Uma
vez mais dou um salto cronológico para escrever sobre narrativas fora de ordem,
fora da ordem também do ponto de vista do politicamente correto, pois vou
escrever sobre temas que normalmente escondemos. Possíveis, no entanto, em uma
autobiografia desautorizada. E salto dos anos mil novecentos e sessenta e oito,
caso fosse continuar na linha do tempo, para o ano de mil novecentos e oitenta
e dois, creio, para narrar uma outra história. Estava lendo, hoje, em dezembro
de dois mil e quinze, momento dessa escritura, um livro do Chico Buarque, recém
lançado, O Irmão Alemão, em que ele descreve a existência de um filho
clandestino de seu pai, do tempo em que ele viveu, ainda solteiro, na Alemanha.
E esse foi um assunto escondido, jamais dito em voz alta, em sua família. Eu
também um dia soube, também à boca miúda, através das indiscrições de minha
mãe, que eu teria um irmão mais velho, clandestino. Segundo ela meu pai teve um
romance com alguém, em algum lugar das Gerais, e desse romance frutificou um
garoto que nem meu pai conheceu, a mãe do garoto, protagonista de tal romance,
o escondeu. E ele, por falta de curiosidade ou de interesse em apresentar um
filho de uma relação apócrifa, nunca procurou o tal garoto. Meu pai, que se
apelidava Chico, assim como o pai do outro Chico, o Buarque, guardava esse
segredo, confessado por minha mãe, no caso dela para justificar suas mal
faladas palavras acerca de meu pai. Vamos à minha narrativa, entretanto.
A
gente se encontrou em um restaurante macrobiótico em São Paulo. Bonita,
estatura mediana, cabelos anelados e grandes, um nome extremamente simples,
três letrinhas, uma mulher extremamente complexa. Os primeiros olhares já
demonstraram uma simpatia biunívoca. Rapidamente a conversa escapou para
assuntos pessoais, por exemplo, as solidões individualizadas de pessoas em
situação de trabalho e de pesquisa. Pesquisa profissional, pausa apenas para
refeições, não era pausa para afetos. Os afetos ocorrem naqueles intervalos de
leituras, escrituras e correrias. E no meu caso, nas pausas das dinâmicas
domésticas. Algo que me incomodava justamente porque eu não me sentia preparado
para aquele clima de cobrança de presença constante na educação infantil,
embora eu amasse a todos em minha volta. Havia sido um mal começo, apenas. E o
que começa mal tem poucas chances de sobreviver.
Voltando
à mulher complexa, depois desse dia de conversa, os encontros ao acaso no
restaurante passaram a ser programados em sua casa, um pequeno apartamento
quarto-sala-cozinha-banheiro no primeiro andar de um prédio também pequeno e
próximo à universidade, com varanda. Tudo lá era simples. Trazia seu apreço
pelas coisas nordestinas, alagoana que era, cheia de delicados apetrechos pelas
paredes e nas prateleiras de sua estante improvisada. Coisas de estudante.
Foi
nesse local que conheci o sabor e o prazer de uma outra mulher depois de muitos
anos de monogamia estruturada. Não que minha vida fosse ruim, mas era um novo
conhecimento do mundo, uma nova abertura para conhecer pessoas diferentes
daquele mundo em que eu vivia, era a busca de experiências que eu nunca tive,
uma busca pela vida. Sabedora de minhas dúvidas, a morena teve paciência e
consciência de seus atos, esperou o momento certo. Ensinou-me, é verdade, a
curtir o sexo pelo sexo, a não filosofar entre chupadas e brochadas. A saborear
apenas. E a minha frequência naqueles atos delitosos aumentou consideravelmente
até o dia que mudei de cidade e voltei para Minas. Mineiro fora de Minas é
assim mesmo. Gosta de conhecer a diversidade. De experimentar novidades. De
montar seu currículo em comunicação com as pessoas.
Após
meu retorno eu ainda a vi três ou quatro vezes. Sempre que presente em São
Paulo eu a visitava e era sempre bem recebido. Até que houve uma última vez.
Era dezembro, próximo ao Natal, minha última noite na cidade naquele ano. Na
verdade só voltei lá muitos anos depois e ela havia voltado para Maceió, uma
vez terminado sua temporada de estudos em São Paulo. Encontramo-nos em uma
festa, bebemos, dançamos, rimos e dormimos juntos. Sabíamos que passaríamos um
bom tempo sem nos ver. De fato, foi a última vez que nos vimos. Lá pelo mês de
março do ano seguinte ela me telefonou várias vezes. Queria me ver e falar
comigo. Disse que era urgente. Eu não dei muita atenção pois tinha voltado à
minha vida corriqueira, quieta e medíocre.
Anos
mais tarde eu soube que ela teve uma filha e se casou. Nessa ordem. E que o
marido adotou a paternidade da filha. Essa dúvida persiste até hoje.
Principalmente porque, com a popularização da Internet e redes sociais eu a
localizei no mundo virtual e enviei correios eletrônicos. Ela não respondeu e
desapareceu do mundo virtual. É a segunda mulher com quem cruzei na vida,
intimamente, que desapareceu. O mistério permanece. Eu teria ou não teria uma
filha?
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