domingo, 17 de julho de 2016

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA XXIII


As viagens de minha imaginação e memória são totalmente erráticas, vem e vão no tempo, acendem à medida que uma lembrança surge em meu pensamento e sinto vontade de escrever sobre o assunto. Parece que sempre tem alguma coisa que ficou para trás, algo que valeria a pena narrar, mesmo sem autorização para fazê-lo. Claro que quero contar histórias interessantes, falar das coisas boas que me aconteceram, ressiginificar, de forma positiva, meu passado e de algumas pessoas que rodeiam minha vivência. Já ouvi da boca de historiadores que o bom da História é que podemos contá-la de outra maneira, da nossa maneira, e assim mudar nosso passado. Ele já passou, então modificá-lo não tem importância. Claro, existem os fatos marcantes, e as narrativas dos milhares de pessoas precisam convergir em alguma coisa que se aproxima da verdade sobre os fatos, mas, isoladamente ninguém, nenhum narrador, tem compromisso com a verdade dos outros, apenas com a sua própria verdade. E a verdade de cada um é aquilo que o constrói, que faz dele um cidadão respeitável. Sem querer estou justificando minha aventura, a de contar, à minha maneira, ou à maneira desse narrador desautorizado, acontecimentos de minha vida.

Durante três anos, entre os quinze e quase dezoito anos, eu frequentei o Colégio Estadual Augusto de Lima, em Nova Lima. Cursei o então chamado curso científico, hoje correspondente ao Ensino Médio. Algumas de minhas lembranças são difusas,  a gente se lembra de acontecimentos marcantes, e eles estão fugindo de minha memória, provavelmente porque deixaram de ser marcantes. Como assim? Como um acontecimento marcante de nossa juventude desaparece aos poucos de nosso pensamento? Aquela fase de minha juventude não existe mais? O que mais lembro desses três anos, é de minha total irresponsabilidade com a vida. Isso mesmo, eu era um irresponsável incorrigível. Sem querer analisar mas esboçando uma análise provisória, meus pais eram tão exigentes, tão ameaçadores, tão severos, que o contraponto a isso era viver uma vida o mais irresponsável possível para não se sentir vazio. Porque a responsabilidade era deles, não minha. Bom, eu não fumei maconha, pitava um cigarrinho escondido, um holiude (hollywood) com filtro, naquela época surgiram os cigarros com filtro para diminuir a nicotina (será?), maconha eu provei só mais tarde, já adulto, sabendo o que fazia e aquilo não teve a menor importância. Eu também não bebia, apenas de vez em quando, aos fins de semana eu tomava uma cerveja com os colegas. Isso não significa que não tenha tomado uns porres, sim me embebedei algumas vezes, não muitas, e sabia que a repreensão em casa seria severa. Minha atitude de rebeldia doméstica era tramada aos poucos, não era coisa de rompantes, eu pensava o que iria aprontar e como enganar meu pai para ele nem ficar sabendo ou para ele ter ideia do acontecido sem ter a dimensão exata de minhas experiências. Porque a essa altura eu já estava cansado de tomar porradas, então eu precisava de coisas para enganar o velho e ele ficar na dúvida se aquilo aconteceu ou não. Isso até me dava certa satisfação e não fazia de mim um marginal desvairado, daqueles dos filmes de James Dean, de Juventude Transviada, o termo era esse, eu não era um transviado (palavra perdida no túnel do tempo, um dos significados de transviado no dicionário online de minha preferência diz: “Que se opõe aos padrões comportamentais preestabelecidos ou vigentes”).  Curiosamente, eu tinha uma grande admiração pelos transviados de minha geração, mas não me comprometia com eles, não era um deles. Eu apenas os acompanhava à distância, como se as transgressões às regras que eles cometiam fosse ter efeitos colaterais em mim, ou como se eu pudesse aproveitar desses efeitos colaterais na sociedade. Aliás, foi exatamente o que aconteceu. Como, por exemplo, deixar os cabelos crescerem, usar calças jeans (eram importadas na época), ouvir e cantar rock’n roll (Beattles, Rolling Stones, Jethro Tull, Genesys, Moody Blues e outras, todas elas formadas lá nos anos sessenta, eram minhas bandas favoritas). E esse era um dos pilares da rebeldia. Em minha casa não tinha TV, essa coisa que se implantou como uma praga na nossa vida social na segunda metade dos anos sessenta, no Brasil, e o rádio, único rádio construído aos poucos com peças vindas pelo correio, era propriedade do patriarca, então só se escutava aquela merda de Rádio Itatiaia e as porcarias da Rádio Inconfidência, como Hora do Fazendeiro. Música, só caipira, preferidas de meu pai, e boleros, preferidos de minha mãe.

