quinta-feira, 6 de novembro de 2025

O PROCESSO DE ESCRITA DO LIVRO – (01) 0 COTIDIANO

Na reunião do grupo IncentivArte de 03/11 percebi minha falha em um quesito colocado pelo edital do programa, justamente o de tornar público, nos âmbitos do mesmo, o processo de criação. Como sou da área de Literatura, resolvi escrever sobre o meu processo em geral, com ênfase na escrita do livro produto deste programa.

Serei, portanto um pouco mais amplo que contar a escrita do livro em si, mas de como eu crio, desde que decidi me dedicar a este ofício. A ideia aqui não é contar do passado, mas dos meus dias de hoje como escritor. Serei suscinto, no entanto.

Eu não tenho uma rotina de escrita, do tipo faço sempre tudo igual. Na verdade, faço sempre tudo diferente, meus dias nunca são iguais. Mas eu tenho uma série de ações que são inerentes às atividades do escritor, que se somam aos meus outros papéis sociais, que são: marido de uma companheira também escritora, e também musicista, compositora, professora de violão, cantora de coral, membro de uma bada de choro e outra de cordas e mãe de uma dentista cantora; pai de alguns filhos e filhas; avô de alguns netos e netas, irmão de muitos; filho de uma mulher quase centenária. Faltou a tutoria de três cães e quatro gatos. Impossível definir horas de fazer as coisas.

Mesmo assim, há coisas que faço todos os dias, mesmo em horários variados, pois são necessárias e inerentes ao processo criativo: atividade física (uma caminhada mais uma série de ginásticas), é necessária para colocar o corpo em movimento e me sentir em forma; respiração controlada e meditação, para manter o equilíbrio emocional e a saúde em pauta; um banho frio (ou melhor, dois ou três por dia) sempre ajuda a me manter animado; muita leitura, pelo menos umas cinquenta páginas por dia; audição de música variada, para meu deleite e também para coparticipar do processo criativo de minha companheira; alimentação bem balanceada, pois preciso de mais proteínas e menos carboidratos: e, claro, escrever todos os dias quantas páginas eu der conta.

Como a minha proposta é a escrita de crônicas contando as histórias de pessoas, preciso de tempo para muita conversa. Isso eu adoro fazer, conversar. E ler autores especialistas em crônicas. Tenho, portanto, me dedicado especialmente à leitura de alguns especialistas no ramo: Fernando Sabino, Luís Eduardo de Carvalho, Leandro Bertoldo, Humberto Gessinger, Lya Luft, Oswaldo França Júnior, Evaldo Balbino, entre tantos outros. Mas quem mais influencia minha escrita, hoje, é uma contista excepcional, totalmente desconhecida, porque seu primeiro livro será publicado agora, quando ela chega aos noventa e três anos, e tenho a sorte de ser seu primeiro leitor, o cara que revisa seus textos. Seu nome: Maria de Lourdes Guanabarino de Souza e Mello, ou simplesmente Maria Simello. Vocês terão notícias dela.

Não posso deixar de registrar quem são os autores que mais influenciaram minha escrita ao longo da vida. Eles moldaram minha forma de escrever e devo a eles o fato de acreditar que posso vir a ser como eles. Vir a ser porque me considero um escritor em formação. Sempre escrevi, mas só levei a sério a escrita como um ato de fazer, após meus sessenta anos.

Estou certo que não darei todos os nomes, por esquecimento e também porque muitos foram importantes em determinadas fases em minha vida. Cito alguns, brasileiros e brasileiras. Posteriormente citarei alguns estrangeiros. Ana Cristina César, Mário Faustino, Tiago de Melo, Machado de Assis, Oswald de Andrade, Rachel de Queirós, Jorge Amado, Ruben Braga, Carlos Drumond de Andrade, Fernando Sabino, Afonso D’Ávila, Murilo Rubião, etc.

Antes de terminar não poderia deixar de citar a escrita de microcontos, como um ritual cotidiano. Faço parte de um grupo de Facebook que escreve microcontos todos os dias. A organizadora do grupo publica, todos os dias, uma palavra. Devemos escrever, então, um microconto de até trezentos caracteres, em que a palavra publicada apareça.

Como a palavra pode não me trazer inspiração de imediato, uso de uma estratégia para cumprir o estabelecido. Entro no site dicio.com.br e encontro outra palavra aleatória que lá aparece como palavra do dia. A vantagem do site é que ele já traz o significado da palavra. Assim, escrevo um microconto em que as duas palavras aparecem. E já tenho três livros de microcontos prontos para serem publicados.

Caras e caros, é assim que passo a maior parte dos meus dias, só para cumprir o papel, escolhido por mim, de escritor.

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O “TERAPEUTA” LITERÁRIO: Um livreiro transformando vidas

 

Música “O Astronauta de Mármore”:

versão do grupo Nenhum de Nós de uma música de David Bowie (Star Man)[1].

 

“Eu não vendo livros:

eu narro histórias que transformam vidas”

(Caio Carvalho Cardoso)

 

Cidinha é uma jovem adolescente com duas características que a torna parte do mundo dos “diferentes” (como se os demais fossem iguais): é autista nível três e obesa. Só quem tem filhos “especiais”, como Caio, eu e muitos outros, sabemos o que isso significa. Com muito custo, o irmão de Cidinha conseguiu tirá-la de casa, montada em uma cadeira de rodas e a levou a uma livraria. Era sua última esperança para tirá-la da letargia em que vivia, totalmente sem motivação. Em menos de meia hora de conversa, em que Cidinha abriu o coração, o livreiro lhe apresentou uma saída. Disse-lhe:

— Já sei qual livro descreve sua vida. E lhe apresentou “Você é Insubstituível”, de Augusto Cury. Dois dias depois, Cidinha e seu irmão voltavam à livraria para comprar outros livros. Hoje ela é uma de suas maiores leitoras: entre dez e vinte livros todos os meses. São livros usados, a baixo custo e o livreiro terapeuta ainda faz uma jogada genial: ao devolver os livros comprados antes, você leva outros pela metade do preço de tabela.

