Os sinos da
matriz tocam sempre quando um evento, às vezes bem sinistro, ocorre na cidade.
Tocam para chamar fiéis à missa, tocam anunciando casamento ou morte, tocam em
datas importantes para os rituais das igrejas da cidade. Nessa cidade onde os
sinos ainda dobram, residi por três anos apenas. Os sinos da matriz nunca
saíram de meu pensamento. Dobrando os toques dos rituais, se tornaram meu
inferno.
Foi num
instante desses, com os sinos repicando festivamente, em uma tarde do mês de
abril, que pela última vez bati os olhos em Adriana. Apenas sua imagem ficou em
mim. Quando os sinos tocam, ainda vejo seu rosto emoldurado naquele retrato que
um dia joguei na fogueira para não me lembrar mais dela. Mero engano. A foto se
queimou na fogueira, mas sua imagem ainda me queima por dentro.
Ela nunca
mais deu notícia, mesmo as pessoas suas conhecidas não sabem por onde ela anda. Por vezes faço uma busca na Internet, onde a gente sempre encontra
informações de pessoas que não vemos há tempos, e nada. O senhor Google não
sabe de Adriana. Como alguém pode não ter uma vida com pelos menos alguns dados
que sejam públicos?
Esquecê-la é
impossível, o jeito foi deixar sua imagem armazenada em minha memória RAM,
ocupando o mínimo de espaço, porque a vida continua.
Foi então
que conheci Marieta, que namorava comigo, escondido, pois era noiva de um cara que
jogava futebol e vivia viajando. Quando ele viajava, ela vinha se enroscar
comigo. Penso que ele sabia e imaginava que ela estava sendo bem cuidada, pois
alguns de seus amigos sabiam. Isso durou até que ele se machucou seriamente e
teve que mudar de profissão. Casaram-se e me deram o primeiro filho como
afilhado.
Conheci
também Salete que fazia brochetes para vender na feira das manhãs de domingo.
Juntava no espeto o pimentão, a cebola e o pedaço de carne. Dizia ser
alcatra, mas, na verdade, era acém e me pedia para confirmar, pois eu havia
participado da preparação. Salete gostava de cantar, mas cantava em falsete e
dizia ser cantora lírica. Aprendera em um cabaré quando esteve passando
uns tempos com a tia na capital.
Mas o que
terá acontecido com Adriana? Tinha parentes no Rio de Janeiro, em Santa Tereza.
Em uma viagem ao Rio, peguei o bonde e me bandeei para a casa deles. Quem sabe
eles me informariam sobre ela? Ninguém sabia. Como ela tinha uma ascendência
judia, imaginavam que ela teria ido para Israel. Se fosse isso, ela devia estar
bem e trabalhando em alguma comunidade de trabalhadores rurais, formada que era
em Agronomia.
Salete
continuou vendendo brochetes na feira, mas não quis mais que eu a acompanhasse.
Começou a namorar um cozinheiro e agora vendem outras guloseimas mais, além do
brochete.
Foi então
que conheci Alice. Diziam ser doida, porque recitava sem parar o poema de
Alphonsus de Guimarães:
“Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu
Viu outra lua no mar”
Alice era
fascinada pela lua cheia. Cantava para a lua, fazia versos para a lua e rezava
para a lua num estranho ritual. Doida, diziam. Eu acreditava que ela fosse
mesmo doida, mas doida comigo.
Em uma noite
de lua cheia, Alice se pôs a cantar na beira do rio. Não havia mar na cidade
entre montanhas. Portanto, não havia riscos de Alice pular no mar, pensava eu, como
Ismália fez, no poema:
“E como um anjo pendeu
As asas para voar
Queria a lua do céu
Queria a lua do mar”
A lua cheia,
no entanto, foi eclipsada e o céu escureceu. Aí foi que Alice se inquietou. Que
terá acontecido com a lua cheia, assim, tão de repente? Pensou logo que seria
uma maldição pairando no horizonte e que algo ruim aconteceria. Tirou as roupas
e entrou no rio. Lembrou-se de Ismália que foi buscar a lua no fundo do mar e
imaginou que ela poderia estar escondida numa grota do rio.
"As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma subiu ao céu
Seu corpo desceu ao mar”
Resolvi não
ter mais ninguém comigo. A imagem de Adriana me bastaria. Anos depois, quando
eu já havia mudado da cidade do interior, vi Adriana com seus cabelos brancos
andando pelas ruas de São Paulo, calmamente. Hesitante fiquei, mas dei uma
apressada nos passos e a alcancei. Interroguei-a. Queria, mesmo anos depois,
uma resposta.
- Estava
ficando doida naquela cidade. Não aguentava mais aqueles sinos. Não queria
escutá-los anunciando a minha morte, ou a sua. Parti.
- Partiu, e
era abril. Semana santa, quando os sinos dobram mais alucinadamente. Meu
destino era amar essas mulheres loucas? Ou um pouco desarranjadas mentalmente?
Se for para ser assim, eu me entrego.
Gostei ,bastante romântico bom passa tempo obgada
ResponderExcluir