segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O “TERAPEUTA” LITERÁRIO: Um livreiro transformando vidas

 

Música “O Astronauta de Mármore”:

versão do grupo Nenhum de Nós de uma música de David Bowie (Star Man)[1].

 

“Eu não vendo livros:

eu narro histórias que transformam vidas”

(Caio Carvalho Cardoso)

 

Cidinha é uma jovem adolescente com duas características que a torna parte do mundo dos “diferentes” (como se os demais fossem iguais): é autista nível três e obesa. Só quem tem filhos “especiais”, como Caio, eu e muitos outros, sabemos o que isso significa. Com muito custo, o irmão de Cidinha conseguiu tirá-la de casa, montada em uma cadeira de rodas e a levou a uma livraria. Era sua última esperança para tirá-la da letargia em que vivia, totalmente sem motivação. Em menos de meia hora de conversa, em que Cidinha abriu o coração, o livreiro lhe apresentou uma saída. Disse-lhe:

— Já sei qual livro descreve sua vida. E lhe apresentou “Você é Insubstituível”, de Augusto Cury. Dois dias depois, Cidinha e seu irmão voltavam à livraria para comprar outros livros. Hoje ela é uma de suas maiores leitoras: entre dez e vinte livros todos os meses. São livros usados, a baixo custo e o livreiro terapeuta ainda faz uma jogada genial: ao devolver os livros comprados antes, você leva outros pela metade do preço de tabela.

Outros clientes especiais do livreiro são alguns moradores de rua localizados próximos à livraria. No caso deles, nenhuma cobrança é feita. Eles pegam um livro, levam para leitura e, dias depois, um outro ao devolverem os de antes.

Que capacidade é esta que tem o livreiro, Caio em especial, e que faz a sua livraria no centro da cidade de Belo Horizonte, um sebo em uma rua supermovimentada, com um abundante comércio de tudo, entre o Mercado Central e a Rodoviária, estar sempre repleta de clientes, leitores, escritores e pessoas à procura de uma palavra de alento, mesmo que uma palavra escrita?

Podemos denominar essa atividade de “livroterapia”? O livreiro não tem nenhuma formação em terapias, a não ser a experiência que ele adquire através das leituras e de sua experiência de vida, como é o caso do livreiro Caio. Além dele, conheço outros livreiros capazes de indicar um bom livro para o cliente baseado apenas na conversa que se desenrola em uma livraria. Mas existe uma atividade profissional denominada Biblioterapia[2], cujo objetivo é incentivar as pessoas a terem a leitura como hábito e mostrar que esta é uma ferramenta importante para auxiliar no desenvolvimento do autoconhecimento e da inteligência emocional. "A leitura é para a mente o que o exercício físico é para o corpo. Através de boas leituras, mantemos o cérebro funcionando e desta forma ajudamos a preservar seu bom funcionamento. O prazer de uma boa leitura vem do fato de que ler estimula a imaginação, a memória e o raciocínio, e isso é fundamental para a saúde mental".[3]

 

Eu, como leitor assíduo e escritor, tenho algumas coisas em comum com esse livreiro. Frequento um grupo de pessoas idosas que se reúnem para discutir sobre a vida e se divertir com ela. Uma vez por semana estamos lá, mediados por um gerontólogo especialista em respiração, meditação, eneagrama e logoterapia. Eu sempre levo para eles, quando solicitado, sessões de biblioterapia (fiz um curso online, mas conto com minha experiência com os livros) que se destina a aprender, através da leitura guiada, a lidar com as emoções.

— Caio, em que momento você acreditou que poderia ajudar as outras pessoas através dos livros?

— É uma longa história, mas foi no momento em que assumi a livraria, pois naquela mesma ocasião minha esposa estava doente e lutava para sobreviver e eu comecei a lutar com ela. Insisti para que ela lesse, pois ficava muito tempo na cama e, para nossa surpresa, a leitura a ajudou muito e ela conseguiu se levantar. Ela se tornou leitora. Tinha pouco tempo de vida, estimativa dos médicos, mas sobreviveu ainda alguns anos mais. A fé que ela passou a ter de que poderia se curar a fez lutar pela vida. O problema dela era muito grave, mas a partir daí eu percebi que poderia ajudar as pessoas através da leitura. Tenho muitos casos de relatos de melhorias, feitos por clientes meus, e eles se tornam clientes eternos. Sempre que terminam uma leitura voltam à livraria para comprar outro livro.