Outros clientes especiais do livreiro são alguns moradores de rua localizados próximos à livraria. No caso deles, nenhuma cobrança é feita. Eles pegam um livro, levam para leitura e, dias depois, um outro ao devolverem os de antes.

Que capacidade é esta que tem o livreiro, Caio em especial, e que faz a sua livraria no centro da cidade de Belo Horizonte, um sebo em uma rua supermovimentada, com um abundante comércio de tudo, entre o Mercado Central e a Rodoviária, estar sempre repleta de clientes, leitores, escritores e pessoas à procura de uma palavra de alento, mesmo que uma palavra escrita?

Podemos denominar essa atividade de “livroterapia”? O livreiro não tem nenhuma formação em terapias, a não ser a experiência que ele adquire através das leituras e de sua experiência de vida, como é o caso do livreiro Caio. Além dele, conheço outros livreiros capazes de indicar um bom livro para o cliente baseado apenas na conversa que se desenrola em uma livraria. Mas existe uma atividade profissional denominada Biblioterapia[2], cujo objetivo é incentivar as pessoas a terem a leitura como hábito e mostrar que esta é uma ferramenta importante para auxiliar no desenvolvimento do autoconhecimento e da inteligência emocional. "A leitura é para a mente o que o exercício físico é para o corpo. Através de boas leituras, mantemos o cérebro funcionando e desta forma ajudamos a preservar seu bom funcionamento. O prazer de uma boa leitura vem do fato de que ler estimula a imaginação, a memória e o raciocínio, e isso é fundamental para a saúde mental".[3]

 

Eu, como leitor assíduo e escritor, tenho algumas coisas em comum com esse livreiro. Frequento um grupo de pessoas idosas que se reúnem para discutir sobre a vida e se divertir com ela. Uma vez por semana estamos lá, mediados por um gerontólogo especialista em respiração, meditação, eneagrama e logoterapia. Eu sempre levo para eles, quando solicitado, sessões de biblioterapia (fiz um curso online, mas conto com minha experiência com os livros) que se destina a aprender, através da leitura guiada, a lidar com as emoções.

— Caio, em que momento você acreditou que poderia ajudar as outras pessoas através dos livros?

— É uma longa história, mas foi no momento em que assumi a livraria, pois naquela mesma ocasião minha esposa estava doente e lutava para sobreviver e eu comecei a lutar com ela. Insisti para que ela lesse, pois ficava muito tempo na cama e, para nossa surpresa, a leitura a ajudou muito e ela conseguiu se levantar. Ela se tornou leitora. Tinha pouco tempo de vida, estimativa dos médicos, mas sobreviveu ainda alguns anos mais. A fé que ela passou a ter de que poderia se curar a fez lutar pela vida. O problema dela era muito grave, mas a partir daí eu percebi que poderia ajudar as pessoas através da leitura. Tenho muitos casos de relatos de melhorias, feitos por clientes meus, e eles se tornam clientes eternos. Sempre que terminam uma leitura voltam à livraria para comprar outro livro.

— Que experiência anterior você tinha sobre isso?

— Minha experiência de vida é uma experiência de dor e de violência. É uma longa história. Irei contá-la como uma história infanto-juvenil.

Era uma vez uma criança infeliz. E por que essa criança era infeliz? Ela vivia com uma família extremamente complicada. Sua mãe havia sido moradora de rua, em São Paulo, desde muito jovem. Vivia na miséria e imagine você como era (é) a vida de uma jovem de quatorze anos, na rua, vivendo do que ganhava e do que sobrava. Ela bem que tentou ter uma vida melhor, mas o álcool, cigarro e drogas eram companheiras inseparáveis. O pai, que também bebia, fez muito esforço para que melhorassem de vida: não conseguiu. Obviamente. A vida dessa criança era afeita a toda sorte de violência e sofrimento. Além disso, seu tio doente mental tentou matá-lo ainda muito criança. Ademais, um acidente de bicicleta o deixou quase paralítico. Durante mais de um mês ficou na cama, com o rosto deformado, o corpo machucado, sendo motivo tanto de riso de uns, como de pena de outros.

Claro que era um péssimo aluno na escola, com grande dificuldade de aprendizagem. E, para completar, perde o pai, seu único refúgio na vida. Mas, se você acredita que tudo isso fez dele um fracassado se engana. Começou a trabalhar de vendedor de poesia nos ônibus de transporte coletivo em Belo Horizonte e região metropolitana. A Poesia o transformou e ele se tornou o melhor vendedor de poesia que a cidade já viu. Ele conseguia emocionar os passageiros que compravam o cartão com o poema por um preço muito maior que o marcado. A poesia mudou a vida daquele menino. Começou a ler, ler e ler tudo que aparecia em sua frente. Os primeiros resultados apareceram na escola. Passou de péssimo aluno a o melhor da escola, o querido dos professores e colegas.

O melhor você nem sabe. Conseguiu um emprego em uma livraria e se tornou livreiro e a saga começou. Como se deu conta que os livros contribuíram para seu equilíbrio emocional, começou a usar os livros e suas histórias para ajudar as pessoas desencontradas a acharem seus lugares no mundo. De patinho feio a cisne negro.[4]

 

— Bela história, meu amigo. Qual foi o livro que leu e lhe fez acreditar que uma virada de vida era possível?

— Foi o livro “O Maior Vendedor do Mundo”. De Og Mandino. Acreditei que poderia ser esse vendedor.

Mude de perspectiva quando as coisas parecem dar erradas.

