— Quantos anos eu tenho?
— Noventa e nove anos, mãe. Ano que vem será uma centenária.
— Nossa! Pra que viver tanto? Eu sempre fui tão ativa e hoje
não dou conta de fazer mais nada.
— Tem problema não, mãe. Você já fez muito. Hoje tem muita
gente que possa fazer por você. E ainda vai viver um tempo, você não tem nada!
Mais forte que um carvalho velho!
— Pois é, quantas pessoas de minha idade têm a saúde que eu
tenho?
O que é verdade. Seus indicadores de saúde são ótimos. Os
medicamentos que toma são apenas dois: um contra a osteoporose pela manhã, um
ansiolítico à noite para combater sua ansiedade e dormir melhor. Anda com ajuda
de um andador por causa das artroses e está quase completamente surda. Temos
que falar alto e bem perto dela e ter a sua atenção para que nos ouça. Ainda se
alimenta com suas próprias mãos e detesta tomar banho. Já acostumamos com a
costumeira reclamação: hora do maldito banho. Alguns amigos dizem o mesmo de
seus pais idosos — por que não gostam de tomar banho?
Até mais de oitenta anos atuava como atriz em um grupo de
teatro amador do SESC-BH. Ficava empolgada com o teatro e com sua própria
atuação e de seus colegas, quase todos e todas pessoas idosas. E apresentavam
em teatros, escolas, hospitais e presídios. Quando a direção do SESC encerrou
as atividades do grupo, por redução de despesas, veio a depressão.
Foi quando assistimos aquela mulher falante, ativa,
inteligente e dinâmica ir declinando pouco a pouco: a depressão, a morte do
marido, o isolamento por causa da pandemia, a surdez, a solidão. Claro, nunca
está sozinha, tem sempre alguém da família com ela, vinte e quatro horas por
dia. Mas isso não aplaca a solidão, que está dentro e não no entorno. Onde
estão os amigos e amigas, os parentes de mesma geração, as vizinhas que vinham
lhe visitar e pedir conselhos? (Sim, ela
dava até conselhos matrimoniais: — a gente tem que fingir que não viu e que não
escutou.) Restaram alguns poucos, muito poucos, ninguém tão idoso quanto ela,
mas que já se retiraram à suas solidões acompanhadas.
Em alguns momentos, à mesa do café da manhã, conta algumas
histórias:
— Quando eu era moça e trabalhava em Belo Horizonte, no
Bairro Santa Efigênia, eu era muito conhecida, porque eu ajudava todo mundo que
me pedia. E quando teve a inauguração do Edifício Acaiaca eu estava lá para
assistir. Foi quando o Jucelino Kubitschek, que era o prefeito, me reconheceu e
me chamou para cortar a fita com ele. (Até onde é verdade, até onde é
invenção?)
— Que chique, hein mãe? Amiga do JK!
Ainda lê o jornal todas as manhãs, sem óculos depois da
cirurgia de catarata, mas não lembra mais do que leu, minutos depois.
— As notícias são as mesmas de ontem. Não muda nada.
Nesta semana ela estava à janela e percebeu a chegada de
alguém no portão. De sua posição não reconheceu quem chegava e me chamou:
— Tem um mendigo na porta, vai ver o que ele quer. Acho que
ele quer café.
— Mãe, é J. Um de seus muitos filhos (tem cinco filhos e
quatro filhas).
Ela ri, recebe o filho com alegria, e depois volta ao
silêncio, em sua cadeira preferida à beira da janela.
Ao silêncio! Ensurdecedor! Só posso ficar em silêncio
também. A seu lado, segurando sua mão. De vez em quando ela me olha, E sorri.