— Que experiência anterior você tinha sobre isso?

— Minha experiência de vida é uma experiência de dor e de violência. É uma longa história. Irei contá-la como uma história infanto-juvenil.

Era uma vez uma criança infeliz. E por que essa criança era infeliz? Ela vivia com uma família extremamente complicada. Sua mãe havia sido moradora de rua, em São Paulo, desde muito jovem. Vivia na miséria e imagine você como era (é) a vida de uma jovem de quatorze anos, na rua, vivendo do que ganhava e do que sobrava. Ela bem que tentou ter uma vida melhor, mas o álcool, cigarro e drogas eram companheiras inseparáveis. O pai, que também bebia, fez muito esforço para que melhorassem de vida: não conseguiu. Obviamente. A vida dessa criança era afeita a toda sorte de violência e sofrimento. Além disso, seu tio doente mental tentou matá-lo ainda muito criança. Ademais, um acidente de bicicleta o deixou quase paralítico. Durante mais de um mês ficou na cama, com o rosto deformado, o corpo machucado, sendo motivo tanto de riso de uns, como de pena de outros.

Claro que era um péssimo aluno na escola, com grande dificuldade de aprendizagem. E, para completar, perde o pai, seu único refúgio na vida. Mas, se você acredita que tudo isso fez dele um fracassado se engana. Começou a trabalhar de vendedor de poesia nos ônibus de transporte coletivo em Belo Horizonte e região metropolitana. A Poesia o transformou e ele se tornou o melhor vendedor de poesia que a cidade já viu. Ele conseguia emocionar os passageiros que compravam o cartão com o poema por um preço muito maior que o marcado. A poesia mudou a vida daquele menino. Começou a ler, ler e ler tudo que aparecia em sua frente. Os primeiros resultados apareceram na escola. Passou de péssimo aluno a o melhor da escola, o querido dos professores e colegas.

O melhor você nem sabe. Conseguiu um emprego em uma livraria e se tornou livreiro e a saga começou. Como se deu conta que os livros contribuíram para seu equilíbrio emocional, começou a usar os livros e suas histórias para ajudar as pessoas desencontradas a acharem seus lugares no mundo. De patinho feio a cisne negro.[4]

 

— Bela história, meu amigo. Qual foi o livro que leu e lhe fez acreditar que uma virada de vida era possível?

— Foi o livro “O Maior Vendedor do Mundo”. De Og Mandino. Acreditei que poderia ser esse vendedor.

Mude de perspectiva quando as coisas parecem dar erradas.

Se precisar mude também de trajetória.

(Paulo C S Ventura)[5]

 

No meio do caminho havia um livro. Tropeçar no livro o fez mudar de trajetória.

— E por que veio parar em Nova Lima?

— Foi em um domingo de carnaval. Vim a convite de uma jovem em quem estava interessado, mas não a encontrei. Encontrei uma outra que, por acaso, olhava para mim. Perguntei seu nome: — Dulcineia, e o seu? — Muito prazer. Don Quixote. Ela não entendeu a brincadeira, mas ali começou uma de minhas muitas mudanças de trajetória.

Caio aterrissou em Nova Lima para deixar de brigar com moinhos de vento, um Don Quixote ao inverso. Precisava aterrissar e fugir de sua família totalmente desagregária. Foi morar na casa da família da Dulcineia. No entanto, a espada do destino ainda dançava próximo a sua cabeça. Em uma noite de chuva a casa caiu. Literalmente. Em cima dele. Saiu ileso dos escombros, o que significa que mais uma vez conseguiu se desvencilhar da espada do destino. Mais uma vez, sobreviveu.

Entre livros e acidentes, o livreiro venceu. Casou-se, construiu sua casa no bairro Galo. O Don Quixote conseguiu enganar Cervantes e foi viver com sua Dulcineia. Felizes para sempre? As histórias reais nem sempre terminam assim, nem tudo são contos de fada. O dedo mórbido de Cervantes (será que era ele mesmo?) se intrometeu na história e Dulcineia se foi, mas não sem fazer a leitura do “Don Quixote de La Mancha”. Leitura inacabada, segundo o Caio, não terminou de ler o volume dois. Essa parte da história deixaremos para o próprio Don Quixote contar, se quiser. Em outra narrativa, de própria boca ou, quem sabe, de próprio punho.

