Música “O Astronauta de Mármore”: 
versão do grupo Nenhum de Nós de uma
música de David Bowie (Star Man)[1].
“Eu não vendo
livros: 
eu narro
histórias que transformam vidas”
(Caio
Carvalho Cardoso)
Cidinha é uma jovem adolescente com duas características que
a torna parte do mundo dos “diferentes” (como se os demais fossem iguais): é
autista nível três e obesa. Só quem tem filhos “especiais”, como Caio, eu e
muitos outros, sabemos o que isso significa. Com muito custo, o irmão de
Cidinha conseguiu tirá-la de casa, montada em uma cadeira de rodas e a levou a
uma livraria. Era sua última esperança para tirá-la da letargia em que vivia,
totalmente sem motivação. Em menos de meia hora de conversa, em que Cidinha
abriu o coração, o livreiro lhe apresentou uma saída. Disse-lhe: 
— Já sei qual livro descreve sua vida. E lhe apresentou
“Você é Insubstituível”, de Augusto Cury. Dois dias depois, Cidinha e seu irmão
voltavam à livraria para comprar outros livros. Hoje ela é uma de suas maiores
leitoras: entre dez e vinte livros todos os meses. São livros usados, a baixo
custo e o livreiro terapeuta ainda faz uma jogada genial: ao devolver os livros
comprados antes, você leva outros pela metade do preço de tabela. 
Outros clientes especiais do livreiro são alguns moradores
de rua localizados próximos à livraria. No caso deles, nenhuma cobrança é
feita. Eles pegam um livro, levam para leitura e, dias depois, um outro ao
devolverem os de antes. 
Que capacidade é esta que tem o livreiro, Caio em especial,
e que faz a sua livraria no centro da cidade de Belo Horizonte, um sebo em uma
rua supermovimentada, com um abundante comércio de tudo, entre o Mercado
Central e a Rodoviária, estar sempre repleta de clientes, leitores, escritores
e pessoas à procura de uma palavra de alento, mesmo que uma palavra escrita? 
Podemos denominar essa atividade de “livroterapia”? O livreiro não
tem nenhuma formação em terapias, a não ser a experiência que ele adquire
através das leituras e de sua experiência de vida, como é o caso do livreiro
Caio. Além dele, conheço outros livreiros capazes de indicar um bom livro para
o cliente baseado apenas na conversa que se desenrola em uma livraria. Mas
existe uma atividade profissional denominada Biblioterapia[2], cujo objetivo é incentivar as pessoas a terem a leitura como
hábito e mostrar que esta é uma ferramenta importante para auxiliar no
desenvolvimento do autoconhecimento e da inteligência emocional. "A
leitura é para a mente o que o exercício físico é para o corpo. Através de boas
leituras, mantemos o cérebro funcionando e desta forma ajudamos a preservar seu
bom funcionamento. O prazer de uma boa leitura vem do fato de que ler estimula
a imaginação, a memória e o raciocínio, e isso é fundamental para a saúde
mental".[3] 
Eu, como leitor assíduo e escritor, tenho algumas coisas em comum
com esse livreiro. Frequento um grupo de pessoas idosas que se reúnem para
discutir sobre a vida e se divertir com ela. Uma vez por semana estamos lá,
mediados por um gerontólogo especialista em respiração, meditação, eneagrama e
logoterapia. Eu sempre levo para eles, quando solicitado, sessões de
biblioterapia (fiz um curso online, mas conto com minha experiência com os
livros) que se destina a aprender, através da leitura guiada, a lidar com as
emoções.
— Caio, em que momento você acreditou que poderia ajudar as outras
pessoas através dos livros?
— É uma longa história, mas foi no momento em que assumi a
livraria, pois naquela mesma ocasião minha esposa estava doente e lutava para
sobreviver e eu comecei a lutar com ela. Insisti para que ela lesse, pois
ficava muito tempo na cama e, para nossa surpresa, a leitura a ajudou muito e
ela conseguiu se levantar. Ela se tornou leitora. Tinha pouco tempo de vida,
estimativa dos médicos, mas sobreviveu ainda alguns anos mais. A fé que ela
passou a ter de que poderia se curar a fez lutar pela vida. O problema dela era
muito grave, mas a partir daí eu percebi que poderia ajudar as pessoas através
da leitura. Tenho muitos casos de relatos de melhorias, feitos por clientes
meus, e eles se tornam clientes eternos. Sempre que terminam uma leitura voltam
à livraria para comprar outro livro.
