segunda-feira, 31 de março de 2025

UMA IDOSA NO CAIXA DO BANCO

Uma senhora idosa aproximou-se do balcão do banco com passos lentos, mas firmes. Estendeu o cartão bancário ao caixa e, com uma voz serena, pediu:

— Gostaria de sacar 100 reais.

O caixa, sem sequer disfarçar o desdém, mandou-lhe um olhar rápido e respondeu, seco:

— Para saques inferiores a 200 reais, utilize a máquina automática.

A velhinha ergueu ligeiramente a sobrancelha, como quem pesa as palavras, e perguntou com calma:

— E por quê?

Impaciente, o caixa suspirou e devolveu o cartão sem ao menos olhá-la nos olhos:

— São as regras, senhora. Há outras pessoas esperando. Use o caixa automático.

O silêncio que se seguiu foi curto, mas carregado de significado. A velhinha pegou o cartão de volta, olhou-o por um instante e, com um leve sorriso, inclinou-se ligeiramente para o caixa:

— Nesse caso, poderia me ajudar a sacar todo o saldo da minha conta?

O caixa hesitou. Digitou alguns números no computador e, de repente, sua expressão mudou. Levantou a cabeça com um ar surpreso:

— Senhora… tem 50.000 reais na conta. Não posso lhe entregar esse montante agora. Terá que voltar amanhã.

Ainda tranquila, a velhinha inclinou-se um pouco mais e perguntou:

— Entendo… E quanto posso retirar neste momento?

Já sem paciência, o caixa resmungou:

— No máximo, 3.000 reais.

— Ótimo — disse ela, sem hesitação. — Quero sacar 3.000 reais, por favor.

Com um suspiro longo e carregado de frustração, o caixa começou a contar as notas lentamente, empilhando-as com gestos mecânicos e irritados. Minutos depois, empurrou o dinheiro para a velhinha, mal escondendo sua irritação:

— Algo mais?

A senhora pegou calmamente o dinheiro, guardou uma nota de 100 reais na bolsa e, sem pressa, deslizou os 2.900 reais restantes de volta para o balcão:

— Sim, por favor. Gostaria de depositar esse valor na minha conta.

O caixa congelou. O silêncio que antes era breve agora pesava no ar.

A velhinha sorriu, virou-se e saiu com a tranquilidade de quem já aprendeu, ao longo dos anos, que paciência e inteligência vencem qualquer arrogância.

Moral: Nunca subestime a experiência de quem já viu o mundo girar muitas vezes. A sabedoria não se impõe, mas sempre encontra um jeito de se fazer respeitar.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O JILÓ DA VIDA 01

 Histórias e Reflexões sobre os Sabores da Existência

Antes que você, leitor, estranhe o título dessa narrativa e das próximas que irei publicar neste espaço, darei uma merecida explicação. Serei ligeiro nas palavras porque penso também que meus leitores sejam inteligentes para criar uma narrativa apropriada a seu pensamento e suas crenças possíveis.

Jiló é uma pequena fruta de uma planta herbácea, o jiloeiro, originária da África Ocidental, trazida para o Brasil durante o período colonial. Como foram dos países da costa do Atlântico que os pretos escravizados pelos europeus vieram para o Brasil, muito provavelmente foram eles que nos ofertaram com essa iguaria tão especial.

O fruto tem um característico sabor amargo. Alguns não gostam de seu sabor e vêm com uma justificativa também herbácea: — a vida já bem amarga, porque gostaria de jiló? Primeiro, essa é uma frase características dos pessimistas. Os mais realistas pegariam esse fruto amargo e fariam um guisado daqueles especiais, por exemplo, comendo-o com um bife de fígado acebolado, ou o acrescentariam em um cosido de carne.

Na verdade, a característica mais importante do jiló é que ele absorve os temperos e os sabores dos acompanhamentos a que ele se ajunta no prato. O sabor do jiló é aquele que damos a ele. Para mim, é uma metáfora interessante sobre a vida que construímos para nós.