Se precisar mude também de trajetória.

(Paulo C S Ventura)[5]

 

No meio do caminho havia um livro. Tropeçar no livro o fez mudar de trajetória.

— E por que veio parar em Nova Lima?

— Foi em um domingo de carnaval. Vim a convite de uma jovem em quem estava interessado, mas não a encontrei. Encontrei uma outra que, por acaso, olhava para mim. Perguntei seu nome: — Dulcineia, e o seu? — Muito prazer. Don Quixote. Ela não entendeu a brincadeira, mas ali começou uma de minhas muitas mudanças de trajetória.

Caio aterrissou em Nova Lima para deixar de brigar com moinhos de vento, um Don Quixote ao inverso. Precisava aterrissar e fugir de sua família totalmente desagregária. Foi morar na casa da família da Dulcineia. No entanto, a espada do destino ainda dançava próximo a sua cabeça. Em uma noite de chuva a casa caiu. Literalmente. Em cima dele. Saiu ileso dos escombros, o que significa que mais uma vez conseguiu se desvencilhar da espada do destino. Mais uma vez, sobreviveu.

Entre livros e acidentes, o livreiro venceu. Casou-se, construiu sua casa no bairro Galo. O Don Quixote conseguiu enganar Cervantes e foi viver com sua Dulcineia. Felizes para sempre? As histórias reais nem sempre terminam assim, nem tudo são contos de fada. O dedo mórbido de Cervantes (será que era ele mesmo?) se intrometeu na história e Dulcineia se foi, mas não sem fazer a leitura do “Don Quixote de La Mancha”. Leitura inacabada, segundo o Caio, não terminou de ler o volume dois. Essa parte da história deixaremos para o próprio Don Quixote contar, se quiser. Em outra narrativa, de própria boca ou, quem sabe, de próprio punho.

 

“Memórias não são inocentes:
mudam o mundo das coisas
e nos salvam das coisas do mundo.
Nossas memórias somos nós
nossas identidades
nosso registro de humanidade
sem números em documentos.
Assim, eu me recordo de mim
numa rajada de luar
num relâmpago de todos os ontens,
nos traçados dos amanhãs
nos círculos de muitos agoras,
nas espirais de todos os instantes
nas sinfonias de todos os tempos.

(Paulo C S Ventura)

 

Com a viagem ao Cosmos de Dulcineia, Caio teve que plantar suas estruturas em novo formato. A solidão existe, ouviram pessoas? Mas "a solidão é um campo demasiado vasto para ser atravessado a sós" (Lya Luft). Nosso livreiro se casou de novo e pode seguir uma trajetória mais amena (será?).

Eu o conheci em um Clube de Leitura. Era o lançamento de um livro de um autor nova-limense, um escritor autista. Claro, nós dois, pais de autistas, estávamos lá. Não sei exatamente o que nos conectou. Pais de autistas ou amantes dos livros? Ou os dois? Mais que amantes dos livros, usamos suas histórias para conectar pessoas e tocar o inconsciente delas de alguma forma. Um livreiro “terapeuta” e um mediador afetivo de leituras, juntos no mesmo espaço se esbarrariam de alguma forma. Sem trombadas: na verdade, no abraço. E a amizade floresceu. E parcerias nasceram. O livreiro vende alguns dos livros que edito e, juntos, montamos o Piquenique Literário em um parque da cidade de Nova Lima.

Aqui deixamos o passado para trás e vamos pensar no que fazemos no presente e em que projetar o futuro. Sim, somos hóspedes de um futuro que bate à nossa porta. Devemos construir uma memória rica, mas uma memória que nos convida a andar para a frente. Um passo atrás é possível, mas só para nos alavancar para o salto à frente. Melhor que aquelas aranhas dos ditados populares (nem sei se é verdade), um passo lento e seguro para trás para propulsionar, como motores turbo, nosso salto ao futuro.

Contamos histórias, de formas diferentes. Escrevo-as, e ele apresenta várias delas (minhas e de outros) a quem precisa se servir delas para transformar suas vidas em valores. Caio muda a vida de sua comunidade através dos livros, muitos deles doados aos meninos e jovens do Galo (um bairro de Nova Lima). A Caminhada Filosófica tem fila para receber livros em doação maior que a fila da pipoca. A roda de leitura arremata novos leitores que se tornam pessoas diferentes, porque os livros e a “educação mudam as pessoas e pessoas mudam o mundo” (Paulo Freire), que começa exatamente onde cada um está.  

Esse saber, não pode se esconder entre montanhas, mas ele pode se espalhar a partir desse vale, dessas matas atlânticas, subir serras e correr o mundo. É preciso e urgente acreditar nisso.

O Caio acredita nisso e, junto à esposa e ao filho, transforma leituras em luz que ilumina a mente das pessoas e ajuda a transformar a realidade de seus leitores.

 

“As coisas nascem primeiro

nas mentes das pessoas,
depois elas acontecem.

O que não existe como matéria e massa,
só existe nas mentes das pessoas.

A realidade, que pode ter massa, não existe.
Sua representação, que não tem massa,
sim, e está nas mentes de todas as pessoas.

A luz, que pode ser ou não ser matéria,
existe,
não só na mente das pessoas
e as ilumina.”

 (Paulo C S Ventura)

 

 



[2] https://bit.ly/4nMTvzj (visto em 15/10/2025).

[3] Adaptado da leitura de texto em https://bit.ly/494Zafu. (lido em 15/10/2025).

[4] Uma referência ao livro de Nassim Nicholas Taleb: “O Cisne Negro”. Segundo o autor, todos pensam que o cisne negro não existe até um dia encontrar um.

