, é ter um mínimo de planejamento das aventuras a seguir. Principalmente por a aventura ser também um alongamento de meu sobrenome.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

DUAS MUSAS

Eu a conheci aos vinte e dois anos. Recém graduado na Universidade, comecei a lecionar em um colégio tradicional da capital mineira. Ela era bela, grande, com mãos grandes e um sorriso encantador. Um charme em pessoa.

Haviam dois problemas naquele clima de sedução e intimidade pairando no ar quando estávamos próximos um do outro, a ponto de os colegas notarem. Dois nada, vários. Éramos casados, ela dez anos mais velha e com três filhos e um marido muito simpático.

Descobri cedo, cedo demais, que meu casamento fora precipitado. Esse não fora por amor, apenas por simpatia. Aquele sorriso mostrou-me isso tão logo.

Foi assim que cresceu uma amizade duradoura, uma cumplicidade perturbadora entre nossa dupla. No ar havia sempre aquele risco iminente de transformação da amizade em outro tipo de relação, mais íntima: um desafio constante.

Mudei de cidade por razões de trabalho, mas nos visitávamos mensalmente. Escrevíamos cartas. Ela jogava peteca e participava de campeonatos em vários níveis. Às vezes, eu a acompanhava. Para isso aprendi a jogar também e cheguei a ser razoavelmente bom e competitivo no esporte. Desloquei o ombro direito e me descobri ambidestro. Passei a petecar com a mão esquerda. Todo esforço para não a perder de vista.

Tive filhos, os dela cresceram, os encontros rarearam, o fluxo das cartas aumentou consideravelmente. Foi então que descobri sua sósia, quase idêntica, apenas um pouco mais velha que minha musa jogadora de peteca e professora. No cinema, para ser exato. Entrei na sala de cinema para assistir a um faroeste, cinegrafia obrigatória dos jovens de minha idade, àquela época. A semelhança entre as duas fez meu coração disparar. Até o sorriso era o mesmo.

Não troquei de pessoa, acrescentei-a em meus sonhos. Aprendi com Yoko Ono que “se precisar de um quarto, arrume outra pessoa, em vez de outro quarto”. Pessoas a gente guarda dentro, quartos não.

Guardei as duas comigo. Com a primeira eu encontrava sempre que podia. Com a segunda os encontros eram mais raros, pois só podia ser no cinema, na sala escura, onde eu absorvia suas falas, memorizava seus movimentos e saia com lágrimas nos olhos ao final do filme. Essa também era casada, mas eu não me importava com seus casamentos sucessivos.

Com a primeira trocava cartas, jogava peteca, compartilhava sorrisos e abraços e longas conversas ao nos encontrarmos. Por telefone também. Com a segunda os filmes foram rareando, ela deixou de aparecer nos cinemas, as salas foram fechando, envelhecemos.

A primeira desapareceu de minha vida. Aliás, desapareceu da face da Terra. Suas cartas deixaram de ser escritas exatamente quando me faziam muito bem, pois eu residia fora do Brasil. Procurei-a, em meu retorno, e descobri seu falecimento, silencioso, “antes do combinado” como sempre diz Rolando Boldrim quando fala de alguém falecido jovem.

A segunda ainda vive. Hoje, só consigo vê-la no YouTube. Não há nenhum filme dela na Netflix, infelizmente.

O tempo passou, meus dois amores do passado, grandes amores, são apenas belas lembranças. Não tenho comigo nenhuma foto da primeira. Lembro-me dela, nas imagens da segunda. Assim posso imaginar como ela seria se viva ainda estivesse. Ao envelhecermos, pelo menos ficamos com as memórias, mesmo que brigando com elas para não desaparecerem. 


A VIDA IDEAL DE UM ESCRIBA


Certa vez ouvi de uma amiga querida, lá nos anos oitenta do século passado, exatos quarenta anos atrás, que “o ideal é sempre o real”. Traduzindo para um português menos filosófico, o ideal é aquilo que está nos limites de nossas possibilidades de realizações. Ela se referia a seu interesse em ter um relacionamento amoroso comigo e na minha impossibilidade de atendê-la.