Considerando isso tudo isso e tendo a metáfora do jiló como sabor da existência, gostaria de contar porque estou aqui e vim para ficar. Minha ideia é a cada semana estar presente neste espaço para contar histórias sobre a diversidade da vida. Meu nome é Paulo Cezar Santos Ventura, mas usarei apenas o codinome de Paulo C. S. Ventura, que será a semente de minha marca pessoal. Neste mês de fevereiro completei setenta e dois anos de idade, sou físico de formação, não deixei de sê-lo, mas acrescentei a escrita como uma continuidade da antiga profissão.

O que faço hoje, e faço disso um propósito de vida, é contar histórias, minhas histórias, em diversos formatos: em livros, vídeos, fotos, painéis, postagens curtas em algumas redes sociais, postagens mais longas em outras. Minha intenção é escrever e contar histórias que cutuquem as pessoas, que mexam com suas emoções e que possam, após lê-las, dizerem: eu também poderia ter escrito isso, porque essa história se parece comigo. E se você quiser me contar sua história também, eu a ouvirei e talvez a coloque no papel, ou ajude você a escrevê-la, caso precise de um empurrãozinho para isso.

O que eu quero, de fato, é ajudar na construção de um futuro melhor que o passado. Quero, ao partir (que demore muito ainda) deixar um mundo melhor que aquele que encontrei setenta e dois anos atrás. Ou melhor ainda, deixar no mundo pessoas melhores que aquelas que encontrei em minha vida. Quero, também, ser uma pessoa melhor que a que sou hoje. Como fazer isso? Tenho apenas algumas ideias, mas espero contar com sua ajuda para isso.

Qual o tamanho da mochila que carrego para isso? Não tão grande. Trago aquilo que juntei na vida, quase nada material, mas um grande patrimônio imaterial. Sobre esse patrimônio escreverei aqui neste espaço, semanalmente.

Meu mundo cabe em minha mochila, onde tem um livro, um canivete (todo homem devia ter um canivete, símbolo fálico poderoso que trazemos desde a infância vivida no interior), uma chave de fenda, uma caneta, um caderno de anotações (poesia não avisa quando vem), um par de óculos (presente do portal do tempo), uma agenda (sou homem de compromissos) e muitas lembranças.

E aqui vai também a primeira receita de jiló. Pegue dois jilós médios (ou mais se tiver acompanhantes), lave-os e corte-os em tiras bem finas. Coloque-os em uma vasilha e tempere com azeite de oliva, sal do Himalaia (tem mais magnésio), pimenta do reino ou calabresa e orégano. Sirva-se com um palito ou garfo e saboreai-o. Vai bem com uma cerveja gelada ou uma cachaça da boa. Essa receita é para os fortes.

Obrigado pela leitura e até breve.

 

 

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

A PESSOA IDOSA E OS JOGOS DE AZAR

 


Vivendo e aprendendo a jogar

Nem sempre ganhando

Nem sempre perdendo

Mas aprendendo a jogar.

(Guilherme Arantes)

Estive no Correio de minha cidade para usar sua prestação de serviços de transporte de mercadorias. Sou frequentador assíduo, felizmente, pois por ali viajam meus livros para os queridos leitores. De repente, o funcionário me oferece um tipo de jogo, registrado e patrocinado pela Empresa de Correios e Telégrafos (ECT). Eu respondo: como posso fazer uma militância política em prol de uma melhor distribuição de renda e apostar em um sistema que tira dinheiro de muitos e entrega a uns poucos? E quem ganha são exatamente aqueles que podem apostar muito.

Desculpe-me, Sr. Arantes, apesar do sucesso de sua música, que teve como uma de suas intérpretes a fabulosa Elis Regina, nem sempre se aprende a jogar. Na maioria dos casos vicia-se em jogar. Em tempos de má distribuição de renda e de uma grande faixa da população na pobreza, o jogo vira uma epidemia. Melhor dizendo, uma pandemia, pois o vício se espalha pelo mundo. E, mais uma vez, pessoas idosas são vítimas, vulneráveis.

Sete anos depois da decretação de legalidade das apostas online no Brasil, a quantidade de casas de apostas aumentou consideravelmente e o Brasil já é o segundo país do mundo em número de apostadores e de volume de dinheiro consumido em apostas. Imagino que muitos de nós conhecemos pessoas que estão se perdendo no vício de apostas. Irei relatar um caso que muito me chocou.