DO “CABECEIRAS” PARA O BRASIL Uma conversa com o nova-limense Geraldo Adão Santos

 

Música “Nova Lima – Rimas da Felicidade” - https://open.spotify.com/intl-pt/track/7oD8Okqv6VRWUHxIeA7Bpo?si=7371ad09f64c40df (música de Valéria Gurgel)

 

“Não há sujeito que não tenha na memória

uma dúzia de arcabouços magníficos”[1].

(Monteiro Lobato)

 

“Se é uma cidade, um município brasileiro, ali tem o SUS (Sistema Único de Saúde). Podemos discutir muitas coisas sobre o sistema, mas ele está lá”. Geraldo repete essa frase a todo momento e ela reflete sua crença no sistema de saúde, para o qual dedicou grande parte de sua vida.

A história que conto hoje é a história de um cidadão nova-limense, nascido no século passado, no ano de mil novecentos e quarenta e um, em plena segunda guerra mundial. Seus pais eram trabalhadores dos roçados na cidade de Moeda, às margens do Rio Paraopeba.

E quais fatos os trouxeram para a cidade de Nova Lima? Foram os tempos de escassez, o difícil e incerto trabalho na roça, a época do início das grandes migrações no Brasil e das grandes mudanças na economia, na tecnologia e em outros setores importantes. No entanto, o que mais pesou foi a morte dos dois primogênitos da família por causa da saúde frágil e escassez de recursos. Nova Lima, com a fama da riqueza e do trabalho farto em função da mineração Morro Velho, foi uma espécie de “paraíso à vista” para muitos trabalhadores sem formação profissional definida.

E aqui nasceu Geraldo, o personagem de quem ouso contar parte de sua história, a parte rica, a parte que recebe os aplausos e a admiração, a parte que faz a história de sua vida ser diferente, porque ele a tornou diferente. A parte que deixa um legado substancial para muitos. Aqui tem início, de fato, a narrativa que pretendo trazer a público, para que a cidade entenda o que podemos fazer quando trabalhamos com amor àquilo que fazemos.

“Para se viver

Um punhado completo,

Só nas instâncias.”[2]

(Paulo Cezar S. Ventura)

 

Geraldo e eu temos alguns pontos em comum em nossa trajetória como seres humanos neste planeta: crescemos no Bairro Cabeceiras em Nova Lima, jogamos e amamos futebol de salão e temos a cabeça grande. Essas circunstâncias nos ajudaram a moldar certas características que nos acompanham pela vida, desde muito cedo.

O bullying (o termo não era ainda usado em nossas infâncias e adolescências) mais ouvido por nós era: “você é feio, cabeçudo e mora longe”. No entanto, o fato de morar longe, jogar futebol de salão e ser cabeçudo nos ensinou: a caminhar até onde fosse necessário para obtermos o que queríamos; dar dribles rápidos, inesperados e desconcertantes para causar surpresa e admiração; usar a cabeça com um misto de inteligência e teimosia.

O Cabeceiras era, nos tempos em que por lá habitamos, um bairro que parecia distante do centro da cidade de Nova Lima, pelo fato de não haver, na época, meios de transporte coletivo até o centro. O deslocamento era sempre a pé. Não era tão densamente povoado como hoje. Quando passeio pelo bairro, quase nada me lembra daqueles momentos em que brincava, jogava bola no campo do Montanhês todas as tardes, adentrava a mata do Jambreiro como saci, ou curupira, e tomava banho nos córregos e na cachoeira lá do início do Rego dos Carrapatos. Até a curva da estrada do bairro que se chamava Três Coqueiros (eram três, estou certo) mudou de nome. Um dos coqueiros tombou de velho em uma tempestade e mudou o nome da região para Dois Coqueiros. Claro, estou falando de uma escala temporal de mais de cinquenta anos. A maioria das pessoas ali residentes é outra, muitos dos que ainda estão lá desde então não mais se lembram. 

Nossa diferença de idade (entre Geraldo e eu) é de doze anos. Quando cheguei ao Cabeceiras, aos meus cinco anos de idade, ele já havia se mudado. Conheci apenas alguns de seus irmãos. Partimos sempre pelos mesmos motivos: trabalho. Ele foi aos treze anos: eu, um pouco mais velho, aos dezoito anos. Mais velhos de uma quase infinidade de filhos, a saída honrosa era necessária para a criação dos outros irmãos. O presente que ganhamos de nossos pais, a certa altura da vida, foi exatamente o mesmo. Combinado entre eles? Ou um problema geracional?

O presente? Um “se vira, malandro – de hoje em diante você está por sua conta, pois atrás de você tem mais uma prole querendo comer e estudar”. A porta de saída da sala foi exatamente o portal para a nossa passagem a outro planeta: o planeta capital, a Belo Horizonte, com sua sedução, suas oportunidades e suas mazelas. A solidão poderia ser um caminho, mas optamos por agarrar as chances, ou seja: “agarrar o boi pelos chifres”, como dizemos aqui na cidade (ditado herdado dos moradores do campo).  

Em nossa juventude trabalhar com carteira assinada, mesmo sendo menor de idade, era normal e lícito. Aos quinze anos Geraldo teve seu primeiro e único emprego em toda a vida. Foi ser auxiliar administrativo em uma companhia de nome “Força e Luz”, modificado para “Cemig” anos depois. Eu, na mesma idade, também tive um trabalho de “carteira assinada” em uma agência bancária de Nova Lima.  

Nossa função, aquela do passado, tem hoje um nome anglicizado: o office boy, o faz tudo do setor, o que chega primeiro e sai depois, o que limpa as sujeiras alheias e aguenta todo tipo de sarcasmo, de gozação, de zueira (no linguajar dos jovens de hoje). Nosso caráter, construído inicialmente em nossos ambientes familiares, nos forjou no ferro fundido do trabalho juvenil, hoje proibido, felizmente.

“Não é o trabalho, mas o saber trabalhar,

que é o segredo do êxito”[3].