— Que experiência anterior você tinha sobre isso?
— Minha experiência de vida é uma experiência de dor e de
violência. É uma longa história. Irei contá-la como uma história
infanto-juvenil.
Era uma vez uma
criança infeliz. E por que essa criança era infeliz? Ela vivia com uma família
extremamente complicada. Sua mãe havia sido moradora de rua, em São Paulo,
desde muito jovem. Vivia na miséria e imagine você como era (é) a vida de uma
jovem de quatorze anos, na rua, vivendo do que ganhava e do que sobrava. Ela
bem que tentou ter uma vida melhor, mas o álcool, cigarro e drogas eram
companheiras inseparáveis. O pai, que também bebia, fez muito esforço para que
melhorassem de vida: não conseguiu. Obviamente. A vida dessa criança era afeita
a toda sorte de violência e sofrimento. Além disso, seu tio doente mental
tentou matá-lo ainda muito criança. Ademais, um acidente de bicicleta o deixou
quase paralítico. Durante mais de um mês ficou na cama, com o rosto deformado,
o corpo machucado, sendo motivo tanto de riso de uns, como de pena de outros. 
Claro que era um
péssimo aluno na escola, com grande dificuldade de aprendizagem. E, para
completar, perde o pai, seu único refúgio na vida. Mas, se você acredita que
tudo isso fez dele um fracassado se engana. Começou a trabalhar de vendedor de
poesia nos ônibus de transporte coletivo em Belo Horizonte e região
metropolitana. A Poesia o transformou e ele se tornou o melhor vendedor de
poesia que a cidade já viu. Ele conseguia emocionar os passageiros que
compravam o cartão com o poema por um preço muito maior que o marcado. A poesia
mudou a vida daquele menino. Começou a ler, ler e ler tudo que aparecia em sua
frente. Os primeiros resultados apareceram na escola. Passou de péssimo aluno a
o melhor da escola, o querido dos professores e colegas. 
O melhor você nem
sabe. Conseguiu um emprego em uma livraria e se tornou livreiro e a saga
começou. Como se deu conta que os livros contribuíram para seu equilíbrio
emocional, começou a usar os livros e suas histórias para ajudar as pessoas
desencontradas a acharem seus lugares no mundo. De patinho feio a cisne negro.[4] 
— Bela história, meu amigo. Qual foi o livro que leu e lhe fez
acreditar que uma virada de vida era possível? 
— Foi o livro “O Maior Vendedor do Mundo”. De Og Mandino.
Acreditei que poderia ser esse vendedor.
Mude de
perspectiva quando as coisas parecem dar erradas. 
Se precisar
mude também de trajetória.
(Paulo C S Ventura)[5]
No meio do caminho havia um livro. Tropeçar no livro o fez mudar
de trajetória. 
— E por que veio parar em Nova Lima? 
— Foi em um domingo de carnaval. Vim a convite de uma jovem em
quem estava interessado, mas não a encontrei. Encontrei uma outra que, por
acaso, olhava para mim. Perguntei seu nome: — Dulcineia, e o seu? — Muito
prazer. Don Quixote. Ela não entendeu a brincadeira, mas ali começou uma de
minhas muitas mudanças de trajetória. 
Caio aterrissou em Nova Lima para deixar de brigar com moinhos de
vento, um Don Quixote ao inverso. Precisava aterrissar e fugir de sua família
totalmente desagregária. Foi morar na casa da família da Dulcineia. No entanto,
a espada do destino ainda dançava próximo a sua cabeça. Em uma noite de chuva a
casa caiu. Literalmente. Em cima dele. Saiu ileso dos escombros, o que
significa que mais uma vez conseguiu se desvencilhar da espada do destino. Mais
uma vez, sobreviveu. 
Entre
livros e acidentes, o livreiro venceu. Casou-se, construiu sua casa no bairro
Galo. O Don Quixote conseguiu enganar Cervantes e foi viver com sua Dulcineia.
Felizes para sempre? As histórias reais nem sempre terminam assim, nem tudo são
contos de fada. O dedo mórbido de Cervantes (será que era ele mesmo?) se
intrometeu na história e Dulcineia se foi, mas não sem fazer a leitura do “Don
Quixote de La Mancha”. Leitura inacabada, segundo o Caio, não terminou de ler o
volume dois. Essa parte da história deixaremos para o próprio Don Quixote
contar, se quiser. Em outra narrativa, de própria boca ou, quem sabe, de
próprio punho.