Hoje, diante da interrogação de um amigo, desbravador quixoteano das (im) possibilidades literárias e artísticas, com os pés no pedal de sua Rocinante de fibras de carbono (ou seria ainda alumínio?), sou convidado a ressignificar a frase de minha amiga ao tentar respondê-lo: qual a vida ideal desse escriba que vos rabisca essas mal traçadas linhas?

Se há, qual o limite entre o ideal e o real? Poderia me recorrer aos filósofos, há os que afirmam a inexistência da realidade, sendo ela uma ilusão de nosso pensamento; ou a alguns místicos que afirmam ser a própria realidade uma construção de nosso pensamento. Basta a gente pensar que ela se cria?

Eu, na minha condição de leitor do mundo e usuário da vida ofertada pelo Planeta Água, creio que a realidade, concreta ou abstrata, é aquilo que carrego comigo na fronteira entre os fatos e a imaginação. Como esta fronteira é fluida, às vezes posso empurrá-la um pouco mais para o plano da imaginação. Para que os outros acreditem ou, pelo menos, sonhem, escrevo o que leio do mundo, tanto o possível quanto o imaginado. Doso bem a mistura dos dois para aumentar a credibilidade das narrativas imaginadas, ou colocar os fatos acontecidos no plano do imaginário.

Então, o que é ideal para esse escriba? O escriba gosta de xeretar a vida alheia, sutilmente, e espiritualmente para não ser pego em flagrante, para romanceá-la e parecer até ao próprio xeretado que sua vida é maravilhosa, mesmo sem ser. Entenderam onde fica a fronteira? Por que ela pode transitar entre mais para lá e mais para cá? Por isso sou poeta. Porque escrevo em cima desta fronteira. O ideal é estar me equilibrando nesta linha que se serpenteia mais que jararaca em movimento, entre o causo e a história, entre o fato e o imaginário, entre o que é e o que poderia ser, entre o que vejo e o que eu narro. Podem, por isso, me chamar de poeta.

PODEM ME CHAMAR DE POETA

   Quando alguém quiser me xingar
pode me chamar de poeta:
ou vagabundo, ou idiota letrado
ou mercador de prosopopeias
ou batráquio de palavras
ou empacotador de metáforas
ou escritor de frases sem nexo nem plexo
ou amante de divas da verborreia
ou sonhador de inconveniências
ou filósofo de adegas envinagradas
ou escrutinador de pleitos impossíveis.
Tanto faz
dá tudo no mesmo.
Mas o que sou de fato?
Criador de calangos
colecionador virtual de assobios de pássaros livres
observador das fendas do cotidiano.
Preguiçoso nato.
Trabalho apenas para manutenção do ócio.


SAMANTHA

Samantha chegou bem pequena à minha casa e teve, a partir daí, os meus cuidados: casa, cama quente e comida diariamente. Bem alimentada e cuidada, ela agradecia, com seu humor, de várias maneiras. Sempre brincando e se divertindo, saia correndo atrás de uma bola ou outra coisa que lhe chamava a atenção. Curiosidade imensa.

O que as pessoas mais admiravam em Samantha era o carinho comigo. Carinho e ciúmes. À noite eu me sentava no sofá para assistir os jornais televisivos e ela sempre arrumava um jeito de se colocar próxima a mim. Mas, se alguém se sentasse a meu lado, era o bicho. Lentamente, ela arrumava um jeito de se colocar entre mim e a outra pessoa. Pousava a mão em minha perna, talvez para deixar bem claro que ela era a minha dona. Se a pessoa insistia, ela demonstrava a sua possessividade com um pouco mais de clareza, ou de violência. Ela batia, arranhava, mordia, até a pessoa mudar de lugar.