 

“Memórias não são inocentes:
mudam o mundo das coisas
e nos salvam das coisas do mundo.
Nossas memórias somos nós
nossas identidades
nosso registro de humanidade
sem números em documentos.
Assim, eu me recordo de mim
numa rajada de luar
num relâmpago de todos os ontens,
nos traçados dos amanhãs
nos círculos de muitos agoras,
nas espirais de todos os instantes
nas sinfonias de todos os tempos.

(Paulo C S Ventura)

 

Com a viagem ao Cosmos de Dulcineia, Caio teve que plantar suas estruturas em novo formato. A solidão existe, ouviram pessoas? Mas "a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós" (Lya Luft). Nosso livreiro se casou de novo e pode seguir uma trajetória mais amena (será?).

Eu o conheci em um Clube de Leitura. Era o lançamento de um livro de um autor nova-limense, um escritor autista. Claro, nós dois, pais de autistas, estávamos lá. Não sei exatamente o que nos conectou. Pais de autistas ou amantes dos livros? Ou os dois? Mais que amantes dos livros, usamos suas histórias para conectar pessoas e tocar o inconsciente delas de alguma forma. Um livreiro “terapeuta” e um mediador afetivo de leituras, juntos no mesmo espaço se esbarrariam de alguma forma. Sem trombadas: na verdade, no abraço. E a amizade floresceu. E parcerias nasceram. O livreiro vende alguns dos livros que edito e, juntos, montamos o Piquenique Literário em um parque da cidade de Nova Lima.

Aqui deixamos o passado para trás e vamos pensar no que fazemos no presente e em que projetar o futuro. Sim, somos hóspedes de um futuro que bate à nossa porta. Devemos construir uma memória rica, mas uma memória que nos convida a andar para a frente. Um passo atrás é possível, mas só para nos alavancar para o salto à frente. Melhor que aquelas aranhas dos ditados populares (nem sei se é verdade), um passo lento e seguro para trás para propulsionar, como motores turbo, nosso salto ao futuro.

Contamos histórias, de formas diferentes. Escrevo-as, e ele apresenta várias delas (minhas e de outros) a quem precisa se servir delas para transformar suas vidas em valores. Caio muda a vida de sua comunidade através dos livros, muitos deles doados aos meninos e jovens do Galo (um bairro de Nova Lima). A Caminhada Filosófica tem fila para receber livros em doação maior que a fila da pipoca. A roda de leitura arremata novos leitores que se tornam pessoas diferentes, porque os livros e a “educação mudam as pessoas e pessoas mudam o mundo” (Paulo Freire), que começa exatamente onde cada um está.  

Esse saber, não pode se esconder entre montanhas, mas ele pode se espalhar a partir desse vale, dessas matas atlânticas, subir serras e correr o mundo. É preciso e urgente acreditar nisso.

O Caio acredita nisso e, junto à esposa e ao filho, transforma leituras em luz que ilumina a mente das pessoas e ajuda a transformar a realidade de seus leitores.

 

“As coisas nascem primeiro

nas mentes das pessoas,
depois elas acontecem.

O que não existe como matéria e massa,
só existe nas mentes das pessoas.

A realidade, que pode ter massa, não existe.
Sua representação, que não tem massa,
sim, e está nas mentes de todas as pessoas.

A luz, que pode ser ou não ser matéria,
existe,
não só na mente das pessoas
e as ilumina.”

 (Paulo C S Ventura)

 

 



[2] https://bit.ly/4nMTvzj (visto em 15/10/2025).

[3] Adaptado da leitura de texto em https://bit.ly/494Zafu. (lido em 15/10/2025).

[4] Uma referência ao livro de Nassim Nicholas Taleb: “O Cisne Negro”. Segundo o autor, todos pensam que o cisne negro não existe até um dia encontrar um.

DO “CABECEIRAS” PARA O BRASIL Uma conversa com o nova-limense Geraldo Adão Santos

 

Música “Nova Lima – Rimas da Felicidade” - https://open.spotify.com/intl-pt/track/7oD8Okqv6VRWUHxIeA7Bpo?si=7371ad09f64c40df (música de Valéria Gurgel)

 

“Não há sujeito que não tenha na memória

uma dúzia de arcabouços magníficos”[1].

