sexta-feira, 15 de abril de 2016

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA XVII


Pois é, os tempos de hoje, dia em que escrevo, estão incertos, alguns ratos invadem a sala de jantar, não se contentam em dominar os jardins da casa, querem desalojar os cuidadores da cozinha. Porque donos a casa não tem, habitamos em um condomínio com direção colegiada. Com isso lembrei-me de acontecimentos dos anos oitenta e cinco, para ser mais preciso, ou impreciso, nem sei, entre oitenta e cinco e noventa, mais ou menos. Em oitenta e cinco tivemos o fim dos governos militares, algo que a mídia política costuma chamar de redemocratização do país, coisa que, agora fica tão claro, nunca aconteceu de fato. E relembro de um caso acontecido com uma pessoa amiga minha que vem a demonstrar aquilo que vou começar a narrar agora, que os donos do poder nunca mudaram de lugar.
Pois bem, esse meu amigo era bancário, tinha cargo de gestão em banco estatal e, como pessoa politizada e inconformada que era, atuava também no sindicato dos bancários e ajudava as associações de bairro a se constituírem e se legalizarem. Essas ações não foram muito bem digeridas pelos chefes dos bancos e meu amigo foi demitido por justa causa. Ser demitido por justa causa significa, ainda hoje, perder todos os direitos trabalhistas e ainda ficar com a carteira profissional manchada. Quer dizer, ninguém mais o contrata. Essa pessoa passou a trabalhar em pequenos expedientes, teve um infarto sério que lhe deixou sequelas cardíacas e nunca mais conseguiu um trabalho nas mesmas condições que tinha antes. Passou a trabalhar em serviços sem carteira assinada, ou como porteiro de prédio, faxineiro, coisas assim. De gerente e tesoureiro de banco terminou os dias como porteiro de prédio. E para não ser preso teve que tirar uma foto ao lado de um político influente da época, porque os amigos da ditadura o perseguiam.

Aí que a história fica interessante, porque esse bravo lutador entra com uma ação na maravilhosa e neutra “justiça” brasileira, numa vã tentativa de obter sua aposentadoria, dada a sua condição de pessoa com a saúde debilitada. Ação contra o estado sabemos como são, ganha-se na primeira instância, vai para a segunda, terceira e assim por diante, até chegar no Supremo Tribunal Federal muitos anos depois. E assim aconteceu. A ação teve início ainda nos anos setenta e, em oitenta e cinco, com a tal redemocratização, novas esperanças surgiram. A ação já estava em última instância e esperava-se uma sentença conclusiva para breve, por breve entenda-se uns dois ou três anos mais. Mas eram tempos de esperança, que nem a morte de Tancredo apagou, já que Sarney jurou manter o rumo traçado pelo primeiro. E o ministro da Previdência Social era um jornalista conceituado no mundo da política que jurou acabar com os altos salários de alguns aposentados, chamados na época de “marajás” do INSS.

E foi então que dois fatos inusitados aconteceram. Primeiro, o ministro publicou com alarde, nos grandes jornais do país, a tal lista de marajás. E não é que o nome de meu amigo estava na lista? Demitido por justa causa, sem saúde, trabalhando de porteiro de prédio com um salário mínimo por mês, com uma ação na justiça para conseguir se aposentar por invalidez, era agora um marajá da Previdência Social. Ele e muitos outros que também acionavam o governo. Segundo fato, mais inusitado ainda, a sala do Supremo onde estavam arquivados os processos em julgamento, em Brasília, foi incendiada e todos aqueles processos se perderam. Ou seja, o tal novo governo democrático não era democrático porra nenhuma.


Claro que rimos muito, uma das características dessa pessoa era seu bom humor. Claro também que ele não viveu muito tempo mais. E para não perder o humor nem na tragédia veio a falecer no Natal. Silenciosamente. O encontramos no quintal, de manhazinha, depois de uma noite muito agradável, de boas conversas. Claro também que nossa democracia não avançou, hoje temos certeza. As diferenças sociais continuam, houve um disfarce nos três governos petistas, um disfarce muito frágil, tanto que os velhos donos do poder voltam a querer tomá-lo, na marra, no golpe baixo. E com o aplauso de metade da população brasileira. Prenúncios de novo caos social. Veremos.

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