O apartamento de primeiro andar, ou rez de chaussée, como se diz em francês, tinha um gramado em sua frente, que eu mantinha sempre cuidado e florido na primavera. Eu havia plantado tulipas e parece que elas adivinhavam o dia exato de chegada da primavera. Aos vinte e dois dias de março elas apontavam do chão e alguns dias depois as flores já coloriam o gramado. Parecia cronometrado. As tulipas não perdiam um dia sequer de primavera.

Samantha adorava essa época do ano: primavera e verão eram suas estações preferidas. As portas do jardim ficavam abertas e ela sempre saía. E no andar de cima morava Petrus, mais ou menos da mesma idade. Os dois ficavam se enamorando, Samantha em baixo e Petrus no alpendre do andar de cima.

Um belo dia Petrus não se conteve. Saltou. Putz, que susto! Felizmente ele não teve nada. Saltou como um gato daquela altura de três metros. Lá no jardim eles ficaram brincando até começar a escurecer quando a moradora do andar de cima chegou do trabalho e, dando falta de Petrus, veio bater à minha porta:

– Est’ce que Petrus est lá?

– Oui Madame, il est lá. Il est sauté de votre véranda et est em train de jouer avec Samantha au jardin.

– Quel petit malin!

A vizinha o pegou no colo, olhou bem se ele não se ferira, conversou um pouco comigo, sobre os pequenos, claro e se mandou com Petrus que nos mirava um pouco desolado.

Um dia, Samantha desapareceu. Levei-a para se vacinar e, na volta, ela soltou de minha mão e saiu correndo sobre os gramados das casas sem muro. Chamei e nada. Coloquei foto nos postes, anúncio no rádio local, telefonei para as pessoas que eu conhecia na vizinhança e nada. Nem notícia. Apareceu no dia seguinte, toda chorosa, e veio direto para meu colo, de onde não queria sair. Tive que executar os trabalhos domésticos com ela no colo.

Enfim, chegou o dia de voltar para o Brasil. E Samantha, francesa, teve que viajar comigo no avião. Documentação, medicamentos, cartão de vacinação, todo aquele trabalho que dá viajar com os pequenos de um país a outro. O voo era longo, com uma parada em Madrid e outra em São Paulo. E ela fez a festa da criançada no avião. Todos queriam ficar com Samantha, brincar com ela. Ela correspondeu bem, mas o efeito do comprimido que dei a ela a fez dormir durante quase toda a viagem. Acordou, ainda sonolenta, já em São Paulo.

Instalei-me em minha nova casa em Belo Horizonte, com um quintal interessante e Samantha ficou feliz como uma gata no tapete macio. O que a gente não contava era com o viveiro cheio de pássaros do vizinho. E Samantha adorava pássaros. Tanto que conseguiu entrar no viveiro e fez um estrago na passarinhada. E esse foi o fim de Samantha. Claro que chamei a polícia para o vizinho. Criar pássaros em cativeiro é crime. Porém, já era tarde.

Nunca me esqueci dela. Felizmente, hoje tenho o Mia Couto que parece carregar o espírito de Samantha. Também gosta de pássaros. Mas, atualmente, é proibido criar pássaros em cativeiro e, assim, fica mais difícil pegá-los. Mia Couto, no entanto, fica atento aos cantos deles nas árvores de minha nova vizinhança.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

QUE TE TENTA AOS SETENTA, VOVÔ

Chegar aos setenta já é uma vitória na vida, no Brasil. Chegar aos setenta e se sentir de bem com a vida é uma vitória de um tamanho quase imensurável. Porque a vida não é fácil para quem vem de baixo, da periferia, do lugar de luta cotidiana. Não é fácil para quem tem que domar um leão por dia, e o leão só cresce. Chegar aos setenta e ainda ter tentações, sonhos e comichões pelo corpo é uma grande alegria.

Quais são tuas tentações, meu querido setentão?

Enquanto a chama não se apagar, as tentações serão muitas, não apenas as dos infernos, mas as celestiais também. A escolha nos cabe, sempre. Cabe-me, então, a escolha entre muitas. A questão é: quais destas tentações serão realizáveis? Aquela história de escolher entre os seus sonhos, ou correr atrás dos sonhos, funciona também para os setentões? Sei que as pernas já não correm tanto, a cabeça funciona bem, no entanto.

