segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

MINHA VIDA OFFLINE - OU PORQUE CONTO HISTÓRIAS

  

I

Casal chega à praia, senta-se sob sombra próxima das ondas, cada um interage com seu telefone celular. Não se falam, nem se olham. Meia hora depois, o homem convida a mulher para fazerem uma autoimagem (preferimos usar a palavra em inglês “self”). Uma verdadeira transformação acontece. Em frente à câmera, sorrisos, abraços e beijos em sequência de fotos.

Terminada a sessão fotográfica, um xinga o outro pela postura, pela areia do corpo que arranha a pele, pela foto não pegar o melhor ângulo do rosto (olha essa mecha de cabelo em frente meus olhos), coisas assim. Postam as fotos no Instagram e voltam à posição anterior. Passam o resto da manhã respondendo às dezenas de mensagens de seguidores:

üque casal lindo;

ü  gostaria de ter a vida de vocês; 

ü  amor assim é raro;

ü  gostaria de estar aí com vocês.

As respostas aos seguidores fãs eram pérolas da superficialidade:

ü  muito obrigado, queridos. Nossa vida é ótima mesmo. Somos belos e felizes.

Terminam a redação das respostas, reclamam do sol quente e caminham em silêncio até o carro. Ele reclama que ela trouxe areia nas sandálias. Ela reclama que ele ficou muito suado. Em casa ambos reclamam da comida e passam a tarde visitando os aplicativos de computadores e escrevendo nas redes sociais. À noite participam de uma “live” (outro anglicanismo) de um famoso “influencer” sobre como é bela a vida a dois.

 

II

Nanda conta a todos os amigos do Facebook como é a vida de cuidados que ela tem com sua mãe idosa. Ela se exibe em vídeos penteando a mãe, lendo histórias para ela e mostra como, apesar da teimosia da progenitora, ela está sempre presente e disposta.

Desliga o vídeo e xinga, em voz alta.

Mãe, você devia ser mais participativa. Custava me agradecer, online, pelo carinho que tenho e como está feliz de ter uma filha como eu? Preciso mostrar como cumpro bem feito meu papel de filha de mãe idosa e doente. Tem um mundo de gente me seguindo.

Idosa estou, doente não. Da próxima vez direi que você é muito chata. De fato, você é uma grandíssima filha-da-mãe.

Se disser isso vai para o asilo.

 

III

O filme no TikTok dançando e cantando com a filha de dez anos viralizou. Um milhão de visualizações. Vários seguidores enviavam corações vermelhos e dedos polegares para cima.

ü  sua filha é uma gracinha;

ü  como vocês cantam bem;

ü  bom demais ver vocês cantando e dançando juntas, que harmonia;

ü  tal mãe, tal filha;

ü  da próxima vez cantem para mim a música (x).

— Filha, precisava cantar com a cara tão fechada?

— Você me obriga a dançar e eu detesto. Não quero mais fazer isso.

— Vai continuar, sim. Estou quase chegando a um milhão de seguidores.

— Não quero saber. Não filmo mais.

— Vai sim. Se não quiser, mando você morar com seu pai. Sabe bem que a nova mulher dele lhe detesta.

— Prefiro alguém que me detesta a alguém que finge que me ama.

 

IV

— Conta uma história para gente, moço!

— Era uma vez um catador de realidades. Ele tinha o hábito de pesquisar a história acontecida por trás das histórias contadas e recontá-las de outra maneira.

— Como é isso: catar realidades?

— É uma pesquisa muito séria. Científica. É para descobrir a realidade offline das histórias contadas online. As boas histórias online só sobrevivem se ela não se distanciar da história offline. Ou seja, se a vida offline for ótima também, a história contada será entendida e aprendida pelas pessoas. O que é preciso é um pouco mais de verdade. E é preciso coragem para mostrar verdades.

— Como atua o catador de realidades? Como ele descobre a realidade?

— Não é simples. Ele precisa entrar na tela e ficar online também, observar a notícia de dentro. Por exemplo, o casal do causo I mostrava sorrisos amarelos que não mudavam de uma cena para outra. Sinal claro de conversa fiada, ou melhor, de sorriso fiado. E não é difícil perceber a testa franzida da mãe idosa do causo II, nem a cara fechada da menina do causo III. Mas a gente só percebe com um olhar de ave de rapina.

— Olhar de ave de rapina? Como se consegue ter esse olhar?

— Precisa prestar atenção nos detalhes. Eles estão lá para serem vistos por aqueles observadores perspicazes. Na vida online, as pessoas costumam usar máscaras. E nenhuma máscara é para sempre. Na vida offline, as máscaras só atrapalham. Deixam o suor escorrer por baixo delas. Aí mora o detalhe. O detalhe mora no interior das histórias.

— Como assim? Por isso você conta histórias?

— Conto histórias para ressignificar minhas memórias. Para fazer minha vida offline ser bem importante e significativa para mim. As histórias são como minha vida online. Elas só terão importância se forem parecidas com minha vida offline.

— E aquela história de que “quem conta um conto aumenta um ponto”?

— É verdade, a gente sempre aumenta um ponto. Mas é só para dar uma graça diferente. Esse ponto a mais só tem sentido para melhorar o passado da gente. Assim, nosso presente melhora e, consequentemente, nosso futuro também. Isso é catar realidades. É melhorar nossas vidas para transformar as vidas dos outros.

— E como ser catador de realidades?

— Simples, basta recontar as histórias que ouve. E aumentar um ponto em seu reconto.

 

 

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