Minha mãe tem noventa e dois anos, quase noventa
e três, e mora em uma casa com três quartos, dois banheiros, sala, copa,
cozinha, varanda, jardim e quintal. Morava sozinha depois do falecimento do
pai. Como as debilidades foram surgindo não mais a deixamos sozinha. Durante os
dias úteis tem a S., funcionária contratada para cuidar dela. S. tem grande
cuidado com ela, lava, passa, cozinha, faz massagens, conversa e a acompanha. À
noite ela tem a companhia do neto, J., 40 anos, solteiro e morador da mesma
casa. J. entra e sai o dia inteiro, vende carros e está sempre presente à
noite. Ele presta atenção nas necessidades dela, faz compras e a atende caso
ela precise. R., mãe de J. cuida das finanças. Ela quem tem a conta de banco e
o cartão de débito. J. fica com o cartão, faz as compras e presta contas à mãe.
Portanto, nada falta a Jandira, a mãe. Na casa tem telefone, televisão e internet,
tudo pela mesma empresa de comunicação.
- Eu não uso internet, pra quê internet?
- Mãe, você não usa, mas todos que vêm aqui
ficar com você usam. E o preço do pacote (combo) TV, telefone e internet fica
bem em conta.
- Ah, bom!
Na sexta-feira fim de tarde, J. sai de casa e
vai para a casa da namorada. Só que Jandira não gosta que ela durma em sua casa
com ele porque não são casados.
- Mãe, eles são adultos, grandes, namorados
há tempos e com fé. Namorado com fé, casado é.
- Hoje os costumes são outros. No meu tempo
...
De sexta-feira fim de tarde a domingo à noite
precisamos nos revezar na presença e no cuidado com a Jandira. Os filhos mais
próximos se revezam nesse cuidado. Hoje é feriado, eu cheguei ontem às
dezessete horas e fico até amanhã às nove horas. A intenção aqui é fazer um
registro desses momentos em que estou com ela. Ao todo serão quarenta horas com
Jandira. Cheguei e ela foi logo dizendo:
- Oi filho, veio sozinho?
- Sim, mãe.
- Silvania está em casa ou viajando?
-Está em casa, mãe. (Tem quase um ano que nos
separamos, mas ela sempre pergunta a mesma coisa).
- Eu estou um caco. Não dou conta de mais
nada.
- Você está bem, mãe.
- A mão está dormente. Não consigo pegar mais
nada. E as pernas não me obedecem.
- É assim mesmo, mãe. Eu também estou
começando a ficar assim. Seguindo seus passos.
Mais tarde:
- Júlio sumiu. Tem quase um mês que não vejo
Júlio. (Ele esteve aqui semana passada, mas para ela tem quase um mês). Amélia
também sumiu. Tem tempo para sair com Regina, mas não tem tempo para me
visitar. (Amélia esteve aqui ontem).
São dezoito horas e a casa já está toda
fechada. Ela sai fechando todas as portas e janelas.
- Eu fico muito sozinha, tenho que fechar
tudo. Francisco que gostava de janelas abertas. Mas alguém pode entrar.
- Mãe, você não está sozinha. Eu estou aqui.
Pode deixar que eu fecho.
- Vocês esquecem de fechar. É perigoso.
- Mãe, a casa sempre ficou aberta e em mais
de quarenta anos ninguém entrou.
- Mas é porque seu pai estava aqui.
- Hoje J. está aqui. Ele fecha.
- J. esquece de tudo. Esquece até onde põe a
cabeça. Ele mora aqui e não tem despesa com nada. Eu que pago tudo. E ele não
tem tempo para ficar comigo.
- Mãe, ele está aqui todos os dias.
- Ao mesmo tempo que está, não está mais. E
sou eu que pago a água que ele toma banho. Três vezes por dia. E troca de
camisa três vezes por dia. Haja água para lavar roupa.
- Você quer que ele vá embora?
- Não, pelo menos tem um homem em casa!
- Ah, bom!
Ela volta a conferir se todas as portas e
janelas estão fechadas.
- Você pôs o carro na garagem?
- Sim,
mãe.
- Fechou o portão bem fechado? Deu duas
voltas na chave?
- Sim, mãe. Tudo fechado. Nem o diabo consegue
entrar.
- Você quer comer alguma coisa? Tem comida na
geladeira. (Isso meia hora depois de assar batatas doces, que comemos juntos.)
Em frente à TV, assistindo os jornais
televisivos, em canais diferentes:
- Só violência! E o Bozo ainda quer liberar o
porte de armas. Aí que o trem vai feder mesmo!
- Boa, mãe. Tem que xingar muito o Bozo
mesmo. Quem sabe ele te escuta?
- Você fechou o portão da garagem?
- Sim, mãe.
- Confere se fechou mesmo!
Saí, fingi que fui ao portão e voltei
dizendo: - Está tudo fechado, mãe. Nem o diabo não entra.
- Não entra porque eu rezo.
- Ele não entra porque eu fiz um despacho no
portão.
