Momento I — Mal Necessário[1]
“Sou o novo, sou o antigo, sou o que não
tem tempo
O que sempre esteve vivo, mas nem sempre atento
O que nunca lhe fez falta, o que lhe atormenta e mata
Sou o certo, sou o errado, sou o que divide”.
Tibouchina mutabilis é
o nome da planta. Na cidade onde Saulo trabalhou como funcionário público,
lá nos anos noventa, ela estava presente em todos os jardins, tanto os das
praças, quanto os dos quintais. Parece que cada cidadão recebia uma muda para
plantar em sua casa assim que começava a construção. Mutabilis, porque
suas flores, bem cheirosas, mudam de cor ao longo de suas existências, enquanto
flores.
Conhecidas como manacás, essas plantas demoram
alguns anos para crescer e florir. Combinavam com a cidade. Povo conservador,
cheio de tradições centenárias, ainda usavam uma particular comunicação de
serviços públicos através dos sinos, comum em cidades antigas do interior
mineiro.
Para Saulo, o
perfume dos manacás se tornou símbolo da mesmice, da pasmaceira e das relações
entre as pessoas da cidade. Na verdade, era ele que não estava muito à vontade.
Parecia não caber no lugar. Chegou sozinho na cidade, logo após uma doída
separação da mulher e dos filhos. Talvez por isso, transformou-se na atração do
mulherio solteiro, que via nele um bom partido.
Mesmo o
assédio era um símbolo da violência enrustida na cidade. Pois com o assédio, as
mulheres sofridas pelo paternalismo exagerado e proprietário, viam nos
forasteiros uma chance de fuga, da cidade e daquela vida.
Plantígrado
que é, Saulo caminhava pelas ruas, de antigas casas, iluminadas com luzes de
lampiões, um belo cenário nas manhãs neblinadas. O antigo grudado até na
neblina, e ele era o moço que chegava e não ficava por não ser o certo, nem o
errado, mas o que dividia opiniões por ser aquela metamorfose ambulante no
lugar errado.
O limite de
sua paciência foi ultrapassado quando a mulher do Ford Escort XR3, vermelho,
novo, ano noventa e dois, o convidou do bar para a cama, e o deixou na lama das
ilusões perdidas. Saulo se mandou de lá e nunca mais voltou.
“O que não tem duas partes, na
verdade existe
Então esquece o que lhe fazem
Nos bares, na lama, nos lares
Na cama, na cama, na cama”.
“Eu não sei o que o meu corpo abriga
Nestas noites quentes de verão
E nem me importa que mil raios partam
Qualquer sentido vago de razão”.
Cazuza foi um ídolo de seu tempo. Nunca foi o ídolo de
Saulo, que achava suas letras e músicas deprimentes. A vantagem dele era sempre
dar um tapa na cara da hipocrisia. Não era o que Saulo procurava. Tudo que ele
queria era sair daquele desassossego que o importunava e deixar para trás a
solidão das noites escuras.
Nessas noites seu destino era sempre sua casa, para onde
seguia a pé, contando os pés de dama da noite do caminho, cujo perfume o deixava
meio bêbado, mesmo não sendo apreciador de bebidas alcoólicas. Mas acordava
sempre com aquele gosto de cabo de guarda-chuvas na boca, provocado, segundo
ele, por ressaca daquele perfume.
Talvez tudo que se passava naquele tempo fosse apenas “pelo
sentido vago de razão”, comum nos grandes momentos de transformação. Acontece
com todo mundo. É o tempo do Cazuza, ou melhor, do casulo, que poderia se
desabrochar nas chuvas de verão que se seguiriam. Um banho de chuva no calor da
tarde poderia trazer de volta a verve sedutora e inquieta desse personagem,
mesmo com o perfume de dama da noite nos caminhos de volta para qualquer lugar
que fosse. O lugar não importa, Saulo o sabia. O que sempre importa é o
preenchimento da alma vazia.
Momento III – Águas de março[3]
“É um passo, é uma ponte, é um sapo, é
uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração”.
Veio o verão. E o banho de chuva em uma tarde quente. Desses
de lavar a alma de dentro e o corpo de fora, externando aquela vontade de fazer
acontecer. Saulo pôs o pé na estrada e partiu pelo mundo. Conheceu Europa,
França e Bahia. E a América, a Latina e a da latrina do mundo, tecnológica e
fantasiosa. Todas as combinações são possíveis.
Durante as águas de março as damas da noite ainda estão
presentes, no entanto, não perturbam. Sua essência na alma de Saulo é
substituída pelos pés de goiaba, pela calma da beira de rio, antes e depois das
enchentes, e pelos pássaros bicando goiabas maduras nas árvores. Mesmo o céu
avermelhado das tardes depois das chuvas é alentador, é um signo de esperança,
e da “promessa de vida no coração”.
Todos os momentos são passageiros, claro. Todos eles foram,
e são, cantados em músicas, encenados nos teatros, contados em rodas de
conversa, escritos nos romances de todas as línguas do mundo. Apesar das
semelhanças dos relatos, eles são vividos diferentemente por cada um que sempre
considera sua experiência única. Como alegrias nunca veem sozinhas, as águas de
março trouxeram pessoas, bichos, objetos, tudo isso formando uma bolha
interativa que nos faz viver plenamente. Se a bolha estoura, outras se formam.
A alegria sendo a mesma, a bolha se conforma a seus habitantes. Essa bolha se
chama mundo.
A transformação esperada, como sempre, veio. Com a chuva,
que trás vida e desastres. A questão agora, para Saulo, era continuar com as
plantas dos pés no chão, mesmo mantendo sua cabeça nas nuvens, como sempre.
Caminhar até, quem sabe, um dia encontrar seu pedaço de chão, colocar uma
cadeira sob o pé de manacá, que também encontraria em seu quintal, e esperar as
estrelas trazendo o cheiro de damas da noite.
É a chuva chovendo, é
conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
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