Dona Geralda (nome fictício por razões óbvias) é uma pessoa de minha vizinhança, dona de um belo sorriso e muita alegria. Ou melhor, era. Perdeu a alegria e o sorriso em consequência. Pessoa idosa, com uns sessenta e cinco anos, vivia em uma casa pequena na periferia da cidade. Moradora de uma daquelas três ou quatro casas construídas em um mesmo lote. Os filhos, já maduros, não eram visitas frequentes. Tinha um grupo de amigas, colegas das rezas e novenas, vivendo, portanto, em uma bolha de contatos.

Seu salário de aposentada era bem controlado, apenas o suficiente para sobreviver, sendo impossível se regalar com passeios, roupas melhores, jantar fora de casa, entre outros regalos. Vivia em sua bolha de grupos de WhatsApp, vítima das falsas notícias e das publicidades televisivas que contribuem para a degeneração mental dos telespectadores.

Foi no intervalo da novela que ela assistiu vários ídolos dos esportes e aquele famoso locutor anunciar: profetiza, mas com moderação. Ela não se conteve: quem sabe estava ali a saída de sua vida miserável? Quem sabe ela não poderia fazer parte daquele grupo de pessoas felizes e sorridentes que a televisão mostra nos enredos das novelas e nos intervalos para publicidade?

Pegou seu aparelho de telefone, usou o leitor do código que aparecia na tela e entrou naquele universo fantástico dos jogos. Bastavam uns cliques em seu aparelho de telefone, uma de suas amigas, “entendida” em internet a ajudou nos primeiros acessos e logo, logo, estava participando dos jogos. Era também uma bela maneira de se conectar com seu time de futebol de coração. E como ganhou um bom dinheiro da primeira vez, continuou jogando.

Os jogos de futebol são mais espaçados, mas a plataforma apresentava outras possibilidades. De repente, ela tinha uma Las Vegas inteira em seu pequeno aparelho celular. A vida vai melhorar, ah como vai!

E Dona Geralda se acostumou, se apaixonou, se viciou. Como compensar as perdas acumuladas? “Nem sempre ganhando”, quase sempre perdendo, não aprendeu a jogar. Mas a adrenalina do jogo, aquela sensação de poder ganhar, “agora vai”, ela nunca teve em sua vida de empregada de serviços gerais nas empresas em que trabalhou.

Aos poucos foi se endividando, aos poucos foi vendendo o pouco que tinha, de repente perdeu a casa, de repente quase perdeu a vida. A dose de veneno de rato que ingeriu não foi suficiente para suprimir sua a vida, mas a deixou em péssimas condições de saúde. Os filhos não tiveram condições de socorrê-la, mas conseguiram, com uma ação judicial, que Dona Geralda fosse recolhida por uma ILPI onde, pelo menos, estava acolhida por profissionais.

Infelizmente, esse é o jogo, aquele que apaga a luz dos olhos das pessoas, algumas nem tanto idosas, antes da hora. A vida pode ser também cenário para os Jogos Mortais. Neste caso ela é cruel, pois não se conhece as regras. Em jogos de “vale tudo” não se aprende a jogar. No entanto, é uma questão de escolha. Façamos a escolha certa: não jogar. 

 "O envelhecer é uma maratona dura. Requer foco, disciplina, amor próprio, treino mental, treino físico e espiritual. Mesmo sabendo que na reta final ninguém vai subir ao pódio, temos que dar o nosso melhor, porque a velhice é sobre o processo e não sobre o findar a jornada" (Cláudia S Franco).

 


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

MEU CORPO, MEU PATRIMÔNIO

Na escola primária (nome antigo do Ensino Fundamental I) aprendíamos que o corpo humano tem três partes: cabeça, tronco e membros. Por mais didática que seja essa divisão, espero que as crianças de hoje aprendam de forma diferente, pois o corpo não tem partes, é uno: corpo humano. Enquanto vivos estamos, esta entidade à qual podemos dar o nome de sujeito, ser humano, ou outro, conforme informações culturais e espirituais de cada povo, usamos esse corpo como agente de conexão com o universo.

