Era uma segunda-feira pela manhã, início de mês, os supermercados estão geralmente cheios nesta hora preferencial das pessoas idosas fazerem suas compras. Parecia a fila da aposentadoria. Claro, eu também estava lá, faço parte desse time.
Esta é, também, a hora da reposição de produtos nas
prateleiras. Logo, os clientes trombam, nos corredores, com funcionários agachados
junto às gôndolas e com caixas e carrinhos de produtos.
Por esse contexto, é também hora das reclamações. Pessoa idosa
adora reclamar. Para alguns é o passatempo favorito e com certa dose de
saudosismo e nostalgia: — ... “naqueles tempos, tudo era melhor” ...
O mais inusitado e interessante acontece depois das compras,
na enorme fila do caixa preferencial, o preferido e selecionado pelas pessoas
idosas, mesmo que outras filas estejam menores. É uma questão de posse, chamam
até de fila dos grisalhos, onde se encontram para conversar sobre coisas
aleatórias.
Coisas aleatórias? Que nada! Ajustei meu aparelho escutador,
estiquei as orelhas como cão perdigueiro e fiquei a ouvir as histórias. Logo à
minha frente, três senhoras conversavam sobre suas doenças.
— Eu tomo remédio para controle de pressão. Sem eles minha
pressão fica muito alta.
— Ontem, minha mãe estava com a pressão a 20 x 15. Tive que levá-la,
urgente, à UPA.
— Ah, meu problema é a glicemia. Varia rápido de 90 a 500,
depois volta sem mais nem menos.
— A sua glicemia ainda volta. A minha fica sempre alta. Faço
regime e ela não abaixa. Aliás, não consigo nem emagrecer.
— E minha arritmia? Você nem imagina! Tem hora que meu
coração bate mais rápido que pandeiro de escola de samba.
Eu escuto, observo, e não consigo esconder meu riso. Parecem
que elas ficam felizes com suas doenças. Mas falar de nossos males nos
aproxima, nos encaixa em nossos grupos de pertencimento.
(Paulo Cezar S. Ventura)
Um amigo meu, também colega de trabalho, teve câncer de próstata, fez uma cirurgia e voltou ao trabalho. Ficou bem, mas detestava responder às perguntas dos colegas. Certo dia me disse: — Não aguento mais responder as pessoas que me perguntam se estou bem. Decidi, então, não explicar mais nada. Ninguém entende mesmo o que eu passei, e não gosto de suas caras de pena. Agora só converso com quem já passou por isso.
Foi descobrindo outras pessoas que tiveram câncer de próstata
e montaram um grupo de relacionamento. E se encontram semanalmente para
comentar sobre suas próstatas e tomar uma taça de vinho.
Lembrei-me de uma outra amiga que tem grandes crises de
depressão. Ela fica mais deprimida ainda quando percebe que você está feliz e
ela não.
— O que você tem de melhor que eu que parece nem ter
problemas?
Sabendo disso, ao conversarmos sempre respondo a seu “como
vai você” com uma frase que lhe seja conveniente:
— Ah, hoje não estou bem não. Estou com dores e sensações
estranhas (o que nem é falso, pois dores e sensações estranhas, em nossa idade,
é bem comum).
— O que você tem?
— Penso que tomei um jeito na coluna. Parece até hérnia de
disco.
É o suficiente para ela sorrir. Agora ela fala pra todo
mundo que tenho hérnia de disco e pensa que estou tão infeliz quanto ela.
Voltando à fila do caixa preferencial (assim está escrito na
placa, mas os preferenciais somos nós), tive a impressão que a alegria das
pessoas também se fundamenta na percepção que todas eram infelizes (ou felizes,
não sei bem) igualmente em suas doenças. Até que uma percebe meu sorriso e me
pergunta:
— E você, não tem nada não? Nem uma dorzinha?
— Ah, minha senhora. Minha pressão e glicemia estão bem. Mas
as artroses das juntas até ardem de tão fortes (entrei no jogo).
A receita veio rápida, com um enorme sorriso.
— Açafrão da terra. Coloque uma porção na banana com aveia
para comer pela manhã que é tiro e queda. Se fizer isso todo dia verá como
melhora. Se não melhorar a junta, ajunta tudo e joga fora.
— ...
Todos deveriam contar sua história:
modo de contar
depende de um
único olhar.
(Paulo Cezar
S. Ventura)