(Monteiro Lobato)

 

“Se é uma cidade, um município brasileiro, ali tem o SUS (Sistema Único de Saúde). Podemos discutir muitas coisas sobre o sistema, mas ele está lá”. Geraldo repete essa frase a todo momento e ela reflete sua crença no sistema de saúde, para o qual dedicou grande parte de sua vida.

A história que conto hoje é a história de um cidadão nova-limense, nascido no século passado, no ano de mil novecentos e quarenta e um, em plena segunda guerra mundial. Seus pais eram trabalhadores dos roçados na cidade de Moeda, às margens do Rio Paraopeba.

E quais fatos os trouxeram para a cidade de Nova Lima? Foram os tempos de escassez, o difícil e incerto trabalho na roça, a época do início das grandes migrações no Brasil e das grandes mudanças na economia, na tecnologia e em outros setores importantes. No entanto, o que mais pesou foi a morte dos dois primogênitos da família por causa da saúde frágil e escassez de recursos. Nova Lima, com a fama da riqueza e do trabalho farto em função da mineração Morro Velho, foi uma espécie de “paraíso à vista” para muitos trabalhadores sem formação profissional definida.

E aqui nasceu Geraldo, o personagem de quem ouso contar parte de sua história, a parte rica, a parte que recebe os aplausos e a admiração, a parte que faz a história de sua vida ser diferente, porque ele a tornou diferente. A parte que deixa um legado substancial para muitos. Aqui tem início, de fato, a narrativa que pretendo trazer a público, para que a cidade entenda o que podemos fazer quando trabalhamos com amor àquilo que fazemos.

“Para se viver

Um punhado completo,

Só nas instâncias.”[2]

(Paulo Cezar S. Ventura)

 

Geraldo e eu temos alguns pontos em comum em nossa trajetória como seres humanos neste planeta: crescemos no Bairro Cabeceiras em Nova Lima, jogamos e amamos futebol de salão e temos a cabeça grande. Essas circunstâncias nos ajudaram a moldar certas características que nos acompanham pela vida, desde muito cedo.

O bullying (o termo não era ainda usado em nossas infâncias e adolescências) mais ouvido por nós era: “você é feio, cabeçudo e mora longe”. No entanto, o fato de morar longe, jogar futebol de salão e ser cabeçudo nos ensinou: a caminhar até onde fosse necessário para obtermos o que queríamos; dar dribles rápidos, inesperados e desconcertantes para causar surpresa e admiração; usar a cabeça com um misto de inteligência e teimosia.

O Cabeceiras era, nos tempos em que por lá habitamos, um bairro que parecia distante do centro da cidade de Nova Lima, pelo fato de não haver, na época, meios de transporte coletivo até o centro. O deslocamento era sempre a pé. Não era tão densamente povoado como hoje. Quando passeio pelo bairro, quase nada me lembra daqueles momentos em que brincava, jogava bola no campo do Montanhês todas as tardes, adentrava a mata do Jambreiro como saci, ou curupira, e tomava banho nos córregos e na cachoeira lá do início do Rego dos Carrapatos. Até a curva da estrada do bairro que se chamava Três Coqueiros (eram três, estou certo) mudou de nome. Um dos coqueiros tombou de velho em uma tempestade e mudou o nome da região para Dois Coqueiros. Claro, estou falando de uma escala temporal de mais de cinquenta anos. A maioria das pessoas ali residentes é outra, muitos dos que ainda estão lá desde então não mais se lembram. 

Nossa diferença de idade (entre Geraldo e eu) é de doze anos. Quando cheguei ao Cabeceiras, aos meus cinco anos de idade, ele já havia se mudado. Conheci apenas alguns de seus irmãos. Partimos sempre pelos mesmos motivos: trabalho. Ele foi aos treze anos: eu, um pouco mais velho, aos dezoito anos. Mais velhos de uma quase infinidade de filhos, a saída honrosa era necessária para a criação dos outros irmãos. O presente que ganhamos de nossos pais, a certa altura da vida, foi exatamente o mesmo. Combinado entre eles? Ou um problema geracional?

O presente? Um “se vira, malandro – de hoje em diante você está por sua conta, pois atrás de você tem mais uma prole querendo comer e estudar”. A porta de saída da sala foi exatamente o portal para a nossa passagem a outro planeta: o planeta capital, a Belo Horizonte, com sua sedução, suas oportunidades e suas mazelas. A solidão poderia ser um caminho, mas optamos por agarrar as chances, ou seja: “agarrar o boi pelos chifres”, como dizemos aqui na cidade (ditado herdado dos moradores do campo).  