Entre o corpo e o universo, coisas, artefatos, objetos,
energia, técnica, tecnologia, ciência, cultura, outros corpos.
Corpo-sujeito, corpo-artefato.

 

Depois de nossa morte, esse corpo se degenera e o que permanece é fruto de especulação desde que o homem existe e não temos, até hoje, uma resposta categórica do legado de nossa existência. Cada povo, cada cultura, cada comunidade tem suas teorias e crenças. Mas o que sabemos mesmo é que, desde que nascemos, esse corpo se modifica: cresce, encolhe, se fortalece, se enfraquece, se enruga, e desaparece.

Então, o que temos, à primeira vista, é nosso corpo. Nosso corpo, feio ou bonito, é nosso maior patrimônio. É ele que nos conduz por esta vida lapidada, ao longo dela, por nossos pensamentos, aprendizados e atitudes. Por isso, todo cuidado e atenção com ele é pouco.

Os profissionais que trabalham, estudam e pesquisam o envelhecimento são maioria, talvez unânime, em afirmar que se o corpo para a mente também declina. Darei um exemplo, de pessoa de meus relacionamentos, que corrobora a informação.

Jordelina era uma atriz, muito ativa, que foi envelhecendo junto com os colegas de seu grupo de teatro. Apesar da idade, eles ensaiavam e atuavam em teatros, escolas, hospitais e até em presídios. Jordelina foi ficando surda e mesmo assim não perdia as cenas nem seus momentos de nelas entrar.

Com o tempo o grupo foi diminuindo porque vários dos atores e atrizes foram saindo de cena, até que a instituição financiadora desistiu e extinguiu o grupo. Jordelina entrou em depressão e, beirando os noventa anos, quietou-se em casa. Perdeu a motivação.

A morte do marido e a pandemia de covid-19 a paralisaram de vez. Foi obrigada a ficar quieta em casa e sem a presença constante de filhos e netos. A artrose tomou conta de suas articulações e ela caminha muito pouco e devagar, com a ajuda de um andador. A cabeça, evidentemente, também parou no tempo. Não reconhece as pessoas, suas intermináveis histórias deixaram de ser contadas.

O que aconteceu com ela confirma as previsões, confirma uma frase que ela mesma, Jordelina, sempre dizia a suas amigas de mesma idade:

“Velho que não anda, desanda.”

(Jordelina)

 

Diante do que venho presenciando em todos esses anos de convivência com Jordelina, comecei a estudar um pouco mais a relação entre corpo são e mente saudável. Sempre fui adepto e praticante de atividade física e de alguns esportes em particular. Joguei futebol durante mais de quarenta anos, pratiquei remo em canoe individual, durante alguns anos, corrida de rua e, claro, pedalei desde bem moço. Minha maior aventura na bicicleta foi pedalar de Londres a Paris em sete dias.

Viver é como andar de bicicleta,

se você para se desequilibra.

(Paulo C. S. Ventura)

 

Diante das evidências científicas e dos relatos dos profissionais do envelhecimento, continuo com minhas caminhadas, pequenas corridas, musculação. Já que pernas fortes e músculos rijos são requisitos para uma longevidade plena de memórias, pratico todos os dias, seguindo o lema: “força na panturrilha” e “quanto mais serotonina, menos Neosaldina.”

Além disso, as caminhadas são ótimas para a prática da meditação ativa, em que a gente se conscientiza das dores do corpo e da alma e trabalha para eliminá-las. Tudo acontece nos movimentos, mas a gente mesmo tem que ser a força motriz do movimento.

A sabedoria está em saber o que se faz com a dura realidade: abrigar-se de temporais, modificar o curso das coisas, lidar bem com os maus resultados e com o inesperado. E a chave é saber olhar adiante, como o enxadrista que pensa no movimento imediato em função daqueles que se seguirão.

Tempo que se eterniza no movimento,

que se sincroniza,
e se desmancha nesse corpo que dança.

