As viagens de minha imaginação e memória são
totalmente erráticas, vem e vão no tempo, acendem à medida que uma lembrança
surge em meu pensamento e sinto vontade de escrever sobre o assunto. Parece que
sempre tem alguma coisa que ficou para trás, algo que valeria a pena narrar,
mesmo sem autorização para fazê-lo. Claro que quero contar histórias interessantes,
falar das coisas boas que me aconteceram, ressiginificar, de forma positiva,
meu passado e de algumas pessoas que rodeiam minha vivência. Já ouvi da boca de
historiadores que o bom da História é que podemos contá-la de outra maneira, da
nossa maneira, e assim mudar nosso passado. Ele já passou, então modificá-lo
não tem importância. Claro, existem os fatos marcantes, e as narrativas dos
milhares de pessoas precisam convergir em alguma coisa que se aproxima da
verdade sobre os fatos, mas, isoladamente ninguém, nenhum narrador, tem
compromisso com a verdade dos outros, apenas com a sua própria verdade. E a
verdade de cada um é aquilo que o constrói, que faz dele um cidadão respeitável.
Sem querer estou justificando minha aventura, a de contar, à minha maneira, ou
à maneira desse narrador desautorizado, acontecimentos de minha vida.
Durante três anos, entre os quinze e quase dezoito
anos, eu frequentei o Colégio Estadual Augusto de Lima, em Nova Lima. Cursei o
então chamado curso científico, hoje correspondente ao Ensino Médio. Algumas de
minhas lembranças são difusas, a gente
se lembra de acontecimentos marcantes, e eles estão fugindo de minha memória,
provavelmente porque deixaram de ser marcantes. Como assim? Como um
acontecimento marcante de nossa juventude desaparece aos poucos de nosso
pensamento? Aquela fase de minha juventude não existe mais? O que mais lembro
desses três anos, é de minha total irresponsabilidade com a vida. Isso mesmo,
eu era um irresponsável incorrigível. Sem querer analisar mas esboçando uma
análise provisória, meus pais eram tão exigentes, tão ameaçadores, tão severos,
que o contraponto a isso era viver uma vida o mais irresponsável possível para
não se sentir vazio. Porque a responsabilidade era deles, não minha. Bom, eu não
fumei maconha, pitava um cigarrinho escondido, um holiude (hollywood) com
filtro, naquela época surgiram os cigarros com filtro para diminuir a nicotina
(será?), maconha eu provei só mais tarde, já adulto, sabendo o que fazia e
aquilo não teve a menor importância. Eu também não bebia, apenas de vez em
quando, aos fins de semana eu tomava uma cerveja com os colegas. Isso não
significa que não tenha tomado uns porres, sim me embebedei algumas vezes, não
muitas, e sabia que a repreensão em casa seria severa. Minha atitude de
rebeldia doméstica era tramada aos poucos, não era coisa de rompantes, eu
pensava o que iria aprontar e como enganar meu pai para ele nem ficar sabendo
ou para ele ter ideia do acontecido sem ter a dimensão exata de minhas
experiências. Porque a essa altura eu já estava cansado de tomar porradas,
então eu precisava de coisas para enganar o velho e ele ficar na dúvida se
aquilo aconteceu ou não. Isso até me dava certa satisfação e não fazia de mim
um marginal desvairado, daqueles
dos filmes de James Dean, de Juventude Transviada, o termo era esse, eu não era
um transviado (palavra perdida no túnel do tempo, um dos significados de
transviado no dicionário online de minha preferência diz: “Que se opõe aos padrões
comportamentais preestabelecidos ou vigentes”). Curiosamente, eu tinha uma grande admiração
pelos transviados de minha geração, mas não me comprometia com eles, não era um
deles. Eu apenas os acompanhava à distância, como se as transgressões às regras
que eles cometiam fosse ter efeitos colaterais em mim, ou como se eu pudesse
aproveitar desses efeitos colaterais na sociedade. Aliás, foi exatamente o que
aconteceu. Como, por exemplo, deixar os cabelos crescerem, usar calças jeans
(eram importadas na época), ouvir e cantar rock’n roll (Beattles, Rolling
Stones, Jethro Tull, Genesys, Moody Blues e outras, todas elas formadas lá nos
anos sessenta, eram minhas bandas favoritas). E esse era um dos pilares da
rebeldia. Em minha casa não tinha TV, essa coisa que se implantou como uma
praga na nossa vida social na segunda metade dos anos sessenta, no Brasil, e o
rádio, único rádio construído aos poucos com peças vindas pelo correio, era
propriedade do patriarca, então só se escutava aquela merda de Rádio Itatiaia e
as porcarias da Rádio Inconfidência, como Hora do Fazendeiro. Música, só caipira,
preferidas de meu pai, e boleros, preferidos de minha mãe.
