segunda-feira, 3 de novembro de 2025

DO “CABECEIRAS” PARA O BRASIL Uma conversa com o nova-limense Geraldo Adão Santos

 

Música “Nova Lima – Rimas da Felicidade” - https://open.spotify.com/intl-pt/track/7oD8Okqv6VRWUHxIeA7Bpo?si=7371ad09f64c40df (música de Valéria Gurgel)

 

“Não há sujeito que não tenha na memória

uma dúzia de arcabouços magníficos”[1].

(Monteiro Lobato)

 

“Se é uma cidade, um município brasileiro, ali tem o SUS (Sistema Único de Saúde). Podemos discutir muitas coisas sobre o sistema, mas ele está lá”. Geraldo repete essa frase a todo momento e ela reflete sua crença no sistema de saúde, para o qual dedicou grande parte de sua vida.

A história que conto hoje é a história de um cidadão nova-limense, nascido no século passado, no ano de mil novecentos e quarenta e um, em plena segunda guerra mundial. Seus pais eram trabalhadores dos roçados na cidade de Moeda, às margens do Rio Paraopeba.

E quais fatos os trouxeram para a cidade de Nova Lima? Foram os tempos de escassez, o difícil e incerto trabalho na roça, a época do início das grandes migrações no Brasil e das grandes mudanças na economia, na tecnologia e em outros setores importantes. No entanto, o que mais pesou foi a morte dos dois primogênitos da família por causa da saúde frágil e escassez de recursos. Nova Lima, com a fama da riqueza e do trabalho farto em função da mineração Morro Velho, foi uma espécie de “paraíso à vista” para muitos trabalhadores sem formação profissional definida.

E aqui nasceu Geraldo, o personagem de quem ouso contar parte de sua história, a parte rica, a parte que recebe os aplausos e a admiração, a parte que faz a história de sua vida ser diferente, porque ele a tornou diferente. A parte que deixa um legado substancial para muitos. Aqui tem início, de fato, a narrativa que pretendo trazer a público, para que a cidade entenda o que podemos fazer quando trabalhamos com amor àquilo que fazemos.

“Para se viver

Um punhado completo,

Só nas instâncias.”[2]

(Paulo Cezar S. Ventura)

 

Geraldo e eu temos alguns pontos em comum em nossa trajetória como seres humanos neste planeta: crescemos no Bairro Cabeceiras em Nova Lima, jogamos e amamos futebol de salão e temos a cabeça grande. Essas circunstâncias nos ajudaram a moldar certas características que nos acompanham pela vida, desde muito cedo.

O bullying (o termo não era ainda usado em nossas infâncias e adolescências) mais ouvido por nós era: “você é feio, cabeçudo e mora longe”. No entanto, o fato de morar longe, jogar futebol de salão e ser cabeçudo nos ensinou: a caminhar até onde fosse necessário para obtermos o que queríamos; dar dribles rápidos, inesperados e desconcertantes para causar surpresa e admiração; usar a cabeça com um misto de inteligência e teimosia.

O Cabeceiras era, nos tempos em que por lá habitamos, um bairro que parecia distante do centro da cidade de Nova Lima, pelo fato de não haver, na época, meios de transporte coletivo até o centro. O deslocamento era sempre a pé. Não era tão densamente povoado como hoje. Quando passeio pelo bairro, quase nada me lembra daqueles momentos em que brincava, jogava bola no campo do Montanhês todas as tardes, adentrava a mata do Jambreiro como saci, ou curupira, e tomava banho nos córregos e na cachoeira lá do início do Rego dos Carrapatos. Até a curva da estrada do bairro que se chamava Três Coqueiros (eram três, estou certo) mudou de nome. Um dos coqueiros tombou de velho em uma tempestade e mudou o nome da região para Dois Coqueiros. Claro, estou falando de uma escala temporal de mais de cinquenta anos. A maioria das pessoas ali residentes é outra, muitos dos que ainda estão lá desde então não mais se lembram. 

Nossa diferença de idade (entre Geraldo e eu) é de doze anos. Quando cheguei ao Cabeceiras, aos meus cinco anos de idade, ele já havia se mudado. Conheci apenas alguns de seus irmãos. Partimos sempre pelos mesmos motivos: trabalho. Ele foi aos treze anos: eu, um pouco mais velho, aos dezoito anos. Mais velhos de uma quase infinidade de filhos, a saída honrosa era necessária para a criação dos outros irmãos. O presente que ganhamos de nossos pais, a certa altura da vida, foi exatamente o mesmo. Combinado entre eles? Ou um problema geracional?

