Depois dos sessenta anos, memória e esquecimento travam uma luta ferrenha. Cada um querendo a primazia da ocupação dos espaços da mente. Já que o esquecimento ganha quase sempre podemos, pelo menos, discernir sobre o que esquecer e o que lembrar. Esquecemos, então, datas de aniversários, da hora de fazer pequenas e desimportantes coisas, do local onde o carro está estacionado, onde ficaram os óculos, a mochila, o tênis para a caminhada, o chapéu, etc. E quem mandou bater o portão sem se certificar que a chave da casa está no bolso? Como entramos em casa agora? Melhor se lembrar do tradicional bom humor, muito útil nessas horas. Depois dos sessenta, que razões para perder o bom humor? Tanta coisa para esquecer!
Jordelina, hoje com quase cem anos, começou a fazer teatro
aos setenta. Algo escondido dentro dela, tanto tempo adormecido e que, de
repente, brota em seu coração como roseira que esconde espinhos nas folhagens e
mostra sua beleza a quem vê perfumes e cheira mistérios. Assim como disse
Conceição Evaristo, a escritora, começou a se sentir viva aos setenta anos:
“Nunca somos novas demais nem velhas demais para nada”.
Todos os mistérios vêm das sombras,
é na penumbra que nos desnudamos.
Tom pastel dos silêncios
brinca na memória dos bem vividos.
Moradora em uma cidade da região metropolitana, três vezes
por semana tomava o ônibus que a conduzia à capital para ensaiar com seu grupo
de teatro, todos os atores e atrizes já cheios de experiência de vida. O auge
de Jordelina atriz foi na peça Morte e Vida Severina, baseado em obra de João
Cabral de Melo Neto. Jordelina, mais de