Aqui
sou obrigado a fazer um parêntesis. Hoje eu rendo homenagem às duas estações de
rádio citadas, adoro música caipira mineira de raiz, as vozes daqueles cantores
de bolero e samba-canção me encantam, muito embora o rock’n roll continue no
sangue. E ainda agreguei o samba, o jazz e o blues, além dos clássicos. Aliás,
hoje, até mesmo o rap e o funck, porque não? A música evolui, transvia-se, e nós
nos transviamos juntos, claro.
No Colégio Estadual eu estudava à noite e
as lembranças boas da época vão se esvaindo aos poucos, como nuvens, as ruins
também, se existiram já se evaporaram. Haviam lances desagradáveis, com o tempo
eu superei qualquer tipo de trauma que eles puderam ter provocado em mim. Eu
sei que sendo um jovem feio, magrelo, alto, de espinhas na cara, cabeçudo,
pobre, mulato, morando longe e estranhamente
inteligente (isso já era demais para muitos colegas) as minhas chances
de passar ileso sem sofrer provocações de colegas eram nulas. Hoje chama-se a
isso de bullying. Mas eu penso que era tão gente boa, ou tão ingênuo, que nada
disso me incomodava. Felizmente os registros de incidentes por isso são
pequenos, quase nada. Às vezes me encontro com um antigo colega que me
reconhece e vem me cumprimentar e eu o provoco: você era aquele que rabiscou
minha caderneta escolar, transformou meu retrato em careta, e rasurou minhas
notas boas o que me obrigou a passar umas horas na sala da diretora ouvindo um
sermão? Ou você era aquela professora que reduziu minha nota porque dizia que
minha letra era feia embora eu não tivesse errado nada? Minha pequena vingança
é deixar essas pessoas sem graça, meu máximo de malvadeza. Nem sei se isso me
dá prazer ou se apenas aviva minha memória, mas não tenho muita paciência com
hipocrisias. Mais triste é lembrar daquela irmã de uma colega boazuda, a irmã,
a colega nem tanto, a quem eu lancei uma cantada com muito custo, superando uma
timidez quase infinita e ela me deu uma esnobada grandiosa, me colocando no
chão a rastejar como calangos. Penso que vem daí minha predileção pelos
calangos, esses animaizinhos rastejantes e sobreviventes entre pedras do
jardim. Mais tarde eu me vinguei também grandiosamente namorando sua irmã mais
nova só para provocar. Ela nem me deu bola, nem antes nem depois. Eu também não
importei com isso, fiz o gênero ‘você não gosta de mim mas sua irmã gosta”.
A
nossa predileção nessa época de escola era enganar o disciplinário, que fincava
os olhos vigilantes nos alunos do científico, pois gostávamos de chegar
atrasados e sair antes da hora, pela porta principal era impossível, então
fizemos uma passagem secreta pelos fundos do colégio. De vez em quando
resolvíamos fugir em massa no último horário, o professor do dia chegava e não
encontrava ninguém. Atrás do muro havia um matagal por onde desbravamos um
caminho que chegava ao Rego Grande que ultrapassávamos através de uma ponte
improvisada, de madeira, escondida no mato. Nunca fomos descobertos pelo
possesso e intrigado disciplinário. Ele chegou a implorar a colegas que o
mostrassem nossa passagem secreta, nenhum de nós foi traidor no processo.
Curioso é que os colegas de outras séries também não sabiam do caminho.
O
principal motivo de nossas fugidas, meu pelo menos, era ir ao cinema, Cine Ouro
ou ao cinema do Teatro Municipal. Como eu adorava cinema, era muito comum eu
assistir aos filmes interessantes no meio da semana, nos fins de semana minhas
obrigações trabalhistas e domésticas eram muito grandes. Dinheiro quase nunca
eu tinha, o que me valia era a cumplicidade do porteiro do cinema que me
passava escondido ou fingia receber de minhas mãos um ‘bilhete’. Sem ele minha
cultura cinematográfica não seria a mesma. Eu era irresponsável, mas tinha bons
amigos também. Esses amigos, perdidos no passado, foram o que de melhor ficou
de todas as minhas vivências. A irresponsabilidade para algumas questões
também. Não nego que minha tranquilidade de hoje é um pouco herdeira da
irresponsabilidade daquela época, transformada pelas experiências da vida (por
experiência pode-se traduzir as inúmeras porradas que a existência me concedeu
e me fizeram amadurecer como banana caturra no cesto de palha envolvida no jornal).
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