Música “Nova Lima – Rimas da Felicidade” - https://open.spotify.com/intl-pt/track/7oD8Okqv6VRWUHxIeA7Bpo?si=7371ad09f64c40df (música de Valéria Gurgel)
“Se é uma cidade, um município brasileiro, ali tem o SUS
(Sistema Único de Saúde). Podemos discutir muitas coisas sobre o sistema, mas
ele está lá”. Geraldo repete essa frase a todo momento e ela reflete sua crença
no sistema de saúde, para o qual dedicou grande parte de sua vida.
A história que conto hoje é a história de um cidadão
nova-limense, nascido no século passado, no ano de mil novecentos e quarenta e
um, em plena segunda guerra mundial. Seus pais eram trabalhadores dos roçados
na cidade de Moeda, às margens do Rio Paraopeba. 
E quais fatos os trouxeram para a cidade de Nova Lima? Foram
os tempos de escassez, o difícil e incerto trabalho na roça, a época do início
das grandes migrações no Brasil e das grandes mudanças na economia, na
tecnologia e em outros setores importantes. No entanto, o que mais pesou foi a
morte dos dois primogênitos da família por causa da saúde frágil e escassez de
recursos. Nova Lima, com a fama da riqueza e do trabalho farto em função da
mineração Morro Velho, foi uma espécie de “paraíso à vista” para muitos
trabalhadores sem formação profissional definida. 
E aqui nasceu Geraldo, o personagem de quem ouso contar
parte de sua história, a parte rica, a parte que recebe os aplausos e a
admiração, a parte que faz a história de sua vida ser diferente, porque ele a
tornou diferente. A parte que deixa um legado substancial para muitos. Aqui tem
início, de fato, a narrativa que pretendo trazer a público, para que a cidade
entenda o que podemos fazer quando trabalhamos com amor àquilo que fazemos.
Geraldo e eu temos alguns pontos em comum em nossa
trajetória como seres humanos neste planeta: crescemos no Bairro Cabeceiras em
Nova Lima, jogamos e amamos futebol de salão e temos a cabeça grande. Essas
circunstâncias nos ajudaram a moldar certas características que nos acompanham
pela vida, desde muito cedo. 
O bullying (o termo não era ainda usado em nossas infâncias
e adolescências) mais ouvido por nós era: “você é feio, cabeçudo e mora longe”.
No entanto, o fato de morar longe, jogar futebol de salão e ser cabeçudo nos
ensinou: a caminhar até onde fosse necessário para obtermos o que queríamos;
dar dribles rápidos, inesperados e desconcertantes para causar surpresa e
admiração; usar a cabeça com um misto de inteligência e teimosia.
O Cabeceiras era, nos tempos em que por lá habitamos, um
bairro que parecia distante do centro da cidade de Nova Lima, pelo fato de não
haver, na época, meios de transporte coletivo até o centro. O deslocamento era
sempre a pé. Não era tão densamente povoado como hoje. Quando passeio pelo
bairro, quase nada me lembra daqueles momentos em que brincava, jogava bola no
campo do Montanhês todas as tardes, adentrava a mata do Jambreiro como saci, ou
curupira, e tomava banho nos córregos e na cachoeira lá do início do Rego dos
Carrapatos. Até a curva da estrada do bairro que se chamava Três Coqueiros
(eram três, estou certo) mudou de nome. Um dos coqueiros tombou de velho em uma
tempestade e mudou o nome da região para Dois Coqueiros. Claro, estou falando
de uma escala temporal de mais de cinquenta anos. A maioria das pessoas ali
residentes é outra, muitos dos que ainda estão lá desde então não mais se
lembram.  
Nossa diferença de idade (entre Geraldo e eu) é de doze
anos. Quando cheguei ao Cabeceiras, aos meus cinco anos de idade, ele já havia
se mudado. Conheci apenas alguns de seus irmãos. Partimos sempre pelos mesmos
motivos: trabalho. Ele foi aos treze anos: eu, um pouco mais velho, aos dezoito
anos. Mais velhos de uma quase infinidade de filhos, a saída honrosa era
necessária para a criação dos outros irmãos. O presente que ganhamos de nossos
pais, a certa altura da vida, foi exatamente o mesmo. Combinado entre eles? Ou
um problema geracional? 
