Ninguém soube dizer de onde, como e quando ele veio. Alguns dizem que ele simplesmente apareceu numa das grandes portas de casarões próximo ao solar dos Neves quase em frente à Funerária Ávila. Seus passos não foram seguidos nas ruas, ninguém sentiu o cheiro de seu perfume e tampouco se escutou bater nenhuma porta de carro. Apenas apareceu.
Lá estava ele. Alto, moreno, barba curta e negra. Cabelos
negros e anelados com alguns fios brancos brilhando levemente à luz dos
lampiões acesos ao anoitecer. Olhos também negros vigiavam calmamente carros,
bicicletas e pessoas. Trajava um bleiser de linho negro sobre uma camisa
vermelha, calças bege claro e sapatos marrons. Elegante. De uma elegância que
não feria aos olhos, mas também não o deixaria anônimo em meio a uma multidão.
Ao cair da noite as pessoas indo e vindo olhavam-no indistintamente. Olhares
intrigados e admirados. As mulheres fitavam-no ao menos pelo canto dos olhos.
Algumas voltavam pelo mesmo caminho para observá-lo mais uma vez.
Com o cair da noite e o surgimento da lua cheia, o movimento
no Largo do Rosário aumentou. Era uma sexta-feira de uma semana de muitas
novenas, rezas, procissões, missas festivas tocadas pela orquestra Ribeiro
Bastos, toalhas de renda nas janelas, enfeites nas ruas. Os sons dos sinos das
igrejas se misturavam a foguetes e corais. Ele continuava em seu posto de
observação. Calmo. Nenhum sinal de cansaço em seus olhos. Nenhuma urgência em
seus gestos. Apenas observava.
De onde estava via-se todo o movimento do início da rua
Santo Antônio, do beco da Romeira e da rua Direita. Escutava-se também o
fervoroso murmúrio vindo da Igreja do Pilar, onde se realizava uma festa
religiosa, como sempre ocorre na cidade.
De repente, uma das muitas mulheres que o olharam nesta
noite chama-lhe a atenção. Era morena clara, olhos verdes indefinidos, cabelos
longos e ondulados brilhando à luz da lua cheia e dos lampiões. O corpo bem
feito oscilava harmoniosamente aos passos em calçamentos irregulares. Usava um
pequeno decote que delineava os seios. A blusa sem gola deixava seu belo
pescoço à mostra. Este detalhe e a firmeza do olhar que ela lhe lançou
trouxe-o do mundo dos sonhos por onde seu pensamento transitava.
Uma troca de olhares por longos segundos. Daqueles cuja
linguagem só seus donos entendem. O corpo da mulher tremeu levemente e ela não
soube, por um instante, o que fazer com o véu e o terço em sua mão direita.
Apressou os passos e entrou na igreja. Deu uma última e rápida olhada para
trás, na escadaria, enquanto cobria desajeitadamente com o véu branco a cabeça.
O suficiente para perceber que ele havia saído do lugar onde estava havia
algumas horas.
Terminada a cerimônia religiosa, ela foi uma das últimas a
sair da igreja. Não queria correr o risco de encontrá-lo de novo. Aquele leve
tremor denunciava sua fragilidade diante daquele olhar penetrando-lhe até a
alma. Se ele de novo a olhasse ela não teria coragem de negar-lhe seja lá o que
seu olhar a pedisse.
Ao descer as escadarias, sentiu-se aliviada por não o ver. Já
não havia muita gente na rua. Era tarde, mas os sinos ainda repicavam. Caminhou
apressada em direção à rua Santo Antônio. Ao chegar ao beco atrás da igreja do
Rosário, de onde se avistam as torres iluminadas da Matriz de São Francisco, um
arrepio gelado percorreu sua espinha dorsal, das nádegas à nuca. Virou para os
lados e viu uma figura saindo das sombras. Não sabia se corria ou se voltava.
Seu corpo tremia. Deixou cair o véu e o terço. Sua boca entreaberta não emitiu
nenhum som.
Ele lhe apanhou gentilmente o véu e o terço, sorriu-lhe e
sugeriu que seguissem. Ela então começou a caminhar a seu lado. Apesar de todo
seu fervor durante as orações viu-se prestes a cometer o que, para seus
familiares, era pecado. Para ela nem tanto. Já o cometera outras vezes. Em
algumas vezes sentira um misto de paixão e culpa.
Os dois caminharam pela rua Santo Antônio até
desaparecerem em suas curvas antigas e envoltas em sombras. No exato instante que os sinos calaram ouviu-se um grito. Logo depois o silêncio das cidades
do interior, quebrado apenas por latidos e miados.
Nunca mais viram o desconhecido. Mas a mulher, por alguns
dias, andou com um lenço cobrindo o pescoço. Amigas íntimas disseram que era
para esconder duas marcas redondas lado a lado, como que desenhadas por lápis
violeta. E ninguém conseguiu entender o sorriso sempre presente em seus lábios
e a leveza de seu andar de sábado em diante.
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