i. O trovão
Minha mãe sempre falava que os homens da família Ventura não
falavam, trovejavam. O trovão não é um evento isolado, ele não aparece assim,
sem mais nem menos. Primeiro um tanto de nuvens negras se aglomera e se
avoluma, e se adensa, se movimenta, cria tensões entre elas e, de repente,
raios, relâmpagos e ... trovões. O trovão é um descarrego de todas essas
tensões acumuladas. Era isso que minha mãe queria dizer. Nós, os homens
Ventura, deixávamos acumular as tensões e, ao trovejarmos, já havíamos descarregado
em sei lá quem, talvez um pobre coitado que nem soberbo era, cujo defeito era
estar próximo, todos os nossos raios e relâmpagos. Lembro-me de não sei quantas
brigas eu ia cozinhando a chateação e quando as nuvens negras se adensavam
sobre minha cabeça eu só parava quando alguém me puxava. E a briga era aos
berros, trovejando. Com o tempo tive que aprender a controlar esses trovões. O
único jeito era não deixar as nuvens negras se avolumarem. Movimentos,
esportes, corridas na chuva, pedaladas de horas, até ficar cansado e esparramar
nuvens para todos os lados. Isso me custou um casamento, custou a distância de
pessoas queridas. Acho que aprendi. Hoje me considero um doce de pessoa. Falo
baixo, não mais trovejo (raramente), aprendi a escutar primeiro, com muito,
muito custo. Hoje, com o aprendizado da meditação, da respiração controlada,
consigo ficar calado, embora de vez em quando minha companheira ainda tenha que
me chamar a atenção por alguma ligeira recaída. Esse é um tipo de comportamento
que me custou caro mantê-lo e caro modificá-lo.
ii.
As mulheres
Quando criança e adolescente eu era absurdamente tímido. Não
conseguia conversar com outras pessoas, apenas observava comportamentos
alheios. Aprendi, pelo menos, a ser observador. A prestar atenção em tudo à
minha volta. E, chegando em casa, comentava tudo que meu radar de observação
havia registrado. Assim, tinha também muitas histórias. Soma-se a isso a
educação severa que eu recebi, principalmente no sentido de respeitar as
pessoas, respeitar as mulheres. Para minha mãe era manter distância das
mulheres. Com isso tive poucas e insatisfatórias experiências sexuais até
conhecer uma mulher e casar com ela. Quando levei um susto estava casado, com
vinte e poucos anos e dois filhos. Tudo era muito lindo, maravilhoso, mas em
dado momento eu quis conhecer as mulheres, conhecer várias mulheres. E namorei,
escondido, o quanto pude e não deveria, era casado. Entre os trinta e os
quarenta anos, namorei uma infinidade de mulheres. O que me custou o casamento
primeiro e quase me custou o segundo ainda recém iniciado. Tive que tomar uma
decisão. Minha segunda companheira, e atual, é uma pessoa maravilhosa,
inteligente, bonita, bem humorada e muito companheira. Tive que parar de
namorar. Mantenho as mulheres a uma distância segura. Sou um mulherengo nato
(outra fama ruim dos homens Ventura). Mas hoje a palavra mulherengo tem outro
significado para mim. Meu universo cotidiano é primordialmente feminino. Tenho
muitas amigas, trabalho com muitas mulheres, rodeio-me de muitas mulheres,
exercito meu charme, mas não as namoro.
iii.
O trabalho
Eu nunca soube qual era minha vocação. O trabalho foi
aparecendo. E fui pegando à medida em que era necessário. Primeiro, em casa
mesmo. Tínhamos uma horta grande, que produzia muito, e eu vendia os
excedentes. Desde tenra idade saia com um balaio de verduras e legumes para
vender na cidade. Conheci a cidade de Nova Lima de cima a baixo, entrava em
todos os seus becos para esvaziar o balaio. Aos quinze anos passei em um
concurso para ser contínuo em um banco. Que horror. Consegui ficar dez meses
nesse trabalho. Para nunca mais me meter com contas dos outros. Como eu tinha
que entregar cobranças para os clientes do banco eu conheci o restante da
cidade, as poucas vias e ruelas que ainda não conhecia. Este foi o único lado
bom do trabalho. Então resolvi me ocupar apenas dos estudos. Como passei no
vestibular para Física, sei lá porque escolhi essa disciplina, fui logo chamado
para ser professor na mesma escola em que eu acabava de me formar no ensino
médio. E nessa profissão fiquei até me aposentar. Colecionei locais de
trabalho, porque eu não sou muito afeito a chefias, a mandantes, e sempre que
eu me chateava com algum deles eu mudava de local de trabalho. A vantagem de
ser professor de Física é que nunca faltou local de trabalho. Ele me procurava.
Mas eu nunca foquei muito no trabalho. Essa foi uma falha grande, hoje o sei.
Mas consegui ser professor por quarenta anos, parei agora e invisto em outra
profissão: a de coach.
Nenhum comentário:
Postar um comentário