O presente? Um “se vira, malandro – de hoje em diante
você está por sua conta, pois atrás de você tem mais uma prole querendo comer e
estudar”. A porta de saída da sala foi exatamente o portal para a nossa
passagem a outro planeta: o planeta capital, a Belo Horizonte, com sua sedução,
suas oportunidades e suas mazelas. A solidão poderia ser um caminho, mas
optamos por agarrar as chances, ou seja: “agarrar o boi pelos chifres”, como
dizemos aqui na cidade (ditado herdado dos moradores do campo).  
Em nossa juventude trabalhar com carteira assinada, mesmo
sendo menor de idade, era normal e lícito. Aos quinze anos Geraldo teve seu
primeiro e único emprego em toda a vida. Foi ser auxiliar administrativo em uma
companhia de nome “Força e Luz”, modificado para “Cemig” anos depois. Eu, na
mesma idade, também tive um trabalho de “carteira assinada” em uma
agência bancária de Nova Lima.  
Nossa função, aquela do passado, tem hoje um nome
anglicizado: o office boy, o faz tudo do setor, o que chega primeiro
e sai depois, o que limpa as sujeiras alheias e aguenta todo tipo de sarcasmo,
de gozação, de zueira (no linguajar dos jovens de hoje). Nosso caráter,
construído inicialmente em nossos ambientes familiares, nos forjou no ferro
fundido do trabalho juvenil, hoje proibido, felizmente. 
O trabalho nos
ajuda a forjar nosso caráter, mas não nos define. O que nos define é nossa
teimosia em aprender, é nossa vontade de crescer sempre, é o apoio de quem nos
acompanha, é o gosto adquirido pelo fazer. Essa característica temos também em
comum, mas a vivemos de forma diferente. Enquanto Geraldo trabalhou todo seu
período profissional na mesma empresa, e residiu em apenas duas cidades em toda
sua vida (Nova Lima e Belo Horizonte), eu corri mundo. 
Aí reside algumas
de nossas diferenças. Depois dos estudos ele ficou em Belo Horizonte, eu fui.
Geraldo fez um curso técnico de Contabilidade e depois dois cursos superiores:
Ciências Sociais, na UFMG, e Administração de Empresas, na UNA, e se dedicou ao
trabalho empresarial. Eu fiz o curso de Física, na UFMG, e depois caí na
estrada. Estudei mais também, em outras cidades, em outras demandas e me tornei
professor. Antes de entrar no tema da crônica, de narrar os saberes
desconhecidos de meus personagens reais, vale ressaltar outra semelhança entre
nós dois. Nossos trabalhos nos conduziram a outras cidades, outros estados,
outros brasis. Ele, de sua cidade fixa; eu, do lugar de onde estava naquele
momento. 
O objetivo deste
relato é exatamente narrar o que Geraldo fez a partir de então e qual a
importância desse trabalho e seu legado para a comunidade. Qual a sabedoria
desenvolvida por ele e que o nova-limense ainda não sabe, mas deveria. Não
apenas saber, mas também admirar, contar nas rodas de conversa sobre os
“saberes escondidos entre montanhas”.
Apesar de estar
sempre enraizado entre essas montanhas, nos caminhos entre Belo Horizonte e
Nova Lima, Geraldo teve a chance de varrer o Brasil, de norte a sul, sempre por
uma causa: a implantação do SUS país afora, logo depois de sua invenção
constitucional. Como iniciou no trabalho muito cedo, com apenas quinze anos de
idade, ele pode se aposentar ainda jovem, no ano de mil novecentos e noventa e
dois, no ápice da regulamentação de pontos importantes da Constituição de mil
novecentos e oitenta e oito. 
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado com a Constituição Federal de
1988 e regulamentado pela Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), que
detalhou sua organização, princípios e funcionamento. Antes disso, a saúde
pública no Brasil era fragmentada e vinculada principalmente à previdência
social (INAMPS e INPS, antecessores do INSS).
Foi
nesse momento que recebeu uma espécie de “chamado”, desses que só pessoas muito
especiais recebem: trabalhar por uma causa de importância capital. Durante seus
anos maduros trabalhando na Cemig, Geraldo, sociólogo e administrador, teve a
designação de trabalhar com os contratos de planos de saúde para funcionários
da Cemig, espalhados pelo estado de Minas Gerais. Foi o aprendizado, tão grande
que ele foi convidado por empresas de outros estados para fazer palestras
explicativas do sistema, mesmo antes da chegada do SUS. Era o conhecimento
claro, específico e oportuno sobre o tema que o Ministério da Saúde precisava. 