(Paulo C. S. Ventura)

 Estão presentes nesses últimos parágrafos duas ótimas sugestões: dançar e jogar xadrez. Vamos?

  


segunda-feira, 15 de julho de 2024

O PASSADO E SEUS ECOS

 


“Não perca tempo correndo atrás daquilo que perdeu no passado. Enquanto isso você pode estar perdendo coisas importantes no presente” (Irmãos Cohen).  

Essa frase é dita em um filme dirigido pelos ótimos irmãos Cohen. E faz pensar. Ela tem múltiplas interpretações como todas as frases filosóficas, como todos os aforismos, desde Sêneca. Cada um faz uma leitura. Dependendo de sua posição e daquilo que pleiteia.  Que interpretação dar quando aquilo que procura está no presente, influenciará seu futuro, e tem raízes no passado? As coisas não são todas assim? Todo o presente tem raízes no passado. E o passado pode não ser muito bonito. Mas passou. Não volta. Apenas seus ecos ficam. Alguns ecos podem ser desagradáveis, mas não ocupam espaço.

Em se tratando de presente, todos os fatos, que são fatos, portanto inegáveis, têm sempre mais de uma interpretação possível, e todas as interpretações tem suas lógicas. As moedas tem duas faces, a lua tem um lado visível e outro sempre escondido, cada um que vê uma cena a conta de seu jeito, cada um que vive uma história tem seu olhar diferente para a mesma.

As histórias que conhecemos hoje foram escritas por alguém que tinha uma razão, particular ou coletiva, para que se registrasse desse jeito. O papel dos historiadores é, em parte, pesquisar o tamanho da verdade da história como ela chegou até nós.

Um dos acontecimentos difíceis de se levar a sério é reviver o mesmo problema anos depois e perceber que a moral das pessoas envolvidas não mudou: vítimas ontem, vítimas hoje. Fui recuperar algo que deixei no passado por bobeira, imaturidade e sentimento de culpa, esbarrei nas mesmas pessoas com as mesmas interpretações lineares e, mais uma vez, perdi pessoas queridas e amadas. Pensando como os irmãos Cohen, o que será que perdi, de importante hoje, indo reviver algo do passado? Eles têm razão.

Para envelhecer com maturidade a gente precisa, ao longo da vida, desapegar do passado, mudar de perspectiva, e se transformar em nova pessoa.

Transformação é uma espécie de mote para o futuro. Significa adeus ao ponto de partida. Sem retorno. (Paulo C. S. Ventura).

 

Transformar-se é tornar-se outra pessoa, viver em outro mundo, com outras possibilidades. Outras escolhas. Viver é isso: transformar-se continuamente, já que o passado não volta.

Contamos apenas com a possível capacidade das pessoas de olharem através das fendas da história, de perceberem as nuances dos fatos e saírem de suas linhas retas, sem fazer julgamentos.

Mas, como é difícil para as pessoas não fazerem julgamentos! Como é difícil não condenar o sujeito simplesmente porque não concordam com seus atos! Não julgamento é uma bela atitude que aprendi a duras penas. Minha função de hoje o exige para que seja bem sucedida. Quanto a recuperar as pessoas queridas, não estou otimista. Elas já fizeram seus julgamentos. Não creio que me aprovem, já que sou outro ser. Talvez meio pássaro.

Em noite de mudança de lua

viro bicho que na terra pousa

orbitando como mariposa

na pálida luz da rua.

Ou mariposa.

 


terça-feira, 4 de junho de 2024

CAIXA PREFERENCIAL

Era uma segunda-feira pela manhã, início de mês, os supermercados estão geralmente cheios nesta hora preferencial das pessoas idosas fazerem suas compras. Parecia a fila da aposentadoria. Claro, eu também estava lá, faço parte desse time.

Esta é, também, a hora da reposição de produtos nas prateleiras. Logo, os clientes trombam, nos corredores, com funcionários agachados junto às gôndolas e com caixas e carrinhos de produtos.

Por esse contexto, é também hora das reclamações. Pessoa idosa adora reclamar. Para alguns é o passatempo favorito e com certa dose de saudosismo e nostalgia: — ... “naqueles tempos, tudo era melhor” ...

