Nasci grande, magrelo e feio, segundo minha própria mãe. Estava todo enrugado e minha pele só se desenrugou depois de uns dias. Já nascemos perdendo e ganhando. Sim, perdendo o calor do útero, perdendo a alimentação fácil, a atenção das pessoas àquela barriga bonita e redonda da mãe. Por isso nascemos chorando e provavelmente assustados? Por outro lado, ganhamos os olhares carinhosos e felizes dos familiares, o amor das pessoas. E eu nasci em um hospital de cidade de interior, bem cuidado. E saí para o mundo, pus os pequenos pés na estrada.
O inquieto do meu pai pediu demissão na empresa onde
trabalhava quando eu tinha apenas um mês. Trabalhou em uma
construtora de estradas no interior de Minas Gerais. Pé na estrada por aí afora. Em quatro anos eu provavelmente andei alguns milhares de quilômetros. Por
onde as máquinas iam, a gente ia atrás. De Belo Horizonte a Teófilo Otoni fomos
e voltamos várias vezes. Com algumas paradas em Rio Piracicaba (MG), onde meu
avô tinha uma pequena fazenda. Entre uma casa e outra pelos caminhos, parávamos
lá por vários dias, semanas, até por meses. Tenho boas memórias dessa época,
desde que um pequeno consiga se lembrar. E minha memória vai até os dois anos,
quando me lembro de uma casa perto de um aeroporto em Teófilo Otoni. Isso
porque, um dia, tivemos que correr da pista onde um pequeno avião pousaria.
Aos quatro anos, quase cinco, chegamos em Nova Lima (Minas
Gerais), quando finalmente meu pai parou de viajar. Eu nem havia completado cinco
anos, e nascera o quarto filho da família: uma menina. Foi quando moramos em
uma casa com quintal grande, por alguns meses, e depois mudamos para outra,
onde morei dos cinco aos vinte anos. E assim começa minha vida de perdas e
ganhos. Aos cinco anos eu começo a trabalhar. É quando meu pai começa
a me ensinar a ler e fazer contas e a cuidar da horta e do jardim de nossa
casa.
Esta é uma ótica interessante sobre como encarar sua
história de vida: enumerando perdas e ganhos ao longo do tempo. As perdas e os
ganhos acontecem todos os dias. Pequenas e grandes perdas e pequenos e grandes
ganhos, muitas vezes variando de posição conforme o olhar, dependendo do foco.
Algumas perdas se transformam em ganhos dias depois. O contrário também
acontece: quantas vezes pensamos que saímos ganhando em alguma empreitada, em
algum jogo, para depois percebermos que aquele ganho de ontem se transformou em
uma grande perda. Neste jogo da vida tudo acontece.
Aos cinco anos aprendi a ler. Isso me custou algumas horas
por dia sem brincar, algum tempo tendo que pousar os olhos naquelas letras
cabulosas e decifrar significados naquelas palavras que, naquele momento, podiam
não fazer sentido nenhum. “Eu me chamo Lili” era meu martírio. Porém, saber ler
tinha algumas vantagens. Quando chegava visitas em casa, meu orgulhoso pai me
pedia para ler para as visitas. E isso acabava em afagos das senhoras
visitantes. Aprendi a gostar cedo daquele carinho de seios das mulheres roçando
meu rosto. Perdas e ganhos.
Quando fiz sete anos e fui para a escola primária, os
cartazes da sala que devíamos ler até cansar, traziam as frases: “Eu me chamo
Lili”, que meus colegas suavam para soletrar até aprenderem a decorar as
palavras. Não sei se aprendiam assim. Novamente, que martírio! Pelo menos a
professora percebeu minhas qualidades de leitor e pediu-me que ensinasse os
colegas a ler os cartazes. Isso me valeu a admiração das meninas e ganhei uma
namorada. De nome Eliane. E que saia de sua posição do outro lado da sala e
vinha me dar um beijo quando a professora, por algum motivo, saia da sala.
Novos ganhos.
E o trabalho na horta de nosso quintal era outra atividade que
me tirava o tempo de brincar. Eu devia me agachar nos canteiros e arrancar com
as mãos todos os matinhos que insistiam em nascer ao lado dos pés de couve,
alface e outras verduras. E molhava as plantas também uma vez por dia. E se
fazia errado ganhava as tradicionais porradas e cascudos que os pais daquela
geração insistiam em dizer que eram preventivas e corretivas. Esses cascudos
são uma perda total. Perda de afeto, perda de identidade, perda de autoestima,
que tem um custo altíssimo em nossas vidas. Só com análise, bem mais tarde,
quando a gente descobre o quanto de mal aquilo nos fez. Essa perda não tem
recuperação fácil. Ganhei, no entanto, um apego à natureza, um conhecimento do
gesto e do ofício de plantar, coisa que sempre fiz na vida. Grandes perdas,
grandes ganhos.
A vida, no entanto, me levou a viver as grandes mudanças do
século XX e cheguei na infância do século XXI justamente com o advento de minha
maturidade. E como eu tive a oportunidade de fazer um curso superior na área de
Ciências (graduei-me em Física) eu pude também acompanhar os grandes avanços
científicos e tecnológicos dos últimos tempos. Como professor de Física
trabalhei em cursos de Engenharia e de formação de professores em várias
instituições. E como Doutor em Ciências da Comunicação e Informação participei
de inúmeros projetos de pesquisa em cursos de Mestrado em Educação Tecnológica
e de Estudos de Linguagem. Coordenei mais de cinquenta projetos de pesquisa na
área de Ciências Humanas e mais de mil projetos de produtos tecnológicos em
Engenharia. Isso me deu uma experiência enorme na gestão de projetos. Grandes
ganhos. Mas a idade avança e um dia a gente resolve mudar de ares. É onde a
vida pessoal e profissional se embaralham. Perdas ou ganhos?
Esse relato inicial é só mesmo para falar de perdas e ganhos
na vida, que começam logo cedo. Para irmos aprendendo que “viver é muito
perigoso”. E a gente precisa ganhar um bom jogo de cintura logo cedo para não
sair só perdendo. Cresci assim. “Vivendo e aprendendo a jogar”. Nunca ganhei
grandes coisas na vida, em termos materiais, mas ganhei muita experiência,
muita sabedoria. E é essa sabedoria que me ajuda a viver hoje.
Eu sou UM INDIVÍDUO
Não pertenço a tribos nem a escolas
não me escondo em trincheiras
não habito em guetos não frequento igrejas
não caibo em panelas
Meu mundo cabe em minha mochila
onde tem um livro, um canivete
(todo homem devia ter um canivete
símbolo fálico poderoso
que trazemos desde a infância vivida no interior)
uma chave de fenda uma caneta
um caderno de anotações
(poesia não avisa quando vem)
um par de óculos (presente do portal do tempo)
uma agenda (sou homem de compromissos)
e muitas lembranças.
Não sou politicamente correto
sou a favor de cotas para negros, indígenas, pobres
e da distribuição de rendas.
odeio patrulhas não filio a partidos
voto sempre nos contrários.
Não sou branco não sou preto não sou índio.
Sou pardo sou mestiço aquele que não é nada
por ser mistura de tudo.
E o mestiço, lá na origem do nome,
muito provavelmente, é um filho bastardo.
Preciso aprender sempre
para me desvencilhar de rótulos
das amarras e ter pensamento livre.
Não sei rezar nem orar: sou animista.
Meus animais de estimação: uma onça pintada –
encontro-a regularmente, ensinou-me sutilezas
de observação e convivência;
um casal de saíras – visitantes de meu jardim,
uma família de calangos – predadores de insetos de meu
quintal.
Não me apego a objetos
não consigo carregá-los
em viagens e mudanças:
não moro três anos no mesmo endereço.
Não sei dar nó em gravata
evito cair em armadilhas reais ou intelectuais.
AMO AS MULHERES!
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