Minha lista de tentações, a seguir, não estará em ordem de prioridades. As escrevo como me vêm à cabeça. Atenderei as tentações que me parecerem mais viáveis a cada momento de minha vida. Com direitos a mudanças, dependendo das circunstâncias que se apresentarem ao longo dos caminhos. O que vale é que, depois dos setenta, posso me dar o direito de escolha, considerando que minhas faculdades mentais estão em pleno funcionamento. O que me lembra que seguir as tentações exigirá de mim a manutenção da saúde em estabilidade, sempre, para cumprimento daquilo que cada uma delas coloque como necessidade.

Minha morena ainda é uma exuberante tentação em todos os aspectos da afetividade humana. Sua companhia é uma alegria constante e precisa ser conservada. Uma pessoa alegre em minha companhia precisa continuar a gostar de minha companhia. Este é um ponto de extrema importância. A solidão sempre ronda nossos futuros, a necessidade de espantá-la com gestos firmes é premente. Isso conduz a outra necessidade importante: o da sustentabilidade material da vida a dois. Vivemos momentos de dificuldades financeiras e nosso capital de giro tem como suporte nossas competências. Por isso precisamos trabalhar na produção de capital a partir delas.

Trabalhar a produção de capital é o ponto nevrálgico para todas as escolhas a serem feitas. Outra tentação são as viagens. Estar em lugares diferentes do mundo é muito interessante. Mas, o mundo é tão grande! Daí, a tal de sustentabilidade tão necessária. Já pensei até em estar sempre em movimento, vivendo em um grande automóvel-casa, ou mesmo pequeno, com a possibilidade de novos rumos e novos conhecimentos a cada dia.

Essas anteriores são as tentações mais caras: uma vida a dois bem empolgante e alegre, e estar em movimento. Ou melhor dizendo, uma vida a dois empolgante e itinerante. A terceira tentação diz respeito à música. Sou amante do rock’n roll, do jazz, do blues e das boas músicas brasileiras e do mundo. Impossível viver sem música. Minha companheira alegre, empolgante e afetuosa é também compositora, cantora e violonista. Mais uma qualidade dela e mais uma razão para querê-la comigo nesta caminhada. A música de qualidade, no entanto, precisa ser ouvida nos palcos dos bons teatros. Onde entra mais uma vez a questão da sustentabilidade financeira.

Algo mais que me tenta, muitíssimo, é o cinema: filmes, séries, documentários, etc. Estou sempre assistindo a alguma coisa. Hoje temos acesso a plataformas de cinema nas telas do computador, facilitando muito as possibilidades de aderir a esta tentação. Ainda bem!

As demais tentações cotidianas são mais tranquilas de se cair nelas. Porque gosto de esportes, da prática dos esportes variados. Gosto de me manter em forma por questões de saúde, óbvio, e para ter fôlego para as escolhas das tentações. No quesito esporte, pratico caminhadas, pedaladas e ginásticas de solo. Estou em forma.

Deixei por último a tentação à qual me entrego sem pestanejar: o amor aos livros, às leituras e à escrita. Adoro escrever, isso me mantém vivo e apto a cair em todas as tentações que eu queira. Porque as tentações acabam sendo um ponto de fuga, ou de repouso, em relação aos livros. E escrever livros e publicá-los me ajuda na tal de sustentabilidade financeira e social. As atividades relacionadas aos livros nos mantêm unidos, nos traz amigos para nosso convívio, nos atrai convites para estar aqui e ali falando de livros, claro. É nosso suporte a outras tentações.

Mas, caros amigos e netos, a maior tentação da vida, e mais importante delas, não sei enquadrá-la em nível de dificuldade ou facilidade, é a vontade eterna de continuar a ser criança. Não aquela criança birrenta e chata. A criança divertida, alegre, inteligente, impertinente, que olha o mundo com seu olhar de criança e o interroga. Minha tentação favorita é essa: olhar o mundo com os olhos de criança, tentar entendê-lo e colocar esse olhar em um livro. Que tentação boa.