“Memórias não são inocentes:
mudam o mundo das coisas
e nos salvam das coisas do mundo.
Nossas memórias somos nós
nossas identidades
nosso registro de humanidade
sem números em documentos.
Assim, eu me recordo de mim
numa rajada de luar
num relâmpago de todos os ontens,
nos traçados dos amanhãs
nos círculos de muitos agoras,
nas espirais de todos os instantes
nas sinfonias de todos os tempos.
(Paulo C S Ventura)
Com a viagem ao
Cosmos de Dulcineia, Caio teve que plantar suas estruturas em novo formato. A
solidão existe, ouviram pessoas? Mas "a solidão é um campo demasiado vasto
para ser atravessado a sós" (Lya Luft). Nosso livreiro se casou de novo e
pode seguir uma trajetória mais amena (será?). 
Eu o conheci em um
Clube de Leitura. Era o lançamento de um livro de um autor nova-limense, um
escritor autista. Claro, nós dois, pais de autistas, estávamos lá. Não sei
exatamente o que nos conectou. Pais de autistas ou amantes dos livros? Ou os
dois? Mais que amantes dos livros, usamos suas histórias para conectar pessoas
e tocar o inconsciente delas de alguma forma. Um livreiro “terapeuta” e um
mediador afetivo de leituras, juntos no mesmo espaço se esbarrariam de alguma
forma. Sem trombadas: na verdade, no abraço. E a amizade floresceu. E parcerias
nasceram. O livreiro vende alguns dos livros que edito e, juntos, montamos o
Piquenique Literário em um parque da cidade de Nova Lima.
Aqui deixamos o
passado para trás e vamos pensar no que fazemos no presente e em que projetar o
futuro. Sim, somos hóspedes de um futuro que bate à nossa porta. Devemos
construir uma memória rica, mas uma memória que nos convida a andar para a
frente. Um passo atrás é possível, mas só para nos alavancar para o salto à
frente. Melhor que aquelas aranhas dos ditados populares (nem sei se é
verdade), um passo lento e seguro para trás para propulsionar, como motores
turbo, nosso salto ao futuro. 
Contamos histórias, de formas diferentes. Escrevo-as, e ele
apresenta várias delas (minhas e de outros) a quem precisa se servir delas para
transformar suas vidas em valores. Caio muda a vida de sua comunidade através
dos livros, muitos deles doados aos meninos e jovens do Galo (um bairro de Nova
Lima). A Caminhada Filosófica tem fila para receber livros em doação maior que
a fila da pipoca. A roda de leitura arremata novos leitores que se tornam
pessoas diferentes, porque os livros e a “educação mudam as pessoas e pessoas
mudam o mundo” (Paulo Freire), que começa exatamente onde cada um está.  
Esse saber, não pode se esconder entre montanhas, mas ele
pode se espalhar a partir desse vale, dessas matas atlânticas, subir serras e
correr o mundo. É preciso e urgente acreditar nisso.
O Caio acredita nisso e, junto à esposa e ao filho,
transforma leituras em luz que ilumina a mente das pessoas e ajuda a
transformar a realidade de seus leitores.
“As coisas nascem primeiro 
nas mentes das pessoas,
depois elas acontecem.
O que não existe como matéria e massa,
só existe nas mentes das pessoas.
A realidade, que pode ter massa, não existe.
Sua representação, que não tem massa,
sim, e está nas mentes de todas as pessoas.
A luz, que pode ser ou não ser matéria,
existe,
não só na mente das pessoas
e as ilumina.”
 (Paulo C S Ventura)
[1] https://www.youtube.com/watch?v=t365MuktYQs (a original) 
https://www.youtube.com/watch?v=1NDxPTLxcrg (a versão).
[2] https://bit.ly/4nMTvzj (visto em 15/10/2025). 
[3] Adaptado da leitura de texto em https://bit.ly/494Zafu. (lido em 15/10/2025). 
[4]
Uma referência ao livro de Nassim
Nicholas Taleb: “O Cisne Negro”. Segundo o autor, todos pensam que o cisne
negro não existe até um dia encontrar um.
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