Em nossa juventude trabalhar com carteira assinada, mesmo sendo menor de idade, era normal e lícito. Aos quinze anos Geraldo teve seu primeiro e único emprego em toda a vida. Foi ser auxiliar administrativo em uma companhia de nome “Força e Luz”, modificado para “Cemig” anos depois. Eu, na mesma idade, também tive um trabalho de “carteira assinada” em uma agência bancária de Nova Lima.  

Nossa função, aquela do passado, tem hoje um nome anglicizado: o office boy, o faz tudo do setor, o que chega primeiro e sai depois, o que limpa as sujeiras alheias e aguenta todo tipo de sarcasmo, de gozação, de zueira (no linguajar dos jovens de hoje). Nosso caráter, construído inicialmente em nossos ambientes familiares, nos forjou no ferro fundido do trabalho juvenil, hoje proibido, felizmente.

“Não é o trabalho, mas o saber trabalhar,

que é o segredo do êxito”[3].

(Fernando Pessoa)

 

O trabalho nos ajuda a forjar nosso caráter, mas não nos define. O que nos define é nossa teimosia em aprender, é nossa vontade de crescer sempre, é o apoio de quem nos acompanha, é o gosto adquirido pelo fazer. Essa característica temos também em comum, mas a vivemos de forma diferente. Enquanto Geraldo trabalhou todo seu período profissional na mesma empresa, e residiu em apenas duas cidades em toda sua vida (Nova Lima e Belo Horizonte), eu corri mundo.

Aí reside algumas de nossas diferenças. Depois dos estudos ele ficou em Belo Horizonte, eu fui. Geraldo fez um curso técnico de Contabilidade e depois dois cursos superiores: Ciências Sociais, na UFMG, e Administração de Empresas, na UNA, e se dedicou ao trabalho empresarial. Eu fiz o curso de Física, na UFMG, e depois caí na estrada. Estudei mais também, em outras cidades, em outras demandas e me tornei professor. Antes de entrar no tema da crônica, de narrar os saberes desconhecidos de meus personagens reais, vale ressaltar outra semelhança entre nós dois. Nossos trabalhos nos conduziram a outras cidades, outros estados, outros brasis. Ele, de sua cidade fixa; eu, do lugar de onde estava naquele momento.

O objetivo deste relato é exatamente narrar o que Geraldo fez a partir de então e qual a importância desse trabalho e seu legado para a comunidade. Qual a sabedoria desenvolvida por ele e que o nova-limense ainda não sabe, mas deveria. Não apenas saber, mas também admirar, contar nas rodas de conversa sobre os “saberes escondidos entre montanhas”.

Apesar de estar sempre enraizado entre essas montanhas, nos caminhos entre Belo Horizonte e Nova Lima, Geraldo teve a chance de varrer o Brasil, de norte a sul, sempre por uma causa: a implantação do SUS país afora, logo depois de sua invenção constitucional. Como iniciou no trabalho muito cedo, com apenas quinze anos de idade, ele pode se aposentar ainda jovem, no ano de mil novecentos e noventa e dois, no ápice da regulamentação de pontos importantes da Constituição de mil novecentos e oitenta e oito.

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado com a Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), que detalhou sua organização, princípios e funcionamento. Antes disso, a saúde pública no Brasil era fragmentada e vinculada principalmente à previdência social (INAMPS e INPS, antecessores do INSS).

Foi nesse momento que recebeu uma espécie de “chamado”, desses que só pessoas muito especiais recebem: trabalhar por uma causa de importância capital. Durante seus anos maduros trabalhando na Cemig, Geraldo, sociólogo e administrador, teve a designação de trabalhar com os contratos de planos de saúde para funcionários da Cemig, espalhados pelo estado de Minas Gerais. Foi o aprendizado, tão grande que ele foi convidado por empresas de outros estados para fazer palestras explicativas do sistema, mesmo antes da chegada do SUS. Era o conhecimento claro, específico e oportuno sobre o tema que o Ministério da Saúde precisava.

— Vem, Geraldo, fazer parte do Conselho (Conselho Nacional de Saúde) representando os usuários.