(Fernando Pessoa)

 

O trabalho nos ajuda a forjar nosso caráter, mas não nos define. O que nos define é nossa teimosia em aprender, é nossa vontade de crescer sempre, é o apoio de quem nos acompanha, é o gosto adquirido pelo fazer. Essa característica temos também em comum, mas a vivemos de forma diferente. Enquanto Geraldo trabalhou todo seu período profissional na mesma empresa, e residiu em apenas duas cidades em toda sua vida (Nova Lima e Belo Horizonte), eu corri mundo.

Aí reside algumas de nossas diferenças. Depois dos estudos ele ficou em Belo Horizonte, eu fui. Geraldo fez um curso técnico de Contabilidade e depois dois cursos superiores: Ciências Sociais, na UFMG, e Administração de Empresas, na UNA, e se dedicou ao trabalho empresarial. Eu fiz o curso de Física, na UFMG, e depois caí na estrada. Estudei mais também, em outras cidades, em outras demandas e me tornei professor. Antes de entrar no tema da crônica, de narrar os saberes desconhecidos de meus personagens reais, vale ressaltar outra semelhança entre nós dois. Nossos trabalhos nos conduziram a outras cidades, outros estados, outros brasis. Ele, de sua cidade fixa; eu, do lugar de onde estava naquele momento.

O objetivo deste relato é exatamente narrar o que Geraldo fez a partir de então e qual a importância desse trabalho e seu legado para a comunidade. Qual a sabedoria desenvolvida por ele e que o nova-limense ainda não sabe, mas deveria. Não apenas saber, mas também admirar, contar nas rodas de conversa sobre os “saberes escondidos entre montanhas”.

Apesar de estar sempre enraizado entre essas montanhas, nos caminhos entre Belo Horizonte e Nova Lima, Geraldo teve a chance de varrer o Brasil, de norte a sul, sempre por uma causa: a implantação do SUS país afora, logo depois de sua invenção constitucional. Como iniciou no trabalho muito cedo, com apenas quinze anos de idade, ele pode se aposentar ainda jovem, no ano de mil novecentos e noventa e dois, no ápice da regulamentação de pontos importantes da Constituição de mil novecentos e oitenta e oito.

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado com a Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), que detalhou sua organização, princípios e funcionamento. Antes disso, a saúde pública no Brasil era fragmentada e vinculada principalmente à previdência social (INAMPS e INPS, antecessores do INSS).

Foi nesse momento que recebeu uma espécie de “chamado”, desses que só pessoas muito especiais recebem: trabalhar por uma causa de importância capital. Durante seus anos maduros trabalhando na Cemig, Geraldo, sociólogo e administrador, teve a designação de trabalhar com os contratos de planos de saúde para funcionários da Cemig, espalhados pelo estado de Minas Gerais. Foi o aprendizado, tão grande que ele foi convidado por empresas de outros estados para fazer palestras explicativas do sistema, mesmo antes da chegada do SUS. Era o conhecimento claro, específico e oportuno sobre o tema que o Ministério da Saúde precisava.

— Vem, Geraldo, fazer parte do Conselho (Conselho Nacional de Saúde) representando os usuários.

Ele foi. Já fazia parte da diretoria da Associação dos Aposentados da Cemig (APEA) e representá-los era fácil. Eram os anos noventa do século passado e Geraldo começou sua maratona de viagens e palestras, sempre ajudando no entendimento das mudanças no sistema de saúde, agora universalizado. A conquista da população era grande. A partir de então, o tratamento de saúde era possível para todos, e gratuito.

Foi fácil? Lógico que não. Tratava-se de uma mudança de lógica, de uso de recursos públicos, de logística de gestão, pois precisava do entendimento, da disponibilização e do empenho de pessoas em níveis diferentes: federal, estadual e municipal. Ele conhecia os problemas. E foi cirúrgico ao escrever em um jornal da cidade de Nova Lima:

 

“O problema da saúde, por todos conhecidos e vivenciados,

precisa ser priorizado e resolvido.

A solução definitiva para esse problema

só ocorrerá através da reforma tributária... “[4]

(Geraldo Adão Santos)

 

Mas a reforma tributária não veio. Ou melhor, uma reforma tributária foi feita recentemente, mas um arremedo do que deveria ser. E os problemas continuam.

Não podemos negar que houveram grandes avanços no sistema de saúde e previdenciário brasileiro, o que Geraldo confirma com grande entusiasmo. Até os anos 1980, a assistência à saúde estava ligada ao sistema previdenciário: só tinha direito a atendimento quem contribuía para o INPS/INAMPS (atuais INSS). A Constituição de 1988 rompeu com esse modelo: a saúde deixou de ser um direito apenas de quem contribuía e passou a ser direito de todos e dever do Estado. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) hoje administra benefícios previdenciários e assistenciais (aposentadorias, pensões, auxílios), não mais serviços de saúde. O SUS absorveu os hospitais e unidades que antes pertenciam ao INAMPS.

O financiamento do SUS é tripartite, ou seja, compartilhado entre a União (Governo Federal, principal fonte de recursos, arrecadados de impostos e contribuições sociais), os Estados (devem aplicar pelo menos 12% da receita própria em saúde) e os Municípios (devem aplicar pelo menos 15% da receita própria em saúde).

Outra deficiência anotada por Geraldo Adão foi a não remuneração justa a profissionais e entidades de prestação de serviços à saúde, um problema geral do país no que diz respeito à saúde e à educação, os principais bodes expiatórios das crises financeiras pelas quais o país passou.

