quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

MEIA SETE


Meia sete. Parece o ano daquele fusquinha que fez sucesso entre os garotos de minha idade, mas lá pelos anos oitenta, noventa. De vez em quando a gente ainda vê um fusquinha meia sete, ou meia oito. Meia oito foi o ano do AI-5. Terrível. Em nome dessa loucura muita gente boa foi presa e algumas mortas simplesmente por não concordarem com o regime vigente. E tem umas bestas inumanas que querem reviver essas loucuras. Em nome de quê? De um patriotismo besta? De privilégios para alguns às custas da miséria de outros? Isso é assunto para mais de metro. Comecei a escrever aqui para falar de minha idade. Meia sete. É que hoje é meu aniversário. Estou sossegado em casa. Devo ter conversado com no máximo umas cinco pessoas hoje. Mudei de endereço e trabalho para dar uma mínima organização a meu esconderijo novo. E também porque recomeço a vida. Novo lugar para morar, novas pessoas em minha vida, nova forma de conduzir o trabalho e, espero, melhores resultados. Minha vida tem sido caótica, totalmente aleatória, um verdadeiro movimento browniano. Ainda bem que Einstein desvendou os enigmas do movimento browniano, então nem posso falar mal dele. Quando jovem eu queria ser gente grande, com grana, com sucesso. Lá pelos anos meia sete eu, com quinze anos, entrei para o que hoje denominam de ensino médio, fui logo convidado para ser tesoureiro da união novalimense de estudantes secundários, nos reuníamos aos sábados à tarde no Liceu de minha cidade. Não durou muito, o tal de AI-5 caçou nossa associação, nos colocou na clandestinidade e, jovens que éramos em uma cidade cheia de delatores (nem premiados eram), desistimos de continuar. Minha iniciante vida política se esfacelava logo de saída. E meu pai, vigiado que fora por ser sindicalista, impediu que seus filhos se enveredassem pela política. Teve medo por nós. Só desabrochou minha verve política de esquerda mais tarde, bem mais tarde, quando fui parar na universidade. E hoje, com os malucos que temos no poder, a luta retoma seus momentos mais cruciais. Temos que lutar por nossos parcos direitos adquiridos. Ainda nem sabemos o que é democracia e temos que reunir forças para mantê-la, aos pedaços que seja, em fragmentos, ora bolas. É o que temos.

Meia sete. Que número feio! E minha cara começa a mostrar as marcas do tempo, em forma de rugas, pelancas, manchas, flacidez. Uma barriguinha bem cuidada com muita ginástica insiste em sair de sua forma ondulada e tomar a forma arredondada. E a memória, essa danadinha, cisma de me abandonar nos momentos mais importantes. Justamente quando estou na presença, que muito me alegra, daquela pessoa que não vejo há algum tempo e seu nome desaparece no meio de minha barafunda mental. Quanto ao sexo, nem falo nada. Meu pênis adquire vontade própria e quando a vontade dele coincide com a minha é uma festa. Estou reaprendendo a transar. Emagreci uns quilos, mudei a alimentação, mais saudável agora, bebo menos hoje, caminho, pedalo, faço musculação, leio muito, escrevo bastante, tenho uma boa parceira, etc. e tal. Tento me manter informado e conectado com o mundo, ouço música boa, assisto filmes. Tudo isso para envelhecer com dignidade e autonomia, pois como disse Rita Lee, não é para os bananas, é para os fortes. Então, forte quero ser.

Meia sete. Quando encontro pessoas de minha idade eu fico, muitas vezes, chateado em perceber que a vida não é muito camarada para alguns. Vida sofrida? Trabalho demais? O que faz com que alguns envelheçam mais rápido ou mais devagar que outros? Porque eu também trabalho muito, dei muito duro na vida, nada foi fácil para mim. Uma vez encontrei um colega que não via havia tempos, ele me olhou nos olhos e disse quase com raiva. Você não envelhece porque sempre foi um irresponsável. Aquilo me chocou um pouco de início, mas depois fiquei me colocando no lugar e refutei a afirmação tão assertiva dele. Irresponsável uma ova! Sempre tive muitas responsabilidades e penso que dei conta delas. O que sou, na verdade, é bem humorado, alegre mais que na medida do possível, e nunca me deixei levar pelo pessimismo, pela tristeza, pelas palavras cheias de negatividade. Minha mãe ensinava, quando eu era criança, que não devia falar de desgraças porque desgraça sempre atrai desgraça. Segui seus conselhos. Muitos anos depois, em Paris, eu ouvi a escritora Lígia Fagundes Teles discursando, em francês, que devemos ter cuidado com as palavras. Elas têm uma força muito grande e alteram a vida daqueles que as pronunciam. Minha mãe é uma sábia. A fonte da juventude está, deduzo, em ter pensamentos e ações positivas, alegres, que espalhem sorrisos nos olhos dos outros. Mas aí reside também uma contradição importante. Eu espalhei também muita tristeza na vida de pessoas, principalmente de pessoas que eu amei e amo.

Meia sete. Nesse tempo todo quantas tristezas e lágrimas fiz derramar em olhos alheios? Quantos sorrisos consegui desenhar nas bocas de pessoas conhecidas e desconhecidas? Não se trata apenas de números, mas de profundidade. Uma tristeza profunda apaga quantos sorrisos? Esta conta é simplista assim? Não creio. Espero apenas que as pessoas tristes me perdoem. Que as pessoas tristes por minhas ações me perdoem em dobro. E que as outras sorriam quando me virem flanando na rua com meu rosto sereno. Porque sereno eu sou.


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