Aqui sou obrigado a fazer um parêntesis. Hoje eu rendo homenagem às duas estações de rádio citadas, adoro música caipira mineira de raiz, as vozes daqueles cantores de bolero e samba-canção me encantam, muito embora o rock’n roll continue no sangue. E ainda agreguei o samba, o jazz e o blues, além dos clássicos. Aliás, hoje, até mesmo o rap e o funck, porque não? A música evolui, transvia-se, e nós nos transviamos juntos, claro.

No Colégio Estadual eu estudava à noite e as lembranças boas da época vão se esvaindo aos poucos, como nuvens, as ruins também, se existiram já se evaporaram. Haviam lances desagradáveis, com o tempo eu superei qualquer tipo de trauma que eles puderam ter provocado em mim. Eu sei que sendo um jovem feio, magrelo, alto, de espinhas na cara, cabeçudo, pobre, mulato, morando longe e estranhamente  inteligente (isso já era demais para muitos colegas) as minhas chances de passar ileso sem sofrer provocações de colegas eram nulas. Hoje chama-se a isso de bullying. Mas eu penso que era tão gente boa, ou tão ingênuo, que nada disso me incomodava. Felizmente os registros de incidentes por isso são pequenos, quase nada. Às vezes me encontro com um antigo colega que me reconhece e vem me cumprimentar e eu o provoco: você era aquele que rabiscou minha caderneta escolar, transformou meu retrato em careta, e rasurou minhas notas boas o que me obrigou a passar umas horas na sala da diretora ouvindo um sermão? Ou você era aquela professora que reduziu minha nota porque dizia que minha letra era feia embora eu não tivesse errado nada? Minha pequena vingança é deixar essas pessoas sem graça, meu máximo de malvadeza. Nem sei se isso me dá prazer ou se apenas aviva minha memória, mas não tenho muita paciência com hipocrisias. Mais triste é lembrar daquela irmã de uma colega boazuda, a irmã, a colega nem tanto, a quem eu lancei uma cantada com muito custo, superando uma timidez quase infinita e ela me deu uma esnobada grandiosa, me colocando no chão a rastejar como calangos. Penso que vem daí minha predileção pelos calangos, esses animaizinhos rastejantes e sobreviventes entre pedras do jardim. Mais tarde eu me vinguei também grandiosamente namorando sua irmã mais nova só para provocar. Ela nem me deu bola, nem antes nem depois. Eu também não importei com isso, fiz o gênero ‘você não gosta de mim mas sua irmã gosta”.

A nossa predileção nessa época de escola era enganar o disciplinário, que fincava os olhos vigilantes nos alunos do científico, pois gostávamos de chegar atrasados e sair antes da hora, pela porta principal era impossível, então fizemos uma passagem secreta pelos fundos do colégio. De vez em quando resolvíamos fugir em massa no último horário, o professor do dia chegava e não encontrava ninguém. Atrás do muro havia um matagal por onde desbravamos um caminho que chegava ao Rego Grande que ultrapassávamos através de uma ponte improvisada, de madeira, escondida no mato. Nunca fomos descobertos pelo possesso e intrigado disciplinário. Ele chegou a implorar a colegas que o mostrassem nossa passagem secreta, nenhum de nós foi traidor no processo. Curioso é que os colegas de outras séries também não sabiam do caminho.

O principal motivo de nossas fugidas, meu pelo menos, era ir ao cinema, Cine Ouro ou ao cinema do Teatro Municipal. Como eu adorava cinema, era muito comum eu assistir aos filmes interessantes no meio da semana, nos fins de semana minhas obrigações trabalhistas e domésticas eram muito grandes. Dinheiro quase nunca eu tinha, o que me valia era a cumplicidade do porteiro do cinema que me passava escondido ou fingia receber de minhas mãos um ‘bilhete’. Sem ele minha cultura cinematográfica não seria a mesma. Eu era irresponsável, mas tinha bons amigos também. Esses amigos, perdidos no passado, foram o que de melhor ficou de todas as minhas vivências. A irresponsabilidade para algumas questões também. Não nego que minha tranquilidade de hoje é um pouco herdeira da irresponsabilidade daquela época, transformada pelas experiências da vida (por experiência pode-se traduzir as inúmeras porradas que a existência me concedeu e me fizeram amadurecer como banana caturra no cesto de palha envolvida no  jornal).

  

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