- Serve também. Tudo serve. Não quer comer
nada não, filho?
- Não, mãe. Depois daquelas batatas doces assadas
não tenho mais fome.
- Eu também não. Não como quase nada.
Daí uns minutos ela se levanta, vai até a
cozinha e volta com uns biscoitos na mão. – Isso é só para beliscar.
Assistindo a TV: - Esse povo arruma uma
falação! Não aguento mais tanta falação. Eu não entendo quase nada. Fechou a
janela de seu quarto?
- Sim, mãe.
- Já tomou banho?
- Tomo na hora de deitar.
- Eu também gosto de tomar banho um banho
quente e ir direto para debaixo das cobertas.
- Você devia tomar banho cedo, mãe. Agora
está muito frio.
- É mesmo. Tem um vento entrando não sei de onde.
Ela se levanta e vai conferir as janelas.
- Tudo fechado, mãe?
- Sim, nem o diabo não entra.
- Se bobear ele entra sim. Tem que colocar
arruda nas portas e janelas.
- Precisa não. Tenho um pacto com Deus.
- Ele não entra porque você tranca tudo.
- Quer comer nada não? Se quiser você mesmo
prepara.
Depois dos jornais começamos a assistir
futebol. Jandira adora futebol, não importa quem está jogando. Melhor ainda se
for o Cruzeiro, mas ela assiste qualquer jogo.
- Tem que torcer para o Galo, mãe. Tá com um
time melhor.
- Torço pro Galo também. Só não torço quando
ele joga contra o Cruzeiro.
Vou à cozinha e lhe trago um copo de água.
- Tenho sede não, filho.
- Velho não tem sede, mãe. Mas tem que beber
água assim mesmo. Senão seca e fica desidratada. Água é mais importante que
comida.
- Eu quase não como. Eu só belisco. (Depois de
comer um pacotinho de biscoitos).
Continuamos assistindo ao jogo de futebol.
Ela teve sono e se levanta para ir dormir. Antes de ir par ao quarto confere
portas e janelas.
- Tudo fechado, mãe.
- Mas tem um vento entrando, não sei de onde.
- Isso é o diabo querendo entrar e não
consegue, mãe. Então ele sopra nas fendas das janelas.
- Mas o sopro do diabo é quente. E esse está
muito frio.
Ela entra par ao quarto, toma banho, veste o
pijama e volta para conferir portas e janelas.
- Boa noite, filho.
- Boa noite, mãe.
Levanto cedo, seis horas, faço o café da
manhã, ponho à mesa. Mesa posta mamãe se levanta. Ela come pão de forma com
queijo aquecidos no grill, café com leite bem quente. Apenas isso.
- Eu sou ruim para comer de manhã. Aliás eu
sou ruim para comer qualquer hora.
Essa frase ela diz todos os dias no café da
manhã. Depois do café, que tomamos juntos, peguei o jornal que já estava na
varanda, deixei-a lendo e fui caminhar.
- Volto em uma hora, mãe. Não faz arte na
minha ausência não.
- Pode deixar. Ficarei quietinha lendo o
jornal.
Voltei mais ou menos uma hora depois e ela
ainda lia o jornal. Depois fui podar as roseiras, lavar o carro, arrumar um
canteiro para plantar couves. E ela andava para lá e para cá. Não parava um
minuto. E reclama da funcionária.
- S. é boa pessoa, mas é ruim de serviço.
Quer mandar mais que eu. Não faz nada do meu jeito. Eu que tô pagando mas ela
faz tudo do jeito que ela quer. Tem carteira assinada, férias, tudo que tem
direito, mas não faz nada com eu quero. E R. que trata com ela. E ela faz do
jeito que R. manda e autoriza. Eu já não mando mais nada.
- Você quer que manda ela embora, mãe?
- Não, a gente não acha outra. Então eu fico
calada.
- Você já mandou muito, mãe. Mandava em papai
e mandava na gente. Agora pode parar de mandar um pouco.
- É. Já posso morrer mesmo. Não sirvo nem
para mandar. Agora tenho que obedecer.
- Sossega, mãe. Você vive muito ainda. Vai
chegar aos cem anos.
- Deus me livre! Ele pode me levar a qualquer
hora.
- Pra você mandar nele? Ele não quer isso
não. Você tem mais de noventa anos e nem toma remédio. Nem um comprimido para
dor!
- Ah, isso é. Minha saúde é muito boa. Eu sou
enrugada só por fora. Por dentro eu sou lisinha.
- Deus não quer você tão cedo!
Tirei uma carne de frango do congelador e
deixei na pia para degelar enquanto eu cuidava do canteiro de couve.
- Mão, o almoço é comigo. Você nem entra na
cozinha.
- Tá bom.
Mas enquanto eu estava no quintal ela colocou
os pedaços de frango na panela com um pouco de água e acendeu a chama, para
degelar mais depressa e colocou batas para cozinhar. Eu só percebi porque
acabou o gás e ela veio até mim para eu trocar o gás. Os dois botijões estavam
vazios e tive que chamar o vendedor que chegou uns quinze minutos depois.
