I
Casal chega
à praia, senta-se sob sombra próxima das ondas, cada um interage com seu
telefone celular. Não se falam, nem se olham. Meia hora depois, o homem convida
a mulher para fazerem uma autoimagem (preferimos usar a palavra em inglês
“self”). Uma verdadeira transformação acontece. Em frente à câmera, sorrisos,
abraços e beijos em sequência de fotos.
Terminada a sessão fotográfica, um xinga o outro pela postura, pela areia do corpo que arranha a pele, pela foto não pegar o melhor ângulo do rosto (olha essa mecha de cabelo em frente meus olhos), coisas assim. Postam as fotos no Instagram e voltam à posição anterior. Passam o resto da manhã respondendo às dezenas de mensagens de seguidores:
üque casal lindo;
ü gostaria de ter a vida de vocês;
ü amor assim é raro;
ü gostaria de estar aí com vocês.
As respostas aos seguidores fãs eram pérolas da superficialidade:
ü muito obrigado, queridos. Nossa vida é ótima mesmo. Somos belos e felizes.
Terminam a
redação das respostas, reclamam do sol quente e caminham em silêncio até o
carro. Ele reclama que ela trouxe areia nas sandálias. Ela reclama que ele
ficou muito suado. Em casa ambos reclamam da comida e passam a tarde visitando
os aplicativos de computadores e escrevendo nas redes sociais. À noite
participam de uma “live” (outro anglicanismo) de um famoso “influencer”
sobre como é bela a vida a dois.
II
Nanda conta
a todos os amigos do Facebook como é a vida de cuidados que ela tem com sua mãe
idosa. Ela se exibe em vídeos penteando a mãe, lendo histórias para ela e
mostra como, apesar da teimosia da progenitora, ela está sempre presente e
disposta.
Desliga o
vídeo e xinga, em voz alta.
— Mãe,
você devia ser mais participativa. Custava me agradecer, online, pelo carinho
que tenho e como está feliz de ter uma filha como eu? Preciso mostrar como
cumpro bem feito meu papel de filha de mãe idosa e doente. Tem um mundo de
gente me seguindo.
—
Idosa estou, doente não. Da próxima vez direi que você é muito chata. De fato,
você é uma grandíssima filha-da-mãe.
— Se
disser isso vai para o asilo.
III
O filme no TikTok dançando e cantando com a filha de dez anos viralizou. Um milhão de visualizações. Vários seguidores enviavam corações vermelhos e dedos polegares para cima.
ü sua filha é uma gracinha;
ü como vocês cantam bem;
ü bom demais ver vocês cantando e dançando juntas, que harmonia;
ü tal mãe, tal filha;
ü da próxima vez cantem para mim a
música (x).
— Filha, precisava cantar com a cara tão fechada?
— Você me obriga a dançar e eu detesto. Não quero
mais fazer isso.
— Vai continuar, sim. Estou quase chegando a um
milhão de seguidores.
— Não quero saber. Não filmo mais.
— Vai sim. Se não quiser, mando você morar com seu
pai. Sabe bem que a nova mulher dele lhe detesta.
— Prefiro alguém que me detesta a alguém que
finge que me ama.
IV
— Conta uma história para gente, moço!
— Era uma vez um catador de realidades. Ele tinha
o hábito de pesquisar a história acontecida por trás das histórias contadas e
recontá-las de outra maneira.
— Como é isso: catar realidades?
— É uma pesquisa muito séria. Científica. É para
descobrir a realidade offline das histórias contadas online. As boas histórias
online só sobrevivem se ela não se distanciar da história offline. Ou seja, se
a vida offline for ótima também, a história contada será entendida e
aprendida pelas pessoas. O que é preciso é um pouco mais de verdade. E é
preciso coragem para mostrar verdades.
— Como atua o catador de realidades? Como ele
descobre a realidade?
— Não é simples. Ele precisa entrar na tela e
ficar online também, observar a notícia de dentro. Por exemplo, o casal do causo I
mostrava sorrisos amarelos que não mudavam de uma cena para outra. Sinal claro
de conversa fiada, ou melhor, de sorriso fiado. E não é difícil perceber a
testa franzida da mãe idosa do causo II, nem a cara fechada da menina do causo
III. Mas a gente só percebe com um olhar de ave de rapina.
— Olhar de ave de rapina? Como se consegue ter
esse olhar?
— Precisa prestar atenção nos detalhes. Eles
estão lá para serem vistos por aqueles observadores perspicazes. Na vida
online, as pessoas costumam usar máscaras. E nenhuma máscara é para sempre. Na
vida offline, as máscaras só atrapalham. Deixam o suor escorrer por baixo
delas. Aí mora o detalhe. O detalhe mora no interior das histórias.
— Como assim? Por isso você conta histórias?
— Conto histórias para ressignificar minhas
memórias. Para fazer minha vida offline ser bem importante e significativa para
mim. As histórias são como minha vida online. Elas só terão importância se
forem parecidas com minha vida offline.
— E aquela história de que “quem conta um conto
aumenta um ponto”?
— É verdade, a gente sempre aumenta um ponto. Mas
é só para dar uma graça diferente. Esse ponto a mais só tem sentido para
melhorar o passado da gente. Assim, nosso presente melhora e, consequentemente,
nosso futuro também. Isso é catar realidades. É melhorar nossas vidas para transformar as vidas dos outros.
— E como ser catador de realidades?
— Simples, basta recontar as histórias que ouve. E
aumentar um ponto em seu reconto.
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