“Tudo na vida

carece de, direito,

fazer acerto.”[5]

(Paulo C. S. Ventura)

 

Nessa lida, de membro do Conselho Nacional de Saúde viajando e tentando ensinar, Brasil afora, como o SUS deveria funcionar, vinte anos se passaram. Medalhas de honra ao mérito lhe foram entregues, homenagens foram feitas, diplomas lhe foram conferidos. Mas, hoje, o que Geraldo gosta mesmo é de ficar quieto em casa, tentando, a todo custo, manter vivas as memórias insistentes no propósito de se apagarem.

Outro legado do Geraldo é a criação da Associação Comunitária do Bairro Cabeceiras (ASCOBAC), lá onde ele e seus irmãos cresceram e alguns ainda vivem. Um local de encontro, de feiras, de eventos, de discussão sobre as problemáticas do bairro. O local da construção foi conquistado na boa conversa, no bom relacionamento. Um prefeito cedeu o terreno, outro ajudou na construção, e Geraldo completou a grana do próprio bolso.

 

“Fisicamente, habitamos um espaço,
mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória.”[6]

(José Saramago)

 

Todas as quintas-feiras temos um encontro marcado, com nosso grupo de pessoas idosas, para trocar ideias e afetos, para cantar e dar um bom respiro no que a vida, grandiosa, nos oferece. E se quiserem ouvir uma boa prosa do Geraldo, perguntem-lhe sobre o SUS que ele terá um enorme prazer em contar.

Quanta sabedoria acumulada, sabedorias escondidas entre montanhas, nas proximidades do Parque Ecológico Municipal Rego dos Carrapatos.

“E você, velho(a) camarada,

o que lhe motiva a viver uma vida longa e rica?

Qual o seu projeto de vida?”[7]

(Paulo C. S. Ventura)

 


                                                                                                                                                           

                                                                                                                                                                                                                                                             

  

 

                                                             

 

domingo, 20 de julho de 2025

O SILÊNCIO DAS PESSOAS IDOSAS

 


— Quantos anos eu tenho?

— Noventa e nove anos, mãe. Ano que vem será uma centenária.

— Nossa! Pra que viver tanto? Eu sempre fui tão ativa e hoje não dou conta de fazer mais nada.

— Tem problema não, mãe. Você já fez muito. Hoje tem muita gente que possa fazer por você. E ainda vai viver um tempo, você não tem nada! Mais forte que um carvalho velho!

— Pois é, quantas pessoas de minha idade têm a saúde que eu tenho?

O que é verdade. Seus indicadores de saúde são ótimos. Os medicamentos que toma são apenas dois: um contra a osteoporose pela manhã, um ansiolítico à noite para combater sua ansiedade e dormir melhor. Anda com ajuda de um andador por causa das artroses e está quase completamente surda. Temos que falar alto e bem perto dela e ter a sua atenção para que nos ouça. Ainda se alimenta com suas próprias mãos e detesta tomar banho. Já acostumamos com a costumeira reclamação: hora do maldito banho. Alguns amigos dizem o mesmo de seus pais idosos — por que não gostam de tomar banho?

Até mais de oitenta anos atuava como atriz em um grupo de teatro amador do SESC-BH. Ficava empolgada com o teatro e com sua própria atuação e de seus colegas, quase todos e todas pessoas idosas. E apresentavam em teatros, escolas, hospitais e presídios. Quando a direção do SESC encerrou as atividades do grupo, por redução de despesas, veio a depressão.

Foi quando assistimos aquela mulher falante, ativa, inteligente e dinâmica ir declinando pouco a pouco: a depressão, a morte do marido, o isolamento por causa da pandemia, a surdez, a solidão. Claro, nunca está sozinha, tem sempre alguém da família com ela, vinte e quatro horas por dia. Mas isso não aplaca a solidão, que está dentro e não no entorno. Onde estão os amigos e amigas, os parentes de mesma geração, as vizinhas que vinham lhe visitar e pedir conselhos?  (Sim, ela dava até conselhos matrimoniais: — a gente tem que fingir que não viu e que não escutou.) Restaram alguns poucos, muito poucos, ninguém tão idoso quanto ela, mas que já se retiraram à suas solidões acompanhadas.

Em alguns momentos, à mesa do café da manhã, conta algumas histórias:

— Quando eu era moça e trabalhava em Belo Horizonte, no Bairro Santa Efigênia, eu era muito conhecida, porque eu ajudava todo mundo que me pedia. E quando teve a inauguração do Edifício Acaiaca eu estava lá para assistir. Foi quando o Jucelino Kubitschek, que era o prefeito, me reconheceu e me chamou para cortar a fita com ele. (Até onde é verdade, até onde é invenção?)

— Que chique, hein mãe? Amiga do JK!

Ainda lê o jornal todas as manhãs, sem óculos depois da cirurgia de catarata, mas não lembra mais do que leu, minutos depois.

— As notícias são as mesmas de ontem. Não muda nada.

Nesta semana ela estava à janela e percebeu a chegada de alguém no portão. De sua posição não reconheceu quem chegava e me chamou:

— Tem um mendigo na porta, vai ver o que ele quer. Acho que ele quer café.

— Mãe, é J. Um de seus muitos filhos (tem cinco filhos e quatro filhas).

Ela ri, recebe o filho com alegria, e depois volta ao silêncio, em sua cadeira preferida à beira da janela.

Ao silêncio! Ensurdecedor! Só posso ficar em silêncio também. A seu lado, segurando sua mão. De vez em quando ela me olha, E sorri.


segunda-feira, 31 de março de 2025

UMA IDOSA NO CAIXA DO BANCO

Uma senhora idosa aproximou-se do balcão do banco com passos lentos, mas firmes. Estendeu o cartão bancário ao caixa e, com uma voz serena, pediu:

— Gostaria de sacar 100 reais.

O caixa, sem sequer disfarçar o desdém, mandou-lhe um olhar rápido e respondeu, seco:

— Para saques inferiores a 200 reais, utilize a máquina automática.