O presente? Um “se vira, malandro – de hoje em diante você está por sua conta, pois atrás de você tem mais uma prole querendo comer e estudar”. A porta de saída da sala foi exatamente o portal para a nossa passagem a outro planeta: o planeta capital, a Belo Horizonte, com sua sedução, suas oportunidades e suas mazelas. A solidão poderia ser um caminho, mas optamos por agarrar as chances, ou seja: “agarrar o boi pelos chifres”, como dizemos aqui na cidade (ditado herdado dos moradores do campo).  

Em nossa juventude trabalhar com carteira assinada, mesmo sendo menor de idade, era normal e lícito. Aos quinze anos Geraldo teve seu primeiro e único emprego em toda a vida. Foi ser auxiliar administrativo em uma companhia de nome “Força e Luz”, modificado para “Cemig” anos depois. Eu, na mesma idade, também tive um trabalho de “carteira assinada” em uma agência bancária de Nova Lima.  

Nossa função, aquela do passado, tem hoje um nome anglicizado: o office boy, o faz tudo do setor, o que chega primeiro e sai depois, o que limpa as sujeiras alheias e aguenta todo tipo de sarcasmo, de gozação, de zueira (no linguajar dos jovens de hoje). Nosso caráter, construído inicialmente em nossos ambientes familiares, nos forjou no ferro fundido do trabalho juvenil, hoje proibido, felizmente.

“Não é o trabalho, mas o saber trabalhar,

que é o segredo do êxito”[3].

(Fernando Pessoa)

 

O trabalho nos ajuda a forjar nosso caráter, mas não nos define. O que nos define é nossa teimosia em aprender, é nossa vontade de crescer sempre, é o apoio de quem nos acompanha, é o gosto adquirido pelo fazer. Essa característica temos também em comum, mas a vivemos de forma diferente. Enquanto Geraldo trabalhou todo seu período profissional na mesma empresa, e residiu em apenas duas cidades em toda sua vida (Nova Lima e Belo Horizonte), eu corri mundo.

Aí reside algumas de nossas diferenças. Depois dos estudos ele ficou em Belo Horizonte, eu fui. Geraldo fez um curso técnico de Contabilidade e depois dois cursos superiores: Ciências Sociais, na UFMG, e Administração de Empresas, na UNA, e se dedicou ao trabalho empresarial. Eu fiz o curso de Física, na UFMG, e depois caí na estrada. Estudei mais também, em outras cidades, em outras demandas e me tornei professor. Antes de entrar no tema da crônica, de narrar os saberes desconhecidos de meus personagens reais, vale ressaltar outra semelhança entre nós dois. Nossos trabalhos nos conduziram a outras cidades, outros estados, outros brasis. Ele, de sua cidade fixa; eu, do lugar de onde estava naquele momento.

O objetivo deste relato é exatamente narrar o que Geraldo fez a partir de então e qual a importância desse trabalho e seu legado para a comunidade. Qual a sabedoria desenvolvida por ele e que o nova-limense ainda não sabe, mas deveria. Não apenas saber, mas também admirar, contar nas rodas de conversa sobre os “saberes escondidos entre montanhas”.

Apesar de estar sempre enraizado entre essas montanhas, nos caminhos entre Belo Horizonte e Nova Lima, Geraldo teve a chance de varrer o Brasil, de norte a sul, sempre por uma causa: a implantação do SUS país afora, logo depois de sua invenção constitucional. Como iniciou no trabalho muito cedo, com apenas quinze anos de idade, ele pode se aposentar ainda jovem, no ano de mil novecentos e noventa e dois, no ápice da regulamentação de pontos importantes da Constituição de mil novecentos e oitenta e oito.

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado com a Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), que detalhou sua organização, princípios e funcionamento. Antes disso, a saúde pública no Brasil era fragmentada e vinculada principalmente à previdência social (INAMPS e INPS, antecessores do INSS).

Foi nesse momento que recebeu uma espécie de “chamado”, desses que só pessoas muito especiais recebem: trabalhar por uma causa de importância capital. Durante seus anos maduros trabalhando na Cemig, Geraldo, sociólogo e administrador, teve a designação de trabalhar com os contratos de planos de saúde para funcionários da Cemig, espalhados pelo estado de Minas Gerais. Foi o aprendizado, tão grande que ele foi convidado por empresas de outros estados para fazer palestras explicativas do sistema, mesmo antes da chegada do SUS. Era o conhecimento claro, específico e oportuno sobre o tema que o Ministério da Saúde precisava.

— Vem, Geraldo, fazer parte do Conselho (Conselho Nacional de Saúde) representando os usuários.

