quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A ARTE DE ENVELHECER COM PRAZER

 

Cícero, o filósofo romano nascido no ano 106 A.C., nos deixou obras importantes sobre as quais devemos nos reportar em vários assuntos, sendo uma delas sobre o envelhecimento. Chegou em minhas mãos, por aqueles acasos fortuitos não negligenciáveis, seu livro Saber Envelhecer, publicado em 2007 pela editora L&PM. Nesse livro Cícero desenvolve a tese de que a arte de envelhecer é encontrar o prazer que todas as idades proporcionam.

Gostaria de revisitar a obra do filósofo trazendo, para hoje, algumas hipóteses feitas por ele e, principalmente, trazendo para minha vida vários de seus ensinamentos. Um deles é um conjunto de respostas a um questionamento daquela época e, incrível, ainda muito comum atualmente:

por que muitas pessoas pensam que a velhice é detestável? 

        1. A velhice nos afastaria da vida ativa.

“Não são nem a força, nem a agilidade física, nem a rapidez que autorizam as grandes façanhas; são outras qualidades, como a sabedoria, a clarividência, o discernimento” (Cícero). Temos grandes exemplos de pessoas idosas ativas, que nunca desistiram de seu trabalho, de deixar de lado a sua competência adquirida durante a vida. Cícero cita generais romanos que viveram ativos por muitos anos, ou políticos, os senadores e cônsules romanos. Sabemos bem, no entanto, que a vida média do cidadão romano era em torno de quarenta anos. A vida mais longa era privilégio de quem vivia na riqueza e tinha escravos para o serviço pesado. As guerras eram constantes e as tubulações de água eram feitas de chumbo, metal pesado que adoecia a maioria das pessoas.

Hoje temos vários exemplos de pessoas longevas, passando dos noventa anos e chegando aos cem com vida ativa. Faltam-lhes a força, a memória os engana, mas ainda conseguem muitos feitos. Sobretudo se amados pelas pessoas que os cercam.

O que é preciso para ter uma vida ativa? Difícil dizer, mas Niemeyer desenvolveu alguns projetos arquitetônicos com quase 100 anos. Tenho uma vizinha com 96 anos que está bem, lúcida e ainda comanda sua casa. O corpo humano é um mistério, a vida é um mistério. Não há regras, mas muitos conseguem, hoje, ter uma mais vida longa e mais ativa que antes.

       2. A velhice enfraqueceria nossos corpos.

Cícero escreveu sobre a velhice com 59/60 anos (no calendário atual) e já se considerava um velho. Ele mesmo afirma isso em seu livro “Saber Envelhecer”. Vale lembrar que teve morte trágica, sendo decapitado aos 61 anos, a mando de Marco Antônio, cuja tirania ele combatia ferozmente com seus discursos. É considerado um dos mais influentes escritores e oradores romanos, deixando um enorme legado para o latim e todas as línguas europeias surgidas posteriormente.

É evidente que ficamos mais fracos com o tempo. Sinto isso na pele. Do futebolista amador que fui até os 50 anos, treinando durante a semana e jogando aos domingos, fui sendo obrigado a mudar de esporte, praticando outros com menos exigência de vigor físico. Passei ao remo, depois às corridas de rua, hoje contento-me com caminhadas e pedaladas e exercícios de solo. Mas como disse Cícero “se tu lamentas a perda dos bíceps, não são eles o problema, mas tu mesmo”.

“É preciso servir-se daquilo que se tem e, não importa o que se faça, fazê-lo em função de seus meios” (Cícero).

Já ouvi uma frase parecida durante uma palestra em um ginásio para uma plateia de aproximadamente mil pessoas.

“Para fazer tudo que quero fazer, primeiro procuro os meios e recursos que tenho à minha volta e os adapto às minhas necessidades” (Marcos Rossi).

Só que Marcos Rossi não tem braços nem pernas. E se ele consegue fazer o que quer, por que eu não conseguiria só porque sou pessoa idosa? Sem desculpas, meu velho. Olhe em volta e siga em frente.

Cícero já nos dizia, há 2070 anos, que “o exercício físico e a temperança permitem conservar, até a velhice, um pouco da resistência de outrora”, acrescentando ainda: “mas não basta estar atento ao corpo; é preciso ainda mais ocupar-se do espírito e da alma”.

Ele também nos brinda com uma receita infalível, segundo ele, para exercitar a memória. “Aplico o método caro aos pitagóricos: toda noite, procuro me lembrar de tudo o que fiz, disse e ouvi na jornada”.