A velhinha ergueu ligeiramente a sobrancelha, como quem pesa as palavras, e perguntou com calma:

— E por quê?

Impaciente, o caixa suspirou e devolveu o cartão sem ao menos olhá-la nos olhos:

— São as regras, senhora. Há outras pessoas esperando. Use o caixa automático.

O silêncio que se seguiu foi curto, mas carregado de significado. A velhinha pegou o cartão de volta, olhou-o por um instante e, com um leve sorriso, inclinou-se ligeiramente para o caixa:

— Nesse caso, poderia me ajudar a sacar todo o saldo da minha conta?

O caixa hesitou. Digitou alguns números no computador e, de repente, sua expressão mudou. Levantou a cabeça com um ar surpreso:

— Senhora… tem 50.000 reais na conta. Não posso lhe entregar esse montante agora. Terá que voltar amanhã.

Ainda tranquila, a velhinha inclinou-se um pouco mais e perguntou:

— Entendo… E quanto posso retirar neste momento?

Já sem paciência, o caixa resmungou:

— No máximo, 3.000 reais.

— Ótimo — disse ela, sem hesitação. — Quero sacar 3.000 reais, por favor.

Com um suspiro longo e carregado de frustração, o caixa começou a contar as notas lentamente, empilhando-as com gestos mecânicos e irritados. Minutos depois, empurrou o dinheiro para a velhinha, mal escondendo sua irritação:

— Algo mais?

A senhora pegou calmamente o dinheiro, guardou uma nota de 100 reais na bolsa e, sem pressa, deslizou os 2.900 reais restantes de volta para o balcão:

— Sim, por favor. Gostaria de depositar esse valor na minha conta.

O caixa congelou. O silêncio que antes era breve agora pesava no ar.

A velhinha sorriu, virou-se e saiu com a tranquilidade de quem já aprendeu, ao longo dos anos, que paciência e inteligência vencem qualquer arrogância.

Moral: Nunca subestime a experiência de quem já viu o mundo girar muitas vezes. A sabedoria não se impõe, mas sempre encontra um jeito de se fazer respeitar.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O JILÓ DA VIDA 01

 Histórias e Reflexões sobre os Sabores da Existência

Antes que você, leitor, estranhe o título dessa narrativa e das próximas que irei publicar neste espaço, darei uma merecida explicação. Serei ligeiro nas palavras porque penso também que meus leitores sejam inteligentes para criar uma narrativa apropriada a seu pensamento e suas crenças possíveis.

Jiló é uma pequena fruta de uma planta herbácea, o jiloeiro, originária da África Ocidental, trazida para o Brasil durante o período colonial. Como foram dos países da costa do Atlântico que os pretos escravizados pelos europeus vieram para o Brasil, muito provavelmente foram eles que nos ofertaram com essa iguaria tão especial.

O fruto tem um característico sabor amargo. Alguns não gostam de seu sabor e vêm com uma justificativa também herbácea: — a vida já bem amarga, porque gostaria de jiló? Primeiro, essa é uma frase características dos pessimistas. Os mais realistas pegariam esse fruto amargo e fariam um guisado daqueles especiais, por exemplo, comendo-o com um bife de fígado acebolado, ou o acrescentariam em um cosido de carne.

Na verdade, a característica mais importante do jiló é que ele absorve os temperos e os sabores dos acompanhamentos a que ele se ajunta no prato. O sabor do jiló é aquele que damos a ele. Para mim, é uma metáfora interessante sobre a vida que construímos para nós.

Considerando isso tudo isso e tendo a metáfora do jiló como sabor da existência, gostaria de contar porque estou aqui e vim para ficar. Minha ideia é a cada semana estar presente neste espaço para contar histórias sobre a diversidade da vida. Meu nome é Paulo Cezar Santos Ventura, mas usarei apenas o codinome de Paulo C. S. Ventura, que será a semente de minha marca pessoal. Neste mês de fevereiro completei setenta e dois anos de idade, sou físico de formação, não deixei de sê-lo, mas acrescentei a escrita como uma continuidade da antiga profissão.

O que faço hoje, e faço disso um propósito de vida, é contar histórias, minhas histórias, em diversos formatos: em livros, vídeos, fotos, painéis, postagens curtas em algumas redes sociais, postagens mais longas em outras. Minha intenção é escrever e contar histórias que cutuquem as pessoas, que mexam com suas emoções e que possam, após lê-las, dizerem: eu também poderia ter escrito isso, porque essa história se parece comigo. E se você quiser me contar sua história também, eu a ouvirei e talvez a coloque no papel, ou ajude você a escrevê-la, caso precise de um empurrãozinho para isso.

O que eu quero, de fato, é ajudar na construção de um futuro melhor que o passado. Quero, ao partir (que demore muito ainda) deixar um mundo melhor que aquele que encontrei setenta e dois anos atrás. Ou melhor ainda, deixar no mundo pessoas melhores que aquelas que encontrei em minha vida. Quero, também, ser uma pessoa melhor que a que sou hoje. Como fazer isso? Tenho apenas algumas ideias, mas espero contar com sua ajuda para isso.

Qual o tamanho da mochila que carrego para isso? Não tão grande. Trago aquilo que juntei na vida, quase nada material, mas um grande patrimônio imaterial. Sobre esse patrimônio escreverei aqui neste espaço, semanalmente.

Meu mundo cabe em minha mochila, onde tem um livro, um canivete (todo homem devia ter um canivete, símbolo fálico poderoso que trazemos desde a infância vivida no interior), uma chave de fenda, uma caneta, um caderno de anotações (poesia não avisa quando vem), um par de óculos (presente do portal do tempo), uma agenda (sou homem de compromissos) e muitas lembranças.