O mais inusitado e interessante acontece depois das compras, na enorme fila do caixa preferencial, o preferido e selecionado pelas pessoas idosas, mesmo que outras filas estejam menores. É uma questão de posse, chamam até de fila dos grisalhos, onde se encontram para conversar sobre coisas aleatórias.

Coisas aleatórias? Que nada! Ajustei meu aparelho escutador, estiquei as orelhas como cão perdigueiro e fiquei a ouvir as histórias. Logo à minha frente, três senhoras conversavam sobre suas doenças.

— Eu tomo remédio para controle de pressão. Sem eles minha pressão fica muito alta.

— Ontem, minha mãe estava com a pressão a 20 x 15. Tive que levá-la, urgente, à UPA.

— Ah, meu problema é a glicemia. Varia rápido de 90 a 500, depois volta sem mais nem menos.

— A sua glicemia ainda volta. A minha fica sempre alta. Faço regime e ela não abaixa. Aliás, não consigo nem emagrecer.

— E minha arritmia? Você nem imagina! Tem hora que meu coração bate mais rápido que pandeiro de escola de samba.

Eu escuto, observo, e não consigo esconder meu riso. Parecem que elas ficam felizes com suas doenças. Mas falar de nossos males nos aproxima, nos encaixa em nossos grupos de pertencimento.

 

Tempo marca seus rastros no caminho
por onde atravessamos: toma suas distâncias.
Chamam esses seus traços de envelhecimento.

(Paulo Cezar S. Ventura)

Um amigo meu, também colega de trabalho, teve câncer de próstata, fez uma cirurgia e voltou ao trabalho. Ficou bem, mas detestava responder às perguntas dos colegas. Certo dia me disse: — Não aguento mais responder as pessoas que me perguntam se estou bem. Decidi, então, não explicar mais nada. Ninguém entende mesmo o que eu passei, e não gosto de suas caras de pena. Agora só converso com quem já passou por isso.

Foi descobrindo outras pessoas que tiveram câncer de próstata e montaram um grupo de relacionamento. E se encontram semanalmente para comentar sobre suas próstatas e tomar uma taça de vinho.

Lembrei-me de uma outra amiga que tem grandes crises de depressão. Ela fica mais deprimida ainda quando percebe que você está feliz e ela não.

— O que você tem de melhor que eu que parece nem ter problemas?

Sabendo disso, ao conversarmos sempre respondo a seu “como vai você” com uma frase que lhe seja conveniente:

— Ah, hoje não estou bem não. Estou com dores e sensações estranhas (o que nem é falso, pois dores e sensações estranhas, em nossa idade, é bem comum).

— O que você tem?

— Penso que tomei um jeito na coluna. Parece até hérnia de disco.

É o suficiente para ela sorrir. Agora ela fala pra todo mundo que tenho hérnia de disco e pensa que estou tão infeliz quanto ela.

Voltando à fila do caixa preferencial (assim está escrito na placa, mas os preferenciais somos nós), tive a impressão que a alegria das pessoas também se fundamenta na percepção que todas eram infelizes (ou felizes, não sei bem) igualmente em suas doenças. Até que uma percebe meu sorriso e me pergunta:

— E você, não tem nada não? Nem uma dorzinha?

— Ah, minha senhora. Minha pressão e glicemia estão bem. Mas as artroses das juntas até ardem de tão fortes (entrei no jogo).

A receita veio rápida, com um enorme sorriso.

— Açafrão da terra. Coloque uma porção na banana com aveia para comer pela manhã que é tiro e queda. Se fizer isso todo dia verá como melhora. Se não melhorar a junta, ajunta tudo e joga fora.

— ...


Todos deveriam contar sua história:

modo de contar

depende de um único olhar.

(Paulo Cezar S. Ventura)

 

quarta-feira, 3 de abril de 2024

CARTA PARA EU CRIANÇA



 

Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter menos de dois anos. Não consigo nem mesmo imaginar onde ela foi tirada. Meu pai trabalhava em uma empresa que construía estradas e ele trabalhou entre Belo Horizonte e Teófilo Otoni durante um período de quatro anos, desde meu nascimento em Timóteo, no Vale do Aço, passando por Sabará, onde nasceu essa menina, e Teófilo Otoni, no norte de Minas, onde nasceu meu irmão, o terceiro. Nós três nascemos na estrada.