       3. A velhice nos privaria dos melhores prazeres

Este é um ponto polêmico porque, afinal de contas, o que é o prazer? Cícero considerava como prazerosa a boa conversação, à mesa, com os amigos, ao trabalho na agricultura, ao prestígio que ele mesmo possuía como orador, ao debate intelectual. Em suas considerações não incluía o amor e o sexo, e dizia que a paixão seria uma obsessão sem controle. Mas, ao mesmo tempo, “se a velhice não os aproveita da mesma maneira, ela não está totalmente privada deles”.

Ah, os prazeres! Como são cantados e contados pelo mundo afora! Como são bons! É bom ser aberto a sentir os prazeres da vida e não se envergonhar de senti-los! Quem tem prazer na vida, e pela vida, não sofre dos males ligados à tristeza. Depressão? Angústia? Ansiedades? São todos sintomas da falta de prazer.

O prazer é sempre simples e direto. Não tem meias-palavras, nem segue meias verdades. É preciso estar conectado com o presente, com a vida hoje, com as alegrias do cotidiano. No último Dia dos Pais tive o privilégio de ter, a meu lado, filhos e netos, que vieram de longe para estar comigo. Meu último grande prazer deste ano.

“Deuses gregos, romanos, africanos, brasileiros, budas, escambo mil vidas por esses momentos mágicos de convivência, amor e prazer”

(Paulo Cezar S. Ventura).

 

       4. A velhice nos aproximaria da morte

A morte, ela, é incontestável. “Mas como é lastimável o velho que, após ter vivido tanto tempo, não aprendeu a olhar a morte de cima!” Com essa frase aforística, Cícero inicia seus comentários sobre a morte e eu, e qualquer um como eu, com muito mais passado que futuro, só posso concordar, depois de alguma reflexão. Na verdade, quem está seguro, mesmo sendo jovem, que não irá encontrá-la antes do anoitecer, na volta para casa com o trânsito maluco das cidades?

“Os frutos verdes devem ser arrancados à força da árvore que os carrega; quando estão maduros, ao contrário, eles caem naturalmente” (Cícero).

Contentemo-nos, então, com o tempo que nos for dado para viver, sem nos preocuparmos com o tempo passado. Perdido ou bem vivido, ele não tem retorno. Esse tempo que nos resta é sempre suficiente para vivê-lo com sabedoria, serenidade e honra. E se conseguimos assumir os encargos das funções que nos são ofertadas na vida, viveremos bem, sem nos preocuparmos com os pensamentos e ações alheias. A serenidade só possível com uma grande preparação.

Lembro-me perfeitamente bem da serenidade alcançada por meu pai em seus últimos momentos, após meses de dor e sofrimento. Eu estava a seu lado, sabíamos, os dois, que era chegado o momento de ele partir, e sua última palavra foi meu nome, com um sorriso. Assim também quero morrer, com sorriso nos olhos, mesmo com dor.

 

Finalmente

Não há uma espécie de tratado sobre a arte de envelhecer, cada um desenha sua tela como lhe aprouver. Como toda arte, essa também requer estudo, pesquisa, solução de problemas, desenvolvimento, técnica e muito trabalho. O trabalho de uma vida inteira, que exige conhecimento e cada vez mais sabedoria. Rabugice, mau-humor, chatice, mau-caratismo existem em todas as idades, não são defeitos inerentes às pessoas idosas. As características antônimas a essas, também, precisam ser lapidadas. Portanto, a arte de envelhecer com prazer é uma sabedoria (uma técnica) desenvolvida desde a infância. Quem tem prazer na juventude tem mais chances de envelhecer com prazer. Ou algo muito forte e importante precisa acontecer em algum momento de sua vida para uma ruptura comportamental acontecer. O prazer é, portanto, uma busca com criatividade.

Pessoas criativas são aquelas que se desprenderam de preconceitos instituídos, em qualquer domínio: ciência, arte, cozinha, relacionamentos, envelhecimento!

(Paulo Cezar S. Ventura)

sábado, 19 de agosto de 2023

JOÃO AMBRÓSIO, UMA VIDA, UM DESTINO

Elisa Augusta de Andrade Farina.

Presidente da Academia de Letras de Teófilo Otoni


João Ambrósio, um nome, uma história, uma vida. Quem o conheceu, não o reconhece como aquele homem distinto, amoroso, cavaleiro, sempre disposto a celebrar a vida.