—
Vem, Geraldo, fazer parte do Conselho (Conselho Nacional de Saúde)
representando os usuários.
Ele
foi. Já fazia parte da diretoria da Associação dos Aposentados da Cemig (APEA) e
representá-los era fácil. Eram os anos noventa do século passado e Geraldo
começou sua maratona de viagens e palestras, sempre ajudando no entendimento
das mudanças no sistema de saúde, agora universalizado. A conquista da
população era grande. A partir de então, o tratamento de saúde era possível
para todos, e gratuito. 
Foi
fácil? Lógico que não. Tratava-se de uma mudança de lógica, de uso de recursos
públicos, de logística de gestão, pois precisava do entendimento, da
disponibilização e do empenho de pessoas em níveis diferentes: federal,
estadual e municipal. Ele conhecia os problemas. E foi cirúrgico ao escrever em
um jornal da cidade de Nova Lima:
“O
problema da saúde, por todos conhecidos e vivenciados, 
precisa
ser priorizado e resolvido. 
A
solução definitiva para esse problema 
só
ocorrerá através da reforma tributária... “[4]
(Geraldo
Adão Santos)
Mas
a reforma tributária não veio. Ou melhor, uma reforma tributária foi feita
recentemente, mas um arremedo do que deveria ser. E os problemas continuam. 
Não podemos negar
que houveram grandes avanços no sistema de saúde e previdenciário brasileiro, o
que Geraldo confirma com grande entusiasmo. Até os anos 1980, a assistência à saúde estava ligada ao sistema
previdenciário: só tinha direito a atendimento quem contribuía para o
INPS/INAMPS (atuais INSS). A Constituição de 1988 rompeu com esse modelo: a
saúde deixou de ser um direito apenas de quem contribuía e passou a ser direito
de todos e dever do Estado. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) hoje
administra benefícios previdenciários e assistenciais (aposentadorias, pensões,
auxílios), não mais serviços de saúde. O SUS absorveu os hospitais e unidades
que antes pertenciam ao INAMPS. 
O financiamento do SUS é tripartite, ou seja, compartilhado
entre a União (Governo Federal, principal
fonte de recursos, arrecadados de impostos e contribuições sociais), os Estados
(devem aplicar pelo menos 12% da receita própria em saúde) e os Municípios (devem
aplicar pelo menos 15% da receita própria em saúde).
Outra
deficiência anotada por Geraldo Adão foi a não remuneração justa a
profissionais e entidades de prestação de serviços à saúde, um problema geral
do país no que diz respeito à saúde e à educação, os principais bodes
expiatórios das crises financeiras pelas quais o país passou. 
Nessa lida, de membro do Conselho Nacional de Saúde viajando
e tentando ensinar, Brasil afora, como o SUS deveria funcionar, vinte anos se
passaram. Medalhas de honra ao mérito lhe foram entregues, homenagens foram
feitas, diplomas lhe foram conferidos. Mas, hoje, o que Geraldo gosta mesmo é
de ficar quieto em casa, tentando, a todo custo, manter vivas as memórias
insistentes no propósito de se apagarem. 
Outro legado do Geraldo é a criação da Associação
Comunitária do Bairro Cabeceiras (ASCOBAC), lá onde ele e seus irmãos cresceram
e alguns ainda vivem. Um local de encontro, de feiras, de eventos, de discussão
sobre as problemáticas do bairro. O local da construção foi conquistado na boa
conversa, no bom relacionamento. Um prefeito cedeu o terreno, outro ajudou na
construção, e Geraldo completou a grana do próprio bolso. 
“Fisicamente, habitamos um
espaço,
mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.”[6]
(José Saramago)
Todas as quintas-feiras temos um encontro marcado, com nosso
grupo de pessoas idosas, para trocar ideias e afetos, para cantar e dar um bom
respiro no que a vida, grandiosa, nos oferece. E se quiserem ouvir uma boa
prosa do Geraldo, perguntem-lhe sobre o SUS que ele terá um enorme prazer em
contar. 
Quanta sabedoria acumulada, sabedorias escondidas entre
montanhas, nas proximidades do Parque Ecológico Municipal Rego dos Carrapatos. 
“E você,
velho(a) camarada,
o que lhe
motiva a viver uma vida longa e rica?
Qual o seu
projeto de vida?”[7] 
(Paulo C. S.
Ventura)
   
                                                                                                                                                                                                                                                             
 
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