segunda-feira, 6 de setembro de 2021

AUTOBIOGRAFIA BREVE

Nasci grande, magrelo e feio, segundo minha própria mãe. Estava todo enrugado e minha pele só se desenrugou depois de uns dias. Já nascemos perdendo e ganhando. Sim, perdendo o calor do útero, perdendo a alimentação fácil, a atenção das pessoas àquela barriga bonita e redonda da mãe. Por isso nascemos chorando e provavelmente assustados? Por outro lado, ganhamos os olhares carinhosos e felizes dos familiares, o amor das pessoas. E eu nasci em um hospital de cidade de interior, bem cuidado. E saí para o mundo, pus os pequenos pés na estrada.

O inquieto do meu pai pediu demissão na empresa onde trabalhava quando eu tinha apenas um mês. Trabalhou em uma construtora de estradas no interior de Minas Gerais. Pé na estrada por aí afora. Em quatro anos eu provavelmente andei alguns milhares de quilômetros. Por onde as máquinas iam, a gente ia atrás. De Belo Horizonte a Teófilo Otoni fomos e voltamos várias vezes. Com algumas paradas em Rio Piracicaba (MG), onde meu avô tinha uma pequena fazenda. Entre uma casa e outra pelos caminhos, parávamos lá por vários dias, semanas, até por meses. Tenho boas memórias dessa época, desde que um pequeno consiga se lembrar. E minha memória vai até os dois anos, quando me lembro de uma casa perto de um aeroporto em Teófilo Otoni. Isso porque, um dia, tivemos que correr da pista onde um pequeno avião pousaria.

Aos quatro anos, quase cinco, chegamos em Nova Lima (Minas Gerais), quando finalmente meu pai parou de viajar. Eu nem havia completado cinco anos, e nascera o quarto filho da família: uma menina. Foi quando moramos em uma casa com quintal grande, por alguns meses, e depois mudamos para outra, onde morei dos cinco aos vinte anos. E assim começa minha vida de perdas e ganhos. Aos cinco anos eu começo a trabalhar. É quando meu pai começa a me ensinar a ler e fazer contas e a cuidar da horta e do jardim de nossa casa.

Esta é uma ótica interessante sobre como encarar sua história de vida: enumerando perdas e ganhos ao longo do tempo. As perdas e os ganhos acontecem todos os dias. Pequenas e grandes perdas e pequenos e grandes ganhos, muitas vezes variando de posição conforme o olhar, dependendo do foco. Algumas perdas se transformam em ganhos dias depois. O contrário também acontece: quantas vezes pensamos que saímos ganhando em alguma empreitada, em algum jogo, para depois percebermos que aquele ganho de ontem se transformou em uma grande perda. Neste jogo da vida tudo acontece.

Aos cinco anos aprendi a ler. Isso me custou algumas horas por dia sem brincar, algum tempo tendo que pousar os olhos naquelas letras cabulosas e decifrar significados naquelas palavras que, naquele momento, podiam não fazer sentido nenhum. “Eu me chamo Lili” era meu martírio. Porém, saber ler tinha algumas vantagens. Quando chegava visitas em casa, meu orgulhoso pai me pedia para ler para as visitas. E isso acabava em afagos das senhoras visitantes. Aprendi a gostar cedo daquele carinho de seios das mulheres roçando meu rosto. Perdas e ganhos.

Quando fiz sete anos e fui para a escola primária, os cartazes da sala que devíamos ler até cansar, traziam as frases: “Eu me chamo Lili”, que meus colegas suavam para soletrar até aprenderem a decorar as palavras. Não sei se aprendiam assim. Novamente, que martírio! Pelo menos a professora percebeu minhas qualidades de leitor e pediu-me que ensinasse os colegas a ler os cartazes. Isso me valeu a admiração das meninas e ganhei uma namorada. De nome Eliane. E que saia de sua posição do outro lado da sala e vinha me dar um beijo quando a professora, por algum motivo, saia da sala. Novos ganhos.

