Nasci magro e feio em um hospital
de empresa no Vale do Aço, Minas Gerais. Magro e feio é a própria descrição de
minha mãe. Foi o que ela sempre disse em rodas de conversa com amigas. E eu
escutava. Embora magro e feio fui bastante visitado no hospital, também segundo
minha mãe. No mesmo dia estava internado no mesmo hospital uma figura importante,
tipo deputado, algo assim, e que ficava no quarto ao lado. Então muitas pessoas
que visitavam tal deputado, por tabela, me visitavam também. Rico tem dessas
coisas, quando visitam um parente no hospital, visitam também os pobres
vizinhos dos leitos ao lado. Espírito de caridade. Pobre sempre serviu para
isso, para os ricos católicos fazerem caridade. Por isso, talvez, na cabeça
deles, a pobreza não pode acabar. Como os ricos católicos, ou ricos religiosos
de outras religiões, fariam sua sagrada caridade, aquela que lhes garantiria
uma entrada na porta do céu, com direito a entrevista do próprio porteiro (santo
quem?). Hoje, também, não existe mais essa possibilidade. Claro, em que
hospital dos dias de hoje o rico e o pobre convivem em quartos vizinhos? Não
existe, claro. Onde já se viu pobre no mesmo hospital que rico? A segregação,
hoje, não é maior, é diferente. Mas é mais violenta.
Como os tempos eram outros, nasci
em berço de prata. Berço de ouro seria muito eufemismo, né? Berço de prata é
uma boa descrição. Hoje eu durmo em cama de ouro, com uma mulher que eu
escolhi, e nem precisei ir para Passárgada, como o poeta, mas essa história é
exatamente a que eu quero contar, nessa minha autobiografia desautorizada,
autobiografia de um homem que se descobre vulnerável. Tentarei ser o mais
objetivo possível, antes que o autobiografado desista de desautorizar o feito e
não terei aquela emoção de escrever minha biografia sem o meu consentimento.
Depois de meu nascimento, talvez
por uma questão puramente geográfica, mas na verdade foi por puro machismo
dele, e por desrespeito à mulher com quem se casar e com o filho que acabara de
ter, meu pai se demitiu da empresa e lá fomos nós pelo mundo afora. Caímos na
estrada, nas rodas dos caminhões e a vida continuou nos caminhos da rodovia em
construção. Excesso de confiança de meu pai? Irresponsabilidade? Sei lá, o que
me contaram é que, por não ter conseguido onde morar, em casa da empresa, ele
se mandou, por pura teimosia. Teimosia era sua marca. Ô velho teimoso! Uma
teimosia que marcaria para sempre sua vida e a vida de sua família. E aí, a
poeira das estradas em construção passou a ser uma presença em nossas narinas.
E vidas. De Belo Horizonte a Teófilo Otoni.
A primeira lembrança de minha
memória é um lance em uma pista de pouso, gramada, em Teófilo Otoni. Morávamos
ao lado dessa pista de pouso, lembro-me de correr para a varanda da casa toda
vez que um pequeno avião pousava naquelas paragens. Uma bela tarde passeávamos
pela pista de pouso quando uma teco-teco queria pousar. Estávamos bem no meio
da pista, bem onde o bichinho queria descer, e tivemos que correr para fora do
gramado, com o risco de sermos atropelados. Minha mãe afirma que seria
impossível uma lembrança dessa porque eu não tinha nem dois anos de idade. Isso
só me faz valorizar minha memória, eu sei que ela é poderosa. Lembro-me do não lembrável.
Fazer o quê, né? Eu apenas gostaria de ter essa memória memorável ainda hoje.
Por isso desautorizo minha autobiografia. Não sei se tudo que vou escrever aqui
é, parte da narrativa, fruto de minha imaginação.
O fato é que a gente nunca sabe
como foram nossos primeiros anos, apenas aquilo que nossa mãe e tias contam nos
cafés familiares. E como gostam de falar de nossas vidas de bebês, como éramos
fofos, espertos, arteiros. Todos os pequenos são assim, o problema é que depois
de alguns poucos anos já se transformam em pequenos diabos. A fofurice deles
dura muito pouco tempo. Claro que comigo também foi assim. Irmãos apareceram um
a cada ano, as famílias antigas fabricavam filhos como brincadeiras de verão. Com
oito anos eu já tinha cinco irmãos. Hoje eles são todos belos, coroas e belos,
mas naquele tempo eu, como o mais velho, deveria cuidar, acompanhar, dar bons
exemplos, ser bom filho e, às vezes, limpar a bunda deles. E apanhava muito se
não fazia corretamente o que deveria ser feito. Ou o que me era determinado a
fazer. Imaginem.
Ao que me lembro nossa vida era
mais na estrada que em uma casa. Meu pai trabalhava em construção de estradas e
viajava com o avanço da mesma. Em três anos tivemos vários endereços: Sabará,
Nova União, Teófilo Otoni, Timóteo e várias vezes em Rio Piracicaba, na Fazenda
Potreiro, casa de meu avô, onde passávamos férias e para onde meu pai nos
levava quando estávamos de mudança, ou quando mudava de emprego, o que
aconteceu algumas vezes até chegar à cidade de Nova Lima quando eu tinha já
meus cinco anos. Aí entramos na fase dois. Ou capítulo dois.
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