- Viu só? J. e S. não prestam para nada. Nem
perceberam que o gás tinha acabado para comprar o botijão. E ele dura uns dois
meses.
- Amanhã dou uma bronca neles, mãe. Deixa
comigo. E quem mandou você colocar o frango e as batatas para cozinhar? Não era
isso que eu queria fazer. Assim você me obriga a fazer frango ensopado. Exatamente
o que eu fiz da última vez que cozinhei aqui, porque você fez a mesma coisa. Se
adiantou ao chef e se meteu na cozinha. Quem cozinha não gosta dessa
intromissão.
- Eu sei, você aprendeu comigo.
- E tem outra coisa. Suas mãos não estão
aguentando peso. Se você pega uma panela com água quente e não aguenta segurar
ela entorna em você e te queima. Por isso não quero você na cozinha.
- Isso é verdade. Tá bom!
Assim fiz almoço (frango ensopado, mas mudei
o tempero), comemos tranquilos e em silêncio. Logo em seguida recebemos o
telefonema de J. R. (em vídeo pelo WhatsApp) e de Júlio. Ela não escuta quase
nada, tenho que traduzir as conversas para ela, mas ela fica feliz em falar com
eles. Depois foi dormir.
À dezesseis horas e trinta minutos a casa já
estava toda fechada. Tomamos um cafezinho e ela começou a fechar as janelas dos
quartos dos fundos.
- Ainda é cedo, mãe, e você já fecha a casa?
- Esses quartos ficam isolados, e a gente lá
na frente. É perigoso.
- Que perigo, mãe?
- Melhor prevenir.
- Tá fechando aqui na frente também?
- Sim, está frio e ventando.
- Tá bom, mãe.
Ligo a TV e está passando um jogo de seleções
sub dezessete: Brasil versus Chile. Ela se senta na cadeira reclinável e começa
a assistir. Como gosta de futebol.
- Você não comeu nada de tarde, filho.
- Comi sim, mãe. Uma banana.
- Isso é pouco. Come mais.
Peguei uns biscoitos, abri o pacote, tirei um
e deixei o pacote com ela.
- Eu só como um.
- Então deixa o pacote aí, depois comemos
mais.
Tempos depois procurei o pacote para guardar,
não havia mais. Comeu tudo. Uma hora depois:
- Você não vai comer nada não, Paulo?
- Já comi, mãe. Naquela hora do café comi um
biscoito do você e uma banana. Você só pensa em comer?
É que não vejo você comer nada!
- Preocupa não, mãe. Fome eu não passo.
Meia hora depois: - Você não come nada não,
Paulo?
- Já comi, mãe.
Dezoito horas e tudo fechado e luzes
apagadas. Eu estava sentado no sofá da sala, ela entra e abre a janela.
- Você fechou a janela há pouco. Agora abre?
- É. J. me xinga porque eu fecho a casa toda.
Mas eu fico muito sozinha.
-Fica mais não, mãe. Tem sempre alguém aqui.
- Estou abrindo porque acho que você também
não gosta de tudo fechado.
- Pode deixar. Está muito frio.
- Você não quer comer nada não?
- Não, mãe. Já comi.
- Não vejo você comendo nada.
- Eu como escondido.
- Ah é? Eu não como quase nada.
Fechou a janela, de novo.
- Quando for preparar algo para comer,
precisa gastar aqueles ovos que estão na geladeira. Tem dias que eles estão lá.
- Certo, mãe.
- Você não come nada à tarde.
- Comi sim, mãe.
- Mas eu não vi.
- Comi escondido. Adoro comer escondido.
Depois de vinte horas eu fui para a cozinha e
preparei ovos mexidos na manteiga, com brócolis picado, queijo e cebolas. Mamãe
comeu bem e achou ótimo.
- Veja, mãe. Agora estou comendo.
- E ficou muito gostoso. Obrigado.
Assistimos mais um pouco de TV e fomos dormir
cedo. Tive que ir a seu quarto porque é lá que ela guarda as roupas de cama do
quarto de hóspedes onde durmo. Ela se esqueceu de me entregar edredom e
travesseiro, como faz sempre.
Acordo cedo (seis horas e trinta minutos)
faço o café, fervo o leite, asso bananas, aqueço o pão com queijo no grill,
ponho à mesa. Ela se levanta e fica toda feliz de encontrar a mesa pronta.
Tomamos café juntos.
- Quer mais alguma coisa, mãe?
- Não filho. Eu sou ruim para comer no café
da manhã. Aliás, eu sou ruim para comer a qualquer hora. Quase não como.
Ela sempre põe mais comida no prato que
consegue comer. Estratégia? Preparo-me para sair. Procuro as chaves do carro e
não encontro onde as deixei. Ela sempre as guarda em algum lugar e não se
lembra onde. Mas eu já conheço seus esconderijos e as encontro fingindo que
procuro muito. Saio de casa e a deixo no portão, como sempre, olhando o carro
se afastar e sumir na curva. Vou abençoado.
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