Ele foi. Já fazia parte da diretoria da Associação dos Aposentados da Cemig (APEA) e representá-los era fácil. Eram os anos noventa do século passado e Geraldo começou sua maratona de viagens e palestras, sempre ajudando no entendimento das mudanças no sistema de saúde, agora universalizado. A conquista da população era grande. A partir de então, o tratamento de saúde era possível para todos, e gratuito.

Foi fácil? Lógico que não. Tratava-se de uma mudança de lógica, de uso de recursos públicos, de logística de gestão, pois precisava do entendimento, da disponibilização e do empenho de pessoas em níveis diferentes: federal, estadual e municipal. Ele conhecia os problemas. E foi cirúrgico ao escrever em um jornal da cidade de Nova Lima:

 

“O problema da saúde, por todos conhecidos e vivenciados,

precisa ser priorizado e resolvido.

A solução definitiva para esse problema

só ocorrerá através da reforma tributária... “[4]

(Geraldo Adão Santos)

 

Mas a reforma tributária não veio. Ou melhor, uma reforma tributária foi feita recentemente, mas um arremedo do que deveria ser. E os problemas continuam.

Não podemos negar que houveram grandes avanços no sistema de saúde e previdenciário brasileiro, o que Geraldo confirma com grande entusiasmo. Até os anos 1980, a assistência à saúde estava ligada ao sistema previdenciário: só tinha direito a atendimento quem contribuía para o INPS/INAMPS (atuais INSS). A Constituição de 1988 rompeu com esse modelo: a saúde deixou de ser um direito apenas de quem contribuía e passou a ser direito de todos e dever do Estado. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) hoje administra benefícios previdenciários e assistenciais (aposentadorias, pensões, auxílios), não mais serviços de saúde. O SUS absorveu os hospitais e unidades que antes pertenciam ao INAMPS.

O financiamento do SUS é tripartite, ou seja, compartilhado entre a União (Governo Federal, principal fonte de recursos, arrecadados de impostos e contribuições sociais), os Estados (devem aplicar pelo menos 12% da receita própria em saúde) e os Municípios (devem aplicar pelo menos 15% da receita própria em saúde).

Outra deficiência anotada por Geraldo Adão foi a não remuneração justa a profissionais e entidades de prestação de serviços à saúde, um problema geral do país no que diz respeito à saúde e à educação, os principais bodes expiatórios das crises financeiras pelas quais o país passou.

“Tudo na vida

carece de, direito,

fazer acerto.”[5]

(Paulo C. S. Ventura)

 

Nessa lida, de membro do Conselho Nacional de Saúde viajando e tentando ensinar, Brasil afora, como o SUS deveria funcionar, vinte anos se passaram. Medalhas de honra ao mérito lhe foram entregues, homenagens foram feitas, diplomas lhe foram conferidos. Mas, hoje, o que Geraldo gosta mesmo é de ficar quieto em casa, tentando, a todo custo, manter vivas as memórias insistentes no propósito de se apagarem.

Outro legado do Geraldo é a criação da Associação Comunitária do Bairro Cabeceiras (ASCOBAC), lá onde ele e seus irmãos cresceram e alguns ainda vivem. Um local de encontro, de feiras, de eventos, de discussão sobre as problemáticas do bairro. O local da construção foi conquistado na boa conversa, no bom relacionamento. Um prefeito cedeu o terreno, outro ajudou na construção, e Geraldo completou a grana do próprio bolso.

 

“Fisicamente, habitamos um espaço,
mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.”[6]

(José Saramago)

 

Todas as quintas-feiras temos um encontro marcado, com nosso grupo de pessoas idosas, para trocar ideias e afetos, para cantar e dar um bom respiro no que a vida, grandiosa, nos oferece. E se quiserem ouvir uma boa prosa do Geraldo, perguntem-lhe sobre o SUS que ele terá um enorme prazer em contar.

Quanta sabedoria acumulada, sabedorias escondidas entre montanhas, nas proximidades do Parque Ecológico Municipal Rego dos Carrapatos.

“E você, velho(a) camarada,

o que lhe motiva a viver uma vida longa e rica?

Qual o seu projeto de vida?”[7]

(Paulo C. S. Ventura)

 


                                                                                                                                                           

                                                                                                                                                                                                                                                             

  

 

                                                             

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O “TERAPEUTA” LITERÁRIO: Um livreiro transformando vidas

  Música “O Astronauta de Mármore”: versão do grupo Nenhum de Nós de uma música de David Bowie (Star Man) [1] .   “Eu não vendo li...