23/03/2014
Viajei para Ushuaia, Argentina, depois de uma parada
de um dia em Buenos Aires, e tinha a boina na cabeça. O clima frio convidava a
seu uso. Em Ushuaia nevava e/ou chovia quando saí do aeroporto e peguei um
carro alugado para ir direto a Estância Rolito, a 150 km, onde passaríamos a
noite. Na Estância estava muito frio e ventava muito. Troquei a boina quase
vermelha por uma outro de lã, mais quente, que me protegia as orelhas. Para não
perdê-la coloquei na mala. Guardei-a.
Não mais me preocupei com a boina. Quando se
viaja todos os dias para diferentes lugares quanto menos se mexe na mala,
melhor. Acumulamos roupas sujas num canto da mala separando-as das roupas
limpas de forma mais ou menos organizada em função do que se vai usar nos dias seguintes.
Os tempos de pausa sendo curtos o melhor a fazer é aproveitar o melhor possível
os caminhos, novos caminhos. Um dia são os pinguins, outro é caminhada no
parque da Terra do Fogo, depois a visita a outra estância, e a boina guardada
na mala era certeza, a ventania era verdade, melhor tê-la lá.
Um dia sem vento aguçou-me a vontade de colocar
na cabeça minha querida boina. Abro a mala e ... onde está? Reviro tudo,
misturo sujas com limpas, cuecas com camisas, meias com calças, e cadê minha
boina? Esvazio a mala, organizo-a de novo, e nada de encontrá-la. Como
desapareceu? Para evitar perdas, sempre que deixo um quarto de hotel eu faço
uma checagem de abandono. Com as malas do lado de fora, volto lá e verifico
tudo de novo para certificar-me não ter deixado nada para trás. E porque alguém
roubaria a boina se dentro da mala havia dois blusões de couro mais bonitos e
caros?
Eu a comprei em Montevidéu uns cinco anos atrás.
Estava frio e ela me aquecia a cabeça cada vez com menos cabelos. Em Belo
Horizonte o frio é curto e eu a usava no inverno quando visitava cidades de
temperaturas mais baixas. E foi assim que, em um passeio com meu pai, careca de
todo, em uma cidade fria, eu a coloquei na cabeça dele. Ele reclamou o esquecimento
de seu boné, aceitou minha boina de bom grado. Gostou tanto dela que eu deixei-a
em sua cabeça pelo tempo que quisesse. – Não vai fazer falta não, filho? –
Quando você não precisar mais dela eu a pego de volta. – Exatamente como
aconteceu.
Nos últimos meses, doente, meu pai não a tirava
da cabeça. Sentia muito frio. Nova Lima, sua cidade, é fria e ele, em sua
fraqueza crônica e ampliada progressivamente, agasalhava-se sempre. Ao sair do
banho precisava ficar um tempo debaixo dos cobertores para se aquecer.
Levantava já com a boina. Em suas últimas fotos ela era presença constante. Com
sua magreza evolutiva ela parecia maior que sua cabeça.
E eu a peguei de volta quando ele não precisou
mais dela. Não sem impor minha condição de proprietário. Muitos a queriam como
lembrança. A boina já era parte dele, como uma prótese. A boina e a bolsa de colostomia,
depois de sua cirurgia.
E a boina desapareceu, misteriosamente, de minha
mala, em algum lugar entre Ushuaia e El Calafate, na Argentina, tendo no
caminho Punta Arenas e Puerto Natales, no Chile. Levada por um condor? Talvez
eu não fosse mais o proprietário. Talvez ele tenha se apropriado dela de vez.
Que a guarde bem, então.
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