E aqui vai também a primeira receita de jiló. Pegue dois jilós médios (ou mais se tiver acompanhantes), lave-os e corte-os em tiras bem finas. Coloque-os em uma vasilha e tempere com azeite de oliva, sal do Himalaia (tem mais magnésio), pimenta do reino ou calabresa e orégano. Sirva-se com um palito ou garfo e saboreai-o. Vai bem com uma cerveja gelada ou uma cachaça da boa. Essa receita é para os fortes.

Obrigado pela leitura e até breve.

 

 

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

A PESSOA IDOSA E OS JOGOS DE AZAR

 


Vivendo e aprendendo a jogar

Nem sempre ganhando

Nem sempre perdendo

Mas aprendendo a jogar.

(Guilherme Arantes)

Estive no Correio de minha cidade para usar sua prestação de serviços de transporte de mercadorias. Sou frequentador assíduo, felizmente, pois por ali viajam meus livros para os queridos leitores. De repente, o funcionário me oferece um tipo de jogo, registrado e patrocinado pela Empresa de Correios e Telégrafos (ECT). Eu respondo: como posso fazer uma militância política em prol de uma melhor distribuição de renda e apostar em um sistema que tira dinheiro de muitos e entrega a uns poucos? E quem ganha são exatamente aqueles que podem apostar muito.

Desculpe-me, Sr. Arantes, apesar do sucesso de sua música, que teve como uma de suas intérpretes a fabulosa Elis Regina, nem sempre se aprende a jogar. Na maioria dos casos vicia-se em jogar. Em tempos de má distribuição de renda e de uma grande faixa da população na pobreza, o jogo vira uma epidemia. Melhor dizendo, uma pandemia, pois o vício se espalha pelo mundo. E, mais uma vez, pessoas idosas são vítimas, vulneráveis.

Sete anos depois da decretação de legalidade das apostas online no Brasil, a quantidade de casas de apostas aumentou consideravelmente e o Brasil já é o segundo país do mundo em número de apostadores e de volume de dinheiro consumido em apostas. Imagino que muitos de nós conhecemos pessoas que estão se perdendo no vício de apostas. Irei relatar um caso que muito me chocou.

Dona Geralda (nome fictício por razões óbvias) é uma pessoa de minha vizinhança, dona de um belo sorriso e muita alegria. Ou melhor, era. Perdeu a alegria e o sorriso em consequência. Pessoa idosa, com uns sessenta e cinco anos, vivia em uma casa pequena na periferia da cidade. Moradora de uma daquelas três ou quatro casas construídas em um mesmo lote. Os filhos, já maduros, não eram visitas frequentes. Tinha um grupo de amigas, colegas das rezas e novenas, vivendo, portanto, em uma bolha de contatos.

Seu salário de aposentada era bem controlado, apenas o suficiente para sobreviver, sendo impossível se regalar com passeios, roupas melhores, jantar fora de casa, entre outros regalos. Vivia em sua bolha de grupos de WhatsApp, vítima das falsas notícias e das publicidades televisivas que contribuem para a degeneração mental dos telespectadores.

Foi no intervalo da novela que ela assistiu vários ídolos dos esportes e aquele famoso locutor anunciar: profetiza, mas com moderação. Ela não se conteve: quem sabe estava ali a saída de sua vida miserável? Quem sabe ela não poderia fazer parte daquele grupo de pessoas felizes e sorridentes que a televisão mostra nos enredos das novelas e nos intervalos para publicidade?

Pegou seu aparelho de telefone, usou o leitor do código que aparecia na tela e entrou naquele universo fantástico dos jogos. Bastavam uns cliques em seu aparelho de telefone, uma de suas amigas, “entendida” em internet a ajudou nos primeiros acessos e logo, logo, estava participando dos jogos. Era também uma bela maneira de se conectar com seu time de futebol de coração. E como ganhou um bom dinheiro da primeira vez, continuou jogando.

Os jogos de futebol são mais espaçados, mas a plataforma apresentava outras possibilidades. De repente, ela tinha uma Las Vegas inteira em seu pequeno aparelho celular. A vida vai melhorar, ah como vai!

E Dona Geralda se acostumou, se apaixonou, se viciou. Como compensar as perdas acumuladas? “Nem sempre ganhando”, quase sempre perdendo, não aprendeu a jogar. Mas a adrenalina do jogo, aquela sensação de poder ganhar, “agora vai”, ela nunca teve em sua vida de empregada de serviços gerais nas empresas em que trabalhou.

Aos poucos foi se endividando, aos poucos foi vendendo o pouco que tinha, de repente perdeu a casa, de repente quase perdeu a vida. A dose de veneno de rato que ingeriu não foi suficiente para suprimir sua a vida, mas a deixou em péssimas condições de saúde. Os filhos não tiveram condições de socorrê-la, mas conseguiram, com uma ação judicial, que Dona Geralda fosse recolhida por uma ILPI onde, pelo menos, estava acolhida por profissionais.

Infelizmente, esse é o jogo, aquele que apaga a luz dos olhos das pessoas, algumas nem tanto idosas, antes da hora. A vida pode ser também cenário para os Jogos Mortais. Neste caso ela é cruel, pois não se conhece as regras. Em jogos de “vale tudo” não se aprende a jogar. No entanto, é uma questão de escolha. Façamos a escolha certa: não jogar. 

 "O envelhecer é uma maratona dura. Requer foco, disciplina, amor próprio, treino mental, treino físico e espiritual. Mesmo sabendo que na reta final ninguém vai subir ao pódio, temos que dar o nosso melhor, porque a velhice é sobre o processo e não sobre o findar a jornada" (Cláudia S Franco).

 


O PROCESSO DE ESCRITA DO LIVRO – (01) 0 COTIDIANO

Na reunião do grupo IncentivArte de 03/11 percebi minha falha em um quesito colocado pelo edital do programa, justamente o de tornar público...