 

O corpo dança e se lança

Absorve o brilho da magia

Que se recria

E se transforma em criança:

Todo dia.

https://poesiasparabeber.blogspot.com/

 

Paulo Cezar S. Ventura 

pcventura@gmail.com 

@paulocezarsventura

https://paulocezarsventura.com

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

O HOMEM DUPLICADO

Se José Saramago estivesse vivo, ele poderia se encontrar com um homem e seu duplicado, como imaginou em seu famoso livro. Os dois são jogadores de beisebol, têm o mesmo nome (Brady Feigl), têm a mesma idade (32 anos), e a mesma altura (1,92 m). Mais que isso, têm a mesma cara: são idênticos e até usam óculos parecidos. Fizeram o teste de DNA e deu negativo. Não são gêmeos, nem são parentes. Saramago ficaria contente?

Confiram no link que segue:

bit.ly/3CPWrFR

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

AS INSPIRAÇÕES DO VOVÔ

Tenho uma música em minha mente, desde jovem, e a canto sempre, principalmente no chuveiro. A canto também em outros momentos, sempre que ela me vem à cabeça. Que música? Em português, seu nome é Submarino Amarelo, dos Beatles. Assobio essa música caminhando, sempre que não há nada para pensar. Ou quando não quero pensar em nada. Um mantra de minhas meditações. Ultimamente ela se mistura com outras em meus pensamentos. Estou mais eclético agora, desde que tenho uma cantora, violonista e compositora em minha companhia cotidiana. Que dorme comigo e amanhece cantando. Que canta o dia inteiro. Logo, como hoje escuto mais músicas que antes, creio que meu cérebro guarda outras mais recentes e que me dão prazer em ouvir e cantar. Claro que não sou cantor. Entonação melódica, ritmo e harmonia não são características minhas. Apenas eu me escuto, por isso posso cantar como eu quiser.

Não é minha única inspiração, lógico. Além das músicas, o que mais me inspira são os filmes e séries que hoje assisto em uma plataforma de cinema. Vejo filmes em casa, em frente a tela do computador, pequena, desconfortável, embora muito mais barato que uma ida ao cinema. A telona é tentadora, claro. Mas os custos ficaram altos.

Quase sempre escrevo algo após assistir a um filme. Busco frases, olhares, cenas poéticas ou dramáticas. Se me inspiram, aparecem em um texto qualquer ou em um poema. Já escrevi poemas para minhas atrizes musas especiais, como Candice Bergen,

 

CANDICE BERGEN


Eu era amado por Clarice,
por Doralice e Berenice.
Mas amava Candice,
uma ilusão cinematográfica.
Candice quase não atua mais
e o cinema,
onde eu a encontrava furtivamente,
foi transformado em igreja evangélica.
Uma perdição.

 

Ou ainda Marília Pera, Katherine Ross, Gal Costa e Yoko Ono,

MINHAS MUSAS


Minhas musas as conheci jovens:
Katherine Ross
em "Onde os homens são mais homens";
Marília Pera
em "Anjos da Noite";
Gal Costa
cantando Flor do Cerrado
e Trem das Onze;
e muitas outras.
Quando penso em minhas antigas musas
não penso no tempo
e seu caráter depredador de nossas imagens:
musas não envelhecem em nossas memórias
que o tempo dilacera em menor velocidade.
Elas mesclam-se, em nosso pensamento,
com outras musas, mais jovens,
conhecidas durante o caminho
e por quem igualmente nos apaixonamos.
Brindemos nossas musas,
pela eternidade delas através de nosso testemunho.
Viver nelas
(como escreveu Yoko Ono)
é uma dádiva e uma necessidade.

Viver nelas é uma dádiva e uma necessidade. Porque elas inspiram. Símbolos do feminino em nossas vidas, nos inspiram a amá-las, nos inspiram ao amor. Esta inspiração que me permite amar minha mulher todos os dias. Inspiram-me a amar minhas amigas, minhas filhas e irmãs. Inspiram-me a amar o mundo.

Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com — @paulocezarsventura)

AS AVENTURAS DE VÔ VENTURA — Cumprindo ordens?

A quem servem as polícias e as forças armadas? Desde mil novecentos e sessenta e quatro que Vô Ventura faz a pergunta, quando a polícia vigiou sua casa durante meses e a família via a sombra dos capacetes através da vidraça fosca da janela da sala. A indignação com a polícia o acompanha desde então. Nunca confiou em nenhum policial, nem em seu primo, crescido com ele, que se fardou um dia. Essa coisa de cumprir ordens, quaisquer que sejam, só combina com os covardes.


AS AVENTURAS DE VÔ VENTURA — Respirador ao fim da pista

Obviamente, meu Vô Ventura, aventureiro até no nome, pratica esportes desde menino. Hoje, com a idade crescida naturalmente, abandonou, a contragosto, o futebol com os amigos. Mas não deixou de correr. Depois de uma parada obrigatória, por lesão, deu uma corrida no parque. A ideia era correr devagarinho para recondicionar o corpo. Só que ele não contava com a chuva que o pegou desprevenido. Sem ter onde se esconder, correu mais rápido. Foi necessário o uso de um respirador no fim da pista, em casa.


AS AVENTURAS DE VÔ VENTURA — Cara de pau sem verniz

Vô Ventura tem alma de pedreiro no trato com pessoas. Adora construir relações, adora uma prosa, aquela conversa desprevenida e ocasional nas esquinas da vida. E constrói sem verniz de polimento em sua cara de pau. Foi assim que conseguiu amizades eternas de pessoas de vários lugares do Brasil e fora dele. Bem que ele gostaria de viajar pelo mundo só para dar bom dia para estas pessoas de suas relações.


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

20 ANOS DO ESTATUTO DA PESSOA IDOSA

 

“Os limites que separam a vida da morte são, quando muito, sombrios e vagos. Quem poderá dizer onde uma acaba e a outra começa”?

(Edgar Alan Poe)


Neste ano de 2023 o Estatuto da Pessoa Idosa completa vinte anos de aprovação pelo Congresso Nacional e vinte anos de efetivação de políticas públicas para sua implementação na sociedade brasileira.

O artigo mais importante, em minha opinião, do Estatuto é o terceiro, pois ele define que: “é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária” (art. 3). E os vários pontos do parágrafo único desse artigo definem o que seja a “garantia de prioridade”.

Os direitos da pessoa idosa são os mesmos direitos de qualquer pessoa em um país onde os direitos do cidadão são levados a sério pelo poder público e pelos vários segmentos da própria sociedade civil. Então, por que, nós, pessoas idosas, precisamos de um estatuto para fazermos valer nossos direitos?

O texto do artigo terceiro do Estatuto nos responde, sutilmente, a questão. O grande diferencial está na expressão “com absoluta prioridade”. Se foi preciso definir com clareza que precisamos de prioridade naquilo que é “obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público”, é porque a havíamos perdido. Ou melhor, não a tínhamos.  

E por que não a tínhamos? Neste ponto esbarramos em questões culturais, sociopolíticas e educacionais. Há poucas décadas, menos de um século, as pessoas envelheciam antes dos cinquenta anos. Muitos faleciam antes disso. Aposentadoria? Coisa mais recente que imaginamos na história brasileira.

Já que nossa memória é fraca, vale a pena um lapso temporal na narrativa para uma rápida lembrança da história da Previdência Social. A aposentadoria já existia no Império brasileiro, mas era uma decisão do Estado, analisando caso a caso. Logo, era para poucos. Entre 1822 e 1933, o Império, e depois a República, instituíram sistemas de aposentadorias e pensões para algumas categorias de servidores do próprio estado. Se você não era servidor público, não tinha direitos à aposentadoria.

