terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

AS AVENTURAS DE VÔ VENTURA — nem tudo sobe

Entre os muitos dramas que Vô Ventura vive cotidianamente (alguns são apenas para fazer pose), há um que mexe com seu humor: seu colesterol subiu e não pode mais comer carnes gordurosas. Sua desculpa para manter a felicidade em alta é que o preço da carne também subiu. Ele sorri e brinca: — e tem coisas que sobem com uma dificuldade!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

DE LÁ PRA CÁ: TRÊS MOMENTOS MUSICAIS

Momento I — Mal Necessário[1]

“Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo
O que sempre esteve vivo, mas nem sempre atento
O que nunca lhe fez falta, o que lhe atormenta e mata
Sou o certo, sou o errado, sou o que divide”.

 

Tibouchina mutabilis é o nome da planta. Na cidade onde Saulo trabalhou como funcionário público, lá nos anos noventa, ela estava presente em todos os jardins, tanto os das praças, quanto os dos quintais. Parece que cada cidadão recebia uma muda para plantar em sua casa assim que começava a construção. Mutabilis, porque suas flores, bem cheirosas, mudam de cor ao longo de suas existências, enquanto flores.

Conhecidas como manacás, essas plantas demoram alguns anos para crescer e florir. Combinavam com a cidade. Povo conservador, cheio de tradições centenárias, ainda usavam uma particular comunicação de serviços públicos através dos sinos, comum em cidades antigas do interior mineiro.

Para Saulo, o perfume dos manacás se tornou símbolo da mesmice, da pasmaceira e das relações entre as pessoas da cidade. Na verdade, era ele que não estava muito à vontade. Parecia não caber no lugar. Chegou sozinho na cidade, logo após uma doída separação da mulher e dos filhos. Talvez por isso, transformou-se na atração do mulherio solteiro, que via nele um bom partido.

Mesmo o assédio era um símbolo da violência enrustida na cidade. Pois com o assédio, as mulheres sofridas pelo paternalismo exagerado e proprietário, viam nos forasteiros uma chance de fuga, da cidade e daquela vida.

Plantígrado que é, Saulo caminhava pelas ruas, de antigas casas, iluminadas com luzes de lampiões, um belo cenário nas manhãs neblinadas. O antigo grudado até na neblina, e ele era o moço que chegava e não ficava por não ser o certo, nem o errado, mas o que dividia opiniões por ser aquela metamorfose ambulante no lugar errado.

O limite de sua paciência foi ultrapassado quando a mulher do Ford Escort XR3, vermelho, novo, ano noventa e dois, o convidou do bar para a cama, e o deixou na lama das ilusões perdidas. Saulo se mandou de lá e nunca mais voltou.

“O que não tem duas partes, na verdade existe
Então esquece o que lhe fazem
Nos bares, na lama, nos lares

Na cama, na cama, na cama”.

 

 Momento II – Down em mim[2]

“Eu não sei o que o meu corpo abriga
Nestas noites quentes de verão
E nem me importa que mil raios partam
Qualquer sentido vago de razão”.

Cazuza foi um ídolo de seu tempo. Nunca foi o ídolo de Saulo, que achava suas letras e músicas deprimentes. A vantagem dele era sempre dar um tapa na cara da hipocrisia. Não era o que Saulo procurava. Tudo que ele queria era sair daquele desassossego que o importunava e deixar para trás a solidão das noites escuras.

Nessas noites seu destino era sempre sua casa, para onde seguia a pé, contando os pés de dama da noite do caminho, cujo perfume o deixava meio bêbado, mesmo não sendo apreciador de bebidas alcoólicas. Mas acordava sempre com aquele gosto de cabo de guarda-chuvas na boca, provocado, segundo ele, por ressaca daquele perfume.

Talvez tudo que se passava naquele tempo fosse apenas “pelo sentido vago de razão”, comum nos grandes momentos de transformação. Acontece com todo mundo. É o tempo do Cazuza, ou melhor, do casulo, que poderia se desabrochar nas chuvas de verão que se seguiriam. Um banho de chuva no calor da tarde poderia trazer de volta a verve sedutora e inquieta desse personagem, mesmo com o perfume de dama da noite nos caminhos de volta para qualquer lugar que fosse. O lugar não importa, Saulo o sabia. O que sempre importa é o preenchimento da alma vazia.

