Existem várias formas de violência no mundo, cometidas aos outros, com várias denominações diferentes que estão além, ou paralelas, à violência física. Machismo, racismo, aporofobia, legbtfobia, xenofobia, misoginia, idadismo, etc. Assistimos, ou ouvimos, casos e mais casos dia a dia através das mídias jornalísticas e hoje também nas mídias sociais. A não escuta à pessoa idosa também é uma violência, pesada, cruel, pouco explícita, pois se passa no ambiente familiar, por isso mesmo pouco difundida como tal.
Darei um exemplo de um caso ao qual
tive acesso (nomes imaginários). Adla é uma senhora de noventa anos, com caso
de Alzheimer. A vida inteira trabalhou, criou suas filhas e ainda ajudou a irmã
a cuidar da filha, e ensinou filhas e sobrinhas na arte da culinária. Com a
idade avançada, filhas criadas e aposentada, foi morar com sua irmã em um confortável
apartamento e a auxiliava no gerenciamento da casa e da família.
Sua situação se complicou um
pouco com a chegada do Alzheimer, inicialmente leve, crescente ao longo do
tempo. Solução escolhida pela família: interná-la em uma casa de repouso. Uma
casa simples, não muito cara, bem cuidada, mas com muitos hóspedes.
A pergunta de Adla é: por que
estou aqui se tenho uma casa grande, com jardim e quintal, onde mora minha
filha e meus netos? Por que estou aqui se tenho dinheiro para sobreviver? Por
que estou aqui se minha irmã, a quem servi boa parte de minha vida, também tem
posses e uma casa até maior que a minha?
O fato é que ninguém a escuta.
Ninguém a responde. Agora ninguém mais a visita, para não terem que inventar
uma resposta inadequada. A não escuta migrou rapidamente para o abandono. A não
escuta é uma forma de violência porque reduz a pessoa ao silêncio, cancela sua
voz: se ninguém a escuta, por que falar? Esse caso é mais comum que a gente imagina.
Primeiro porque o diálogo intergeracional
inexiste há muito tempo em muitas famílias. Aquele pai rigoroso e exigente, aquela
mãe ranzinza, ambos sem muito diálogo com os familiares, tornaram-se pessoas
idosas e não é agora que mudarão de comportamento e atitudes tão facilmente.
Mudanças comportamentais e cognitivas acontecem quando casos emocionais ou
ambientais mais drásticos acontecem. Ou com muita terapia. Comportamentos e
atitudes são qualidades aprendidas e, muito provavelmente, muitas pessoas se
recusaram a aprender, ou nem tiveram oportunidade, ou pensaram não ser
importante. A sabedoria não é um dom, é um aprendizado, para todas as pessoas de
todas as gerações. Talvez essa pessoa idosa não tenha escutado seus filhos, o
que também não justifica a não escuta dos filhos em relação aos pais.
Outro caso mais próximo a mim
acontece com Jordelina. Noventa e sete anos completa este ano, anda com
dificuldade, mesmo com o uso de um andador, e com demência não muito avançada e
certa confusão mental. Lembra dos fatos mais antigos, esquece o que comeu no
almoço ou quem a visitou pela manhã. Um pouco surda.
Jordelina adora contar histórias.
Sempre foi exímia contadora de casos descrevendo cada detalhe da narrativa. Se
contava de novo para uma plateia nova repetia cada detalhe, até as vírgulas e
as paradas para respiração. Como atriz amadora que foi, já idosa, decorava a peça
inteira para não perder a entrada em cena e não esquecer o momento de sua fala.
Hoje mistura os casos. Conta-os em sequência, como se tivessem acontecido no
mesmo tempo e no mesmo lugar.
Um dia, ao visitá-la, contei-lhe
um caso. Meia hora depois chegou alguém e ela iniciou um caso que eu já conhecia,
de tanto ouvi-la contar. O mais surpreendente é que ela misturou o caso
iniciado com aquele que eu lhe contara. Contou como se fossem um só e como se
ela tivesse vivenciado os dois. Incrível. Perguntaram-me porque eu ria, não respondi
por respeito.
Convivendo com ela aprendi uma
tática interessante para praticar a escuta respeitosa, sem desmerecer a
interlocução, sem perder a paciência da escuta e ainda ajudar a pessoa idosa a
se lembrar de alguma coisa, mesmo se for difícil inicialmente. É o velho e
eficiente método da pergunta socrática. Quando a conversa começa a ficar
repetitiva e cansativa, faço uma pergunta que a faz pensar. Ou simplesmente
dizer não sei. Nesse caso faço outra.
— Quando mesmo foi isso,
Jordelina?
— Você se lembra de seu tempo de
escola? Onde foi mesmo que estudou?
— Teve festa em seu casamento?
Quem estava presente? Havia muitos convidados?
— O que você fazia em seu
trabalho?
— Quantos vestidos de noiva
costurou em sua vida?
— Que você realizou na vida que mais
gostou?
— Quem te ensinou a andar de
bicicleta?
— Você disse que jogou vôlei. Na
sua época os uniformes eram curtos? Jogava com as pernas de fora?
— Ainda sabe cantar aquela música
do Sílvio Caldas? E do Nelson Gonçalves, seu cantor preferido?
— ???
A escuta não precisa ser
cansativa. Pode ser divertida, mesmo sendo as respostas não confiáveis. A não
escuta é uma forma de violência. Violência silenciosa e muitas vezes despercebida.
A escuta pode ser criativa!
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