Apenas em 1933 tem início a constituição de Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP) por categoria profissional, inicialmente como organizações dos próprios trabalhadores e patrões. Com a Constituição de 1946 o Estado brasileiro traz para sua gestão os institutos de aposentadorias, nos moldes parecidos ao que existe hoje. Mas foi apenas com a Constituição de 1988, com a criação do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), que houve a unificação dos vários institutos de aposentadoria.

Imaginem, então. Se nem todos tinham assegurados o trabalho e a aposentadoria, como poderia ser o acolhimento à pessoa idosa no Brasil? A que serviam os velhos, principalmente os com saúde debilitada? No Brasil, apenas as comunidades indígenas e as afrodescendentes tinham uma tradição de valorização da pessoa idosa como cultura social e coletiva (redundantes os adjetivos, mas deixo-os como reforço da narrativa). A urbanização como consequência do crescimento industrial não assimilou esta tradição de atenção à pessoa idosa. Daí surgiu o que hoje chamamos de etarismo, denominação recente para o preconceito contra a pessoa idosa.

Com o Estatuto da Pessoa Idosa temos, pelo menos, uma legislação que nos garante o acolhimento e a prioridade no atendimento aos direitos do cidadão. É suficiente? Creio que não. Devemos lembrar que há vinte anos só uma minoria, entre as pessoas idosas de hoje, tinha mais de sessenta anos. Éramos senhores e senhoras, maduros apenas, ainda no exercício de nossas funcionalidades operacionais e mentais. E qual era a nossa relação com os mais velhos? Será que não temos colhido o que ajudamos a plantar?

A pergunta é uma provocação, claro. E tenho outra. O que nós, pessoas idosas, podemos e devemos fazer, não para a garantia de nossa prioridade, para isto existe a legislação, mas para a garantia da cultura de respeito às pessoas idosas e respeito à legislação? Como colocar nas mentes dos mais jovens que esta é uma questão cultural, mais que legal?

O próprio Estatuto nos acena com respostas possíveis. E elas estão nos Conselhos da Pessoa Idosa, instituídos legalmente nos poderes públicos para a garantia do acolhimento e de respeito à legislação pertinente. Esses Conselhos estão se instalando, desde então, nos municípios, estados e nacionalmente. Cabe a nós a cobrança do uso adequado dos recursos alocados e, principalmente, a cobrança de uma interação respeitosa pelos agentes públicos. Somos pessoas idosas, não crianças velhas. E temos história. Como temos!

Celebremos, certamente, e com muita alegria, os vinte anos do Estatuto da Pessoa Idosa.

 

Dádiva de envelhecer é perder a noção do tempo.
Perde-se a medida do tempo, ganha-se o tempo:
Inteiro.

(Paulo Cezar S. Ventura — @paulocezarsventura)

 

 

domingo, 8 de janeiro de 2023

AS AVENTURAS DE VÔ VENTURA — Travessia nas montanhas

Nos anos mil novecentos e oitenta Vô Ventura morou em uma cidade do interior de São Paulo, plana, sem montanhas como as mineiras. Ele sobreviveu porque levou consigo o Clube da Esquina. Disse a um vizinho que escalava e esse o levou a algum lugar fora da cidade onde havia uma falésia de uns duzentos metros de altura. Escalou-a na unha e no alto começou a cantar Travessia, de Milton Nascimento. 

AS AVENTURAS DE VÔ VENTURA — O Pavio Curto do Vô

Pavios curtos o Vô Ventura não tem, mas também não é uma mosca-morta. Quando a indignação sobe à cabeça ele desce o braço. Indignado, ele já quebrou uma tetra-chave. Já tentou quebrar uma tetra-chave? Foi por uma indignação dessas que ele encarou e meteu a mão na cara de um sujeito duas vezes maior que ele. Claro, o sujeito assediava uma garota que, por isso, chorava. O Vô vinha do supermercado e jogou o embrulho de farinha que acabara de comprar na cara do sujeito. Ele ficou meio cego e o Vô, cego de raiva, desferiu uma série de porradas na cara do indivíduo enquanto a menina corria para casa. Tornou-se meu herói.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

PODE MELHORAR, VOVÔ

Pode? Será? Sempre temos uma esperança de que as coisas serão melhores no ano no qual entramos. Basta entrar com o pé direito como se fôssemos tomar um ônibus? Tem algo no horizonte que nos informa que coisas boas acontecerão? A humanidade tem sede de esperança. Essa mania de apostar no futuro é complicada. Apostamos no amanhã, mas como vivemos o hoje? Que estamos a fazer nesse minuto mesmo?

