A demência é definida
como ausência
ou perda constante e progressiva da memória, chegando a comprometer o
pensamento, o senso ou a capacidade de se adaptar às ocasiões comuns e/ou
sociais. Mais propriamente, a demência é o declínio geral e persistente das
habilidades mentais, como linguagem e raciocínio, além da memória, e pode
interferir nas atividades normais da pessoa e seus relacionamentos.
No entanto, fico a imaginar o envelhecimento como
uma possibilidade de viajar no tempo e no espaço, o que nos permite colocar
nossas imagens, memórias de vivências, quando e onde quisermos. E isso depende
de como conduzimos a comunicação com nossos velhos e velhas. Tenho dois causos
a narrar sobre essa versão pessoal e, talvez, intransferível.
Jordelina tem 96 anos e viveu, até o seu casamento, aos 26, em uma pequena cidade do Vale do Aço, em Minas Gerais. Menos um período
de uns três anos, depois da segunda guerra mundial, quando residiu em Belo
Horizonte. Ela devia ter uns vinte e poucos anos quando isso aconteceu. Hoje
parece que todos os casos que ela conta aconteceram nesse período e no entorno
do bairro onde ela residiu, àquela época, ou no bairro onde hoje reside, na
região metropolitana de Belo Horizonte. Ou seja, sua memória recuperada indica
que ela consegue viajar no tempo e no espaço, e suas histórias são remontagens
de memórias, como uma colagem ou um fuxico de retalhos.
Sempre que a visito provoco-a com perguntas que lhe
trazem à mente algumas imagens de sua vida, e ela as conta em uma nova
narrativa, antes desconhecida. Como sua imaginação e inteligência são enormes,
sempre foram, cada vez que conta um mesmo fato sai um novo roteiro. Em um
desses momentos ela contou estar presente na inauguração do Edifício
Acaiaca, conhecido prédio no centro de BH. E foi convidada a cortar a fita
colocada à entrada do prédio.
O famoso Edifício Acaiaca foi inaugurado durante a
segunda guerra, em 1943, anos antes de sua estadia na cidade em fins da década
de quarenta e início dos anos cinquenta. Como o edifício é icônico e tem uma
arquitetura muito típica da época, e nele havia um cinema muito visitado, não
surpreende que faça parte de seu imaginário.
Outra memória de Jordelina ouvida nos últimos
tempos, e que estava guardada no fundo do seu baú de lembranças, foi muito
indicativa da viagem afetiva aos tempos passados. Segundo ela, esteve presente
em programas da rádio Itatiaia, tendo sido convidada para cantar e fez muito
sucesso, claro. E que havia um locutor na rádio que se chamava Álvaro Francisco, de quem ela gostava muito. Queria que seu primeiro filho tivesse esse nome, o
que não aconteceu devido ao ciúme de seu marido, que também se chamava
Francisco. O que descobri, depois de tantos anos de escuta, é que naquele tempo
e naquele lugar ela viveu os momentos mais felizes de sua vida.
Quando conheci Suzana ela já estava com oitenta
anos. Visitei-a acompanhado de amigos em comum e ela demonstrou simpatia à
minha pessoa. As visitas continuaram, sempre acompanhado dos amigos, até que um
dia a presenteei com um livro de poemas, quando ela confessou seu apreço à Poesia
e que gostaria que eu aparecesse mais à sua casa para ler para ela. A partir de
então passei a visitá-la só, para ouvi-la contar suas histórias e para ler poemas.
Um belo dia ela me disse que teve um namorado na juventude que se parecia
comigo e que também gostava de Poesia. A sua família, no entanto, não consentia
o namoro e a obrigou a se casar com outro homem. Memórias afetivas, sem tempo e
sem lugar definidos.
Suzana viveu mais de cem anos, mas passou os
últimos dez em sua cama, depois de uma queda e outros problemas de saúde. Sua
memória foi diminuindo a ponto de não se lembrar mais das próprias filhas, mas
se lembrava de mim (ou do seu antigo namorado?). O fato é que quando eu me
inclinava para beijá-la ela dava um jeito de beijar-me nos lábios, tipo
selinho. Durante minha última visita, sua filha estava presente e, para sua
enorme surpresa e indignação, Suzana disse meu nome.
— Como ela se lembrou de você se não se lembra de
mais ninguém há muito tempo?
Minha hipótese, não muito forte, evidentemente,
baseada nas histórias dessas duas personagens, cujos nomes reais omiti neste
relato, é que elas guardam por mais tempo histórias vividas ou criadas em
momentos e lugares nos quais elas foram felizes, transportando-as para momentos
atemporais e lugares meta-espaciais. Lembranças e esquecimentos são estratégias
de defesa da mente e do pensamento. Minha expectativa é que minha última
lembrança seja aquela de um tempo e um lugar, não importa qual nem onde, mas de
grande felicidade. Quero morrer sorrindo, mesmo se a morte vier acompanhada da
dor.
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