Momento III – Águas de março[3]

“É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração”.

 

Veio o verão. E o banho de chuva em uma tarde quente. Desses de lavar a alma de dentro e o corpo de fora, externando aquela vontade de fazer acontecer. Saulo pôs o pé na estrada e partiu pelo mundo. Conheceu Europa, França e Bahia. E a América, a Latina e a da latrina do mundo, tecnológica e fantasiosa. Todas as combinações são possíveis.

Durante as águas de março as damas da noite ainda estão presentes, no entanto, não perturbam. Sua essência na alma de Saulo é substituída pelos pés de goiaba, pela calma da beira de rio, antes e depois das enchentes, e pelos pássaros bicando goiabas maduras nas árvores. Mesmo o céu avermelhado das tardes depois das chuvas é alentador, é um signo de esperança, e da “promessa de vida no coração”.

Todos os momentos são passageiros, claro. Todos eles foram, e são, cantados em músicas, encenados nos teatros, contados em rodas de conversa, escritos nos romances de todas as línguas do mundo. Apesar das semelhanças dos relatos, eles são vividos diferentemente por cada um que sempre considera sua experiência única. Como alegrias nunca veem sozinhas, as águas de março trouxeram pessoas, bichos, objetos, tudo isso formando uma bolha interativa que nos faz viver plenamente. Se a bolha estoura, outras se formam. A alegria sendo a mesma, a bolha se conforma a seus habitantes. Essa bolha se chama mundo.

A transformação esperada, como sempre, veio. Com a chuva, que trás vida e desastres. A questão agora, para Saulo, era continuar com as plantas dos pés no chão, mesmo mantendo sua cabeça nas nuvens, como sempre. Caminhar até, quem sabe, um dia encontrar seu pedaço de chão, colocar uma cadeira sob o pé de manacá, que também encontraria em seu quintal, e esperar as estrelas trazendo o cheiro de damas da noite.

 

É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

 Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)



[1] Música de Mauro Kwitko, cantada por Ney Matogrosso.

[2] Dow em mim, Música de Cazuza, gravada pela banda Barão Vermelho

[3] Música composta por Antônio Carlos Jobim, lindamente interpretada por Elis Regina

domingo, 12 de fevereiro de 2023

AS AVENTURAS DE VÔ VENTURA — Um dromedário nos trópicos

Vô Ventura nunca foi ao deserto. Os lugares mais quentes aonde visitou foram algumas cidades mais ao norte e nordeste brasileiro. O calor de Palmas, cidade que visita regularmente por ali ter laços familiares, é o máximo sentido. Quando está na cidade e sai para pedalar nas estradas de pouco movimento, ele se sente como andando de dromedário no deserto, mesmo sendo a cidade, de clima tropical, muito úmida se a compararmos com as regiões saarianas, claro. Chegando em casa de sua filha, precisa logo entrar na água fria para não sucumbir sob o sol, este, sim, desértico.



segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

MINHA VIDA OFFLINE - OU PORQUE CONTO HISTÓRIAS

  

I

Casal chega à praia, senta-se sob sombra próxima das ondas, cada um interage com seu telefone celular. Não se falam, nem se olham. Meia hora depois, o homem convida a mulher para fazerem uma autoimagem (preferimos usar a palavra em inglês “self”). Uma verdadeira transformação acontece. Em frente à câmera, sorrisos, abraços e beijos em sequência de fotos.

Terminada a sessão fotográfica, um xinga o outro pela postura, pela areia do corpo que arranha a pele, pela foto não pegar o melhor ângulo do rosto (olha essa mecha de cabelo em frente meus olhos), coisas assim. Postam as fotos no Instagram e voltam à posição anterior. Passam o resto da manhã respondendo às dezenas de mensagens de seguidores:

üque casal lindo;

ü  gostaria de ter a vida de vocês; 

ü  amor assim é raro;

ü  gostaria de estar aí com vocês.

As respostas aos seguidores fãs eram pérolas da superficialidade:

ü  muito obrigado, queridos. Nossa vida é ótima mesmo. Somos belos e felizes.