Ele foi. Já fazia parte da diretoria da Associação dos Aposentados da Cemig (APEA) e representá-los era fácil. Eram os anos noventa do século passado e Geraldo começou sua maratona de viagens e palestras, sempre ajudando no entendimento das mudanças no sistema de saúde, agora universalizado. A conquista da população era grande. A partir de então, o tratamento de saúde era possível para todos, e gratuito.

Foi fácil? Lógico que não. Tratava-se de uma mudança de lógica, de uso de recursos públicos, de logística de gestão, pois precisava do entendimento, da disponibilização e do empenho de pessoas em níveis diferentes: federal, estadual e municipal. Ele conhecia os problemas. E foi cirúrgico ao escrever em um jornal da cidade de Nova Lima:

 

“O problema da saúde, por todos conhecidos e vivenciados,

precisa ser priorizado e resolvido.

A solução definitiva para esse problema

só ocorrerá através da reforma tributária... “[4]

(Geraldo Adão Santos)

 

Mas a reforma tributária não veio. Ou melhor, uma reforma tributária foi feita recentemente, mas um arremedo do que deveria ser. E os problemas continuam.

Não podemos negar que houveram grandes avanços no sistema de saúde e previdenciário brasileiro, o que Geraldo confirma com grande entusiasmo. Até os anos 1980, a assistência à saúde estava ligada ao sistema previdenciário: só tinha direito a atendimento quem contribuía para o INPS/INAMPS (atuais INSS). A Constituição de 1988 rompeu com esse modelo: a saúde deixou de ser um direito apenas de quem contribuía e passou a ser direito de todos e dever do Estado. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) hoje administra benefícios previdenciários e assistenciais (aposentadorias, pensões, auxílios), não mais serviços de saúde. O SUS absorveu os hospitais e unidades que antes pertenciam ao INAMPS.

O financiamento do SUS é tripartite, ou seja, compartilhado entre a União (Governo Federal, principal fonte de recursos, arrecadados de impostos e contribuições sociais), os Estados (devem aplicar pelo menos 12% da receita própria em saúde) e os Municípios (devem aplicar pelo menos 15% da receita própria em saúde).

Outra deficiência anotada por Geraldo Adão foi a não remuneração justa a profissionais e entidades de prestação de serviços à saúde, um problema geral do país no que diz respeito à saúde e à educação, os principais bodes expiatórios das crises financeiras pelas quais o país passou.

“Tudo na vida

carece de, direito,

fazer acerto.”[5]

(Paulo C. S. Ventura)

 

Nessa lida, de membro do Conselho Nacional de Saúde viajando e tentando ensinar, Brasil afora, como o SUS deveria funcionar, vinte anos se passaram. Medalhas de honra ao mérito lhe foram entregues, homenagens foram feitas, diplomas lhe foram conferidos. Mas, hoje, o que Geraldo gosta mesmo é de ficar quieto em casa, tentando, a todo custo, manter vivas as memórias insistentes no propósito de se apagarem.

Outro legado do Geraldo é a criação da Associação Comunitária do Bairro Cabeceiras (ASCOBAC), lá onde ele e seus irmãos cresceram e alguns ainda vivem. Um local de encontro, de feiras, de eventos, de discussão sobre as problemáticas do bairro. O local da construção foi conquistado na boa conversa, no bom relacionamento. Um prefeito cedeu o terreno, outro ajudou na construção, e Geraldo completou a grana do próprio bolso.

 

“Fisicamente, habitamos um espaço,
mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.”[6]

(José Saramago)

 

Todas as quintas-feiras temos um encontro marcado, com nosso grupo de pessoas idosas, para trocar ideias e afetos, para cantar e dar um bom respiro no que a vida, grandiosa, nos oferece. E se quiserem ouvir uma boa prosa do Geraldo, perguntem-lhe sobre o SUS que ele terá um enorme prazer em contar.

Quanta sabedoria acumulada, sabedorias escondidas entre montanhas, nas proximidades do Parque Ecológico Municipal Rego dos Carrapatos.

“E você, velho(a) camarada,

o que lhe motiva a viver uma vida longa e rica?

Qual o seu projeto de vida?”[7]

(Paulo C. S. Ventura)

 


                                                                                                                                                           

                                                                                                                                                                                                                                                             

  

 

                                                             

 

O “TERAPEUTA” LITERÁRIO: Um livreiro transformando vidas

  Música “O Astronauta de Mármore”: versão do grupo Nenhum de Nós de uma música de David Bowie (Star Man) [1] .   “Eu não vendo li...