Minha retrospectiva do ano passado, dois mil e vinte e dois, não é nem maravilhosa, nem horrorosa. Duas contaminações pelo coronavírus, uma pneumonia, uma mudança de endereço cheia de despesas, uma desavença de família pelos cuidados de minha mãe, nenhuma viagem de lazer. Por outro lado, recebi a visita de minha filha alemã, lancei um livro que ainda é uma promessa de sucesso, comecei a participar de um grupo de vendas que avança, conheci novas pessoas interessantes, escrevi bastante, reencontrei antigos colegas que ainda residem na mesma cidade para onde me mudei, aprendi muito, entre outras coisas menores.

O que esperar, então, do novo ano que se inicia? Dá para colocar muita fé quando a idade começa a pesar? Em fevereiro completo setenta anos. Sete décadas, cara! Sete! Tenho alguns pontos a meu favor. Cartas na manga. As rugas crescem lentamente, ainda. Os indicadores de saúde, aqueles resultados dos exames sopa de letrinhas, estão muito bem. Ainda aguento caminhadas longas, faço ginástica de solo, danço de vez em quando e sou sexualmente ativo. Não posso me debruçar em queixas. Logo, não as faço. Acredito que pensar em coisas boas abre espaço para que elas aconteçam. E elas acontecem.

Então, seguem pontos de minhas perspectivas para dois mil e vinte e três:

·  Apesar dos setenta anos, estarei muito bem, ocasionalmente em bons momentos de felicidade. Bom humor sempre, como de hábito.

·    Deverei lançar ao menos mais três livros, eles já estão quase prontos.

·   Minha vida amorosa continuará muito bem. Meus amigos continuarão presentes em minha vida.

·     Apesar de pessoa idosa, continuarei trabalhando com boa vontade, alegria e prazer. Tenho propostas de palestras em alguns lugares, meus livros venderão bem, minhas histórias serão contadas e ouvidas. E continuarei produzindo novas histórias.

·     Meus clientes para mentoria e curadoria de saberes e conhecimentos aumentarão no ano, pois minha experiência nas questões que abordo aumentaram.

·  Minhas artroses nas juntas do corpo não irão aumentar. Consegui um bom equilíbrio no trato delas com ginástica e alimentação adequada.

·    Minha família não me provocará sobressaltos em demasia.

·   Continuarei degustando bons vinhos com alguns amigos especiais. Aquele uísque premiado que comprei no Natal será apreciado com parcimônia.

·   Meus filhos distantes se aproximarão de mim, finalmente (ainda guardo umas pontas de dúvida quanto a isso, mas, espero).

·    Minha conta bancária terá saldos positivos o ano todo. Lidar com dinheiro exige cuidados especiais. Vou me aprimorando neles. Ainda sou jovem para aprender sobre educação financeira.

·    Meus empreendimentos serão bem sucedidos, mais que no ano anterior. Seguir em frente, sempre. Recuar só para tomar impulso.

·    Terei tempo para algumas viagens de lazer e ócio. Meu corpo e minha mente merecem.

·    Gostaria muito de ter um carro novo. Será que é pedir muito, Iansã? Prometo usá-lo com sabedoria, pois o combustível anda muito caro.

Se eu me lembrar de mais algum desejo, vontade, ou apenas uma coceira no cérebro, aumentarei minha lista. Não quero abusar muito dos deuses, eles têm sido extremamente bondosos comigo. Minha gratidão a eles pelos cuidados à minha pessoa. Agradecerei mais ainda, e farei algumas oferendas contritas se metade de meus desejos forem satisfeitos.

 

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...