Viúvo, foi depositado pela família, como objeto inútil, num asilo "O Lar Feliz", que destoava de todo efeito que se entendia por felicidade. 

Na sua viuvez não perdeu só a mulher, perdeu também, a si mesmo. Talvez tenha perdido o próprio nome. Já não sabe quem é: o homem que julgava ser não passa, quem sabe, de um sonho, agora perdido para sempre. Um sonho sonhado por ele e pela mulher, agora não dispõe de um sonhador. Tudo o que lhe resta de vivo, está no passado. O presente não existe. Um fosso enorme separa passado do presente. O passado de alegrias, o presente de restos, sobras. O futuro de incertezas. Mesmo assim, insiste em (sobre) viver.

Escuta o companheiro de quarto e desditas que o adverte: "não seja bobo João Ambrósio, eles aqui estão esperando que não pensemos, mas se isso acontecer e deixarmos de pensar estamos enterrados. É no pensamento, com e através dele, que permanecemos vivos. Temos que resistir, para existir".

João parecia nem escutar o que seu companheiro de infortúnios lhe dizia, continuava apático, alheio a tudo.

Dia de visitas. Todos ansiosos, menos o João que continuava deitado, absorto, olhar perdido...

De repente, uma menina aproxima-se da sua cama e chama-o: "vovô João, vim contar para o senhor uma história legal que aprendi nesta semana, na Escola. O senhor quer ouvir? Lembra-se de mim? Sou a Mariana, filha da Henriqueta que trabalhou em sua casa. O senhor gostava um tanto de mim. Dava-me muita atenção, brincava comigo. Lembra das nossas brincadeiras? Uma vez me deu um cachorrinho, o Pirralho. Ele manda lembranças...

João Ambrósio abriu um sorriso e com lágrimas, abraçou a menina.

A mãe da garota se aproximou e disse: "senhor João, estamos aqui para alegrar os seus dias, o senhor foi tão bondoso para conosco, quando foi meu patrão. Não é porque foi abandonado pelos seus que será esquecido por quem só recebeu e não teve tempo de retribuir o carinho que nos dispensou. O amor não pode se separar da gratidão. Apesar das circunstâncias, a vida continua a valer a pena.

Em todos os dias de visitas, o João Ambrósio, ficava inquieto esperando a doce Mariana, que com sua alegria e inocência, mudava o rumo de sua triste existência. Estava mais animado, corado, até conseguia sorrir. A sua vida tomou outro rumo. A neta "do coração" , substituiu os netos, filhos dos seus filhos, que nunca vieram vê-lo, nem sequer seus filhos se fizeram presentes para escutá-lo e sanar as suas dificuldades.

E o tempo passava... Cada dia sobreponha as tristezas com a alegria que a pequena Mariana e sua mãe lhe proporcionavam.

Gostava de ficar pensando em todas as coisas boas que a vida lhe dera. Agora tudo tinha se esvaído, como bolhas de sabão soltas só vento. Não conseguia entender o abandono que sofrera. Isso doía tanto nele que foi abandonado...

Será que repercutiu nos filhos que o abandonaram naquele asilo triste e frio? Se isso acontecesse de fato, será um peso imensurável nas costas dos filhos por toda uma vida. Isto se tiverem sentimentos e aquilatassem o mal que lhe fizeram. Por mais que pensasse, não via justificativa sobre os motivos para o abandono definitivo e irrestrito. 

Essas reflexões consumiam a sua alma e entristecia o seu pobre e fraco coração. Não sabia até quando iria resistir... Isto não importava...

Este é o triste e avassalador cenário vivenciado pelos idosos, tratados como trastes inúteis por aqueles que devotaram o melhor de suas vidas e eles não conseguiram dar-lhes amor, por mais ínfimo que fosse...





sexta-feira, 11 de agosto de 2023

MEMÓRIAS DILUÍDAS, MEMÓRIAS RECUPERADAS



Nossa memória nos prende no tempo de hoje. Às vezes gostaríamos de ter o poder de ir à frente do relógio, ou de retroceder, nos momentos que assim o quisermos. Mas, o dia de hoje é sempre o definidor de nossas histórias. Até onde lembramos? O que lembramos se passou em que tempo e em que local?

A demência é definida como ausência ou perda constante e progressiva da memória, chegando a comprometer o pensamento, o senso ou a capacidade de se adaptar às ocasiões comuns e/ou sociais. Mais propriamente, a demência é o declínio geral e persistente das habilidades mentais, como linguagem e raciocínio, além da memória, e pode interferir nas atividades normais da pessoa e seus relacionamentos.