Então, escrevo para esse garoto da foto, esse aí dos olhos com uma curva que parece estar triste, um olhar imponente, no entanto. Parece que já gostava de mirar no fundo dos olhos das pessoas, pois aqui na foto olha direto na lente da máquina. Pois assim será sempre, meu querido Paulo pequeno. Você irá sempre olhar no fundo dos olhos das pessoas, apertar as mãos delas com força, abraçá-las com carinho verdadeiro, e dizer-lhes palavras sérias, algumas ferinas. Só bem mais tarde na vida vai contemporizar nos dizeres, pois aprenderá que franqueza nem sempre é uma boa qualidade, tanto quanto a dissimulação. Há verdades que não dizemos nem para o mentor, o padre, o pai, o cônjuge. A gente guarda no fundo do coração e a usamos apenas se necessário. Em vez disso, você aprenderá a fazer questionamentos cujas respostas ajudam a você e as pessoas a encontrarem suas verdades nas respostas. Perguntas socráticas, como você lerá no livro Sócrates Café, de Christopher Phillips.

São as perguntas que te farão crescer, não as respostas. Terá que vencer a timidez que o mantém encolhido diante das pessoas; terá que vencer a arrogância, pois se achava mais inteligente que muitos outros. Terá que vencer o medo de se relacionar, e descobrirá um dia que o beijo na boca é uma delícia (não precisa exagerar também, né cara?). Voltando às perguntas, aprenderá que muitas delas não terão respostas. No entanto, são as perguntas que farão de você um cientista das coisas materiais, físico para ser preciso; são as perguntas que o transformarão em professor, cientista das relações humanas. Aí você juntará tudo e começará a refazer suas perguntas, mas em forma de poesia e crônicas.

Se você já imaginasse o tamanho da trajetória que deverá percorrer na vida, provavelmente já faria um ar cansado na foto. Mas está sereno. A serenidade te acompanhará a vida toda, Paulinho. A paciência e a resiliência serão os motes que usará para seguir em frente quando os caminhos parecerem fechados com cercas elétricas. Afinal de contas, você quase nasceu em uma boleia de caminhão, ou de um trator, teve irmãos demais, dinheiro de menos, dificuldades atropeladoras, etc., mas pense bem, meu menino. Você estudará nas duas melhores universidades do Brasil (UFMG e USP), fará um curso na Sorbonne, em Paris, e doutorar-se-á em Dijon, França, na sala e na mesa de trabalho de Gaston Bachelard, ganhará seu título com louvor, subirá até o alto do Mont Blanc a quase cinco mil metros de altitude, escalará El Mirante del Condor, no Chile, orientará mais de mil projetos de alunos e interpretará o Grande Sertão: Veredas em forma de haicais. Por isso eu perdoo este olhar de “EU SOU PHODA” que você já mostra na foto.

Nem tudo será flores, meu caro. A caminhada será dura, cheia de tropeços, idas e vindas, altos e baixos. Terá mulheres e elas irão embora, pois te acharão chato. Terá filhos e alguns deles também sairão de sua vida, porque dirão que você os abandonará ao sair de casa. Você sabe que não será verdade, você daria a vida por eles. Mas você sabe, né? Filhos geralmente acompanham as mães e elas não irão querer você por perto. Mas, insista e eles voltarão a querer você na mesa deles falando de suas aventuras.

Anos depois, já com tantas vivências, tantos erros e fracassos acumulados, e algumas vitórias bem curtidas, você poderá olhar para essa foto e dizer bem alto: Ô VIDA QUE VALE A PENA, POIS MINHA ALMA NUNCA É PEQUENA”.

UMA IDOSA NO CAIXA DO BANCO

Uma senhora idosa aproximou-se do balcão do banco com passos lentos, mas firmes. Estendeu o cartão bancário ao caixa e, com uma voz serena, ...