Terminam a redação das respostas, reclamam do sol quente e caminham em silêncio até o carro. Ele reclama que ela trouxe areia nas sandálias. Ela reclama que ele ficou muito suado. Em casa ambos reclamam da comida e passam a tarde visitando os aplicativos de computadores e escrevendo nas redes sociais. À noite participam de uma “live” (outro anglicanismo) de um famoso “influencer” sobre como é bela a vida a dois.

 

II

Nanda conta a todos os amigos do Facebook como é a vida de cuidados que ela tem com sua mãe idosa. Ela se exibe em vídeos penteando a mãe, lendo histórias para ela e mostra como, apesar da teimosia da progenitora, ela está sempre presente e disposta.

Desliga o vídeo e xinga, em voz alta.

Mãe, você devia ser mais participativa. Custava me agradecer, online, pelo carinho que tenho e como está feliz de ter uma filha como eu? Preciso mostrar como cumpro bem feito meu papel de filha de mãe idosa e doente. Tem um mundo de gente me seguindo.

Idosa estou, doente não. Da próxima vez direi que você é muito chata. De fato, você é uma grandíssima filha-da-mãe.

Se disser isso vai para o asilo.

 

III

O filme no TikTok dançando e cantando com a filha de dez anos viralizou. Um milhão de visualizações. Vários seguidores enviavam corações vermelhos e dedos polegares para cima.

ü  sua filha é uma gracinha;

ü  como vocês cantam bem;

ü  bom demais ver vocês cantando e dançando juntas, que harmonia;

ü  tal mãe, tal filha;

ü  da próxima vez cantem para mim a música (x).

— Filha, precisava cantar com a cara tão fechada?

— Você me obriga a dançar e eu detesto. Não quero mais fazer isso.

— Vai continuar, sim. Estou quase chegando a um milhão de seguidores.

— Não quero saber. Não filmo mais.

— Vai sim. Se não quiser, mando você morar com seu pai. Sabe bem que a nova mulher dele lhe detesta.

— Prefiro alguém que me detesta a alguém que finge que me ama.

 

IV

— Conta uma história para gente, moço!

— Era uma vez um catador de realidades. Ele tinha o hábito de pesquisar a história acontecida por trás das histórias contadas e recontá-las de outra maneira.

— Como é isso: catar realidades?

— É uma pesquisa muito séria. Científica. É para descobrir a realidade offline das histórias contadas online. As boas histórias online só sobrevivem se ela não se distanciar da história offline. Ou seja, se a vida offline for ótima também, a história contada será entendida e aprendida pelas pessoas. O que é preciso é um pouco mais de verdade. E é preciso coragem para mostrar verdades.

— Como atua o catador de realidades? Como ele descobre a realidade?

— Não é simples. Ele precisa entrar na tela e ficar online também, observar a notícia de dentro. Por exemplo, o casal do causo I mostrava sorrisos amarelos que não mudavam de uma cena para outra. Sinal claro de conversa fiada, ou melhor, de sorriso fiado. E não é difícil perceber a testa franzida da mãe idosa do causo II, nem a cara fechada da menina do causo III. Mas a gente só percebe com um olhar de ave de rapina.

— Olhar de ave de rapina? Como se consegue ter esse olhar?

— Precisa prestar atenção nos detalhes. Eles estão lá para serem vistos por aqueles observadores perspicazes. Na vida online, as pessoas costumam usar máscaras. E nenhuma máscara é para sempre. Na vida offline, as máscaras só atrapalham. Deixam o suor escorrer por baixo delas. Aí mora o detalhe. O detalhe mora no interior das histórias.

— Como assim? Por isso você conta histórias?

— Conto histórias para ressignificar minhas memórias. Para fazer minha vida offline ser bem importante e significativa para mim. As histórias são como minha vida online. Elas só terão importância se forem parecidas com minha vida offline.

— E aquela história de que “quem conta um conto aumenta um ponto”?

— É verdade, a gente sempre aumenta um ponto. Mas é só para dar uma graça diferente. Esse ponto a mais só tem sentido para melhorar o passado da gente. Assim, nosso presente melhora e, consequentemente, nosso futuro também. Isso é catar realidades. É melhorar nossas vidas para transformar as vidas dos outros.

— E como ser catador de realidades?

— Simples, basta recontar as histórias que ouve. E aumentar um ponto em seu reconto.

 

 

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...