No entanto, fico a imaginar o envelhecimento como uma possibilidade de viajar no tempo e no espaço, o que nos permite colocar nossas imagens, memórias de vivências, quando e onde quisermos. E isso depende de como conduzimos a comunicação com nossos velhos e velhas. Tenho dois causos a narrar sobre essa versão pessoal e, talvez, intransferível.

Jordelina tem 96 anos e viveu, até o seu casamento, aos 26, em uma pequena cidade do Vale do Aço, em Minas Gerais. Menos um período de uns três anos, depois da segunda guerra mundial, quando residiu em Belo Horizonte. Ela devia ter uns vinte e poucos anos quando isso aconteceu. Hoje parece que todos os casos que ela conta aconteceram nesse período e no entorno do bairro onde ela residiu, àquela época, ou no bairro onde hoje reside, na região metropolitana de Belo Horizonte. Ou seja, sua memória recuperada indica que ela consegue viajar no tempo e no espaço, e suas histórias são remontagens de memórias, como uma colagem ou um fuxico de retalhos.

Sempre que a visito provoco-a com perguntas que lhe trazem à mente algumas imagens de sua vida, e ela as conta em uma nova narrativa, antes desconhecida. Como sua imaginação e inteligência são enormes, sempre foram, cada vez que conta um mesmo fato sai um novo roteiro. Em um desses momentos ela contou estar presente na inauguração do Edifício Acaiaca, conhecido prédio no centro de BH. E foi convidada a cortar a fita colocada à entrada do prédio.

O famoso Edifício Acaiaca foi inaugurado durante a segunda guerra, em 1943, anos antes de sua estadia na cidade em fins da década de quarenta e início dos anos cinquenta. Como o edifício é icônico e tem uma arquitetura muito típica da época, e nele havia um cinema muito visitado, não surpreende que faça parte de seu imaginário.

Outra memória de Jordelina ouvida nos últimos tempos, e que estava guardada no fundo do seu baú de lembranças, foi muito indicativa da viagem afetiva aos tempos passados. Segundo ela, esteve presente em programas da rádio Itatiaia, tendo sido convidada para cantar e fez muito sucesso, claro. E que havia um locutor na rádio que se chamava Álvaro Francisco, de quem ela gostava muito. Queria que seu primeiro filho tivesse esse nome, o que não aconteceu devido ao ciúme de seu marido, que também se chamava Francisco. O que descobri, depois de tantos anos de escuta, é que naquele tempo e naquele lugar ela viveu os momentos mais felizes de sua vida.

Quando conheci Suzana ela já estava com oitenta anos. Visitei-a acompanhado de amigos em comum e ela demonstrou simpatia à minha pessoa. As visitas continuaram, sempre acompanhado dos amigos, até que um dia a presenteei com um livro de poemas, quando ela confessou seu apreço à Poesia e que gostaria que eu aparecesse mais à sua casa para ler para ela. A partir de então passei a visitá-la só, para ouvi-la contar suas histórias e para ler poemas. Um belo dia ela me disse que teve um namorado na juventude que se parecia comigo e que também gostava de Poesia. A sua família, no entanto, não consentia o namoro e a obrigou a se casar com outro homem. Memórias afetivas, sem tempo e sem lugar definidos.

Suzana viveu mais de cem anos, mas passou os últimos dez em sua cama, depois de uma queda e outros problemas de saúde. Sua memória foi diminuindo a ponto de não se lembrar mais das próprias filhas, mas se lembrava de mim (ou do seu antigo namorado?). O fato é que quando eu me inclinava para beijá-la ela dava um jeito de beijar-me nos lábios, tipo selinho. Durante minha última visita, sua filha estava presente e, para sua enorme surpresa e indignação, Suzana disse meu nome.

— Como ela se lembrou de você se não se lembra de mais ninguém há muito tempo?

Minha hipótese, não muito forte, evidentemente, baseada nas histórias dessas duas personagens, cujos nomes reais omiti neste relato, é que elas guardam por mais tempo histórias vividas ou criadas em momentos e lugares nos quais elas foram felizes, transportando-as para momentos atemporais e lugares meta-espaciais. Lembranças e esquecimentos são estratégias de defesa da mente e do pensamento. Minha expectativa é que minha última lembrança seja aquela de um tempo e um lugar, não importa qual nem onde, mas de grande felicidade. Quero morrer sorrindo, mesmo se a morte vier acompanhada da dor.

(pcventura@gmail.com — @paulocezarsventura)

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...