E o trabalho na horta de nosso quintal era outra atividade que me tirava o tempo de brincar. Eu devia me agachar nos canteiros e arrancar com as mãos todos os matinhos que insistiam em nascer ao lado dos pés de couve, alface e outras verduras. E molhava as plantas também uma vez por dia. E se fazia errado ganhava as tradicionais porradas e cascudos que os pais daquela geração insistiam em dizer que eram preventivas e corretivas. Esses cascudos são uma perda total. Perda de afeto, perda de identidade, perda de autoestima, que tem um custo altíssimo em nossas vidas. Só com análise, bem mais tarde, quando a gente descobre o quanto de mal aquilo nos fez. Essa perda não tem recuperação fácil. Ganhei, no entanto, um apego à natureza, um conhecimento do gesto e do ofício de plantar, coisa que sempre fiz na vida. Grandes perdas, grandes ganhos.

A vida, no entanto, me levou a viver as grandes mudanças do século XX e cheguei na infância do século XXI justamente com o advento de minha maturidade. E como eu tive a oportunidade de fazer um curso superior na área de Ciências (graduei-me em Física) eu pude também acompanhar os grandes avanços científicos e tecnológicos dos últimos tempos. Como professor de Física trabalhei em cursos de Engenharia e de formação de professores em várias instituições. E como Doutor em Ciências da Comunicação e Informação participei de inúmeros projetos de pesquisa em cursos de Mestrado em Educação Tecnológica e de Estudos de Linguagem. Coordenei mais de cinquenta projetos de pesquisa na área de Ciências Humanas e mais de mil projetos de produtos tecnológicos em Engenharia. Isso me deu uma experiência enorme na gestão de projetos. Grandes ganhos. Mas a idade avança e um dia a gente resolve mudar de ares. É onde a vida pessoal e profissional se embaralham. Perdas ou ganhos?

Esse relato inicial é só mesmo para falar de perdas e ganhos na vida, que começam logo cedo. Para irmos aprendendo que “viver é muito perigoso”. E a gente precisa ganhar um bom jogo de cintura logo cedo para não sair só perdendo. Cresci assim. “Vivendo e aprendendo a jogar”. Nunca ganhei grandes coisas na vida, em termos materiais, mas ganhei muita experiência, muita sabedoria. E é essa sabedoria que me ajuda a viver hoje.

 

 

Eu sou UM INDIVÍDUO

 

Não pertenço a tribos nem a escolas

não me escondo em trincheiras

não habito em guetos não frequento igrejas

não caibo em panelas

 

Meu mundo cabe em minha mochila

onde tem um livro, um canivete

(todo homem devia ter um canivete

símbolo fálico poderoso

que trazemos desde a infância vivida no interior)

uma chave de fenda uma caneta

um caderno de anotações

(poesia não avisa quando vem)

um par de óculos (presente do portal do tempo)

uma agenda (sou homem de compromissos)

e muitas lembranças.

 

Não sou politicamente correto

sou a favor de cotas para negros, indígenas, pobres

e da distribuição de rendas.

odeio patrulhas não filio a partidos

voto sempre nos contrários.

 

Não sou branco não sou preto não sou índio.

Sou pardo sou mestiço aquele que não é nada

por ser mistura de tudo.

E o mestiço, lá na origem do nome,

muito provavelmente, é um filho bastardo.

 

Preciso aprender sempre

para me desvencilhar de rótulos

das amarras e ter pensamento livre.

Não sei rezar nem orar: sou animista.

Meus animais de estimação: uma onça pintada –

encontro-a regularmente, ensinou-me sutilezas

de observação e convivência;

um casal de saíras – visitantes de meu jardim,

uma família de calangos – predadores de insetos de meu quintal.

 

Não me apego a objetos

não consigo carregá-los

em viagens e mudanças:

não moro três anos no mesmo endereço.

Não sei dar nó em gravata

evito cair em armadilhas reais ou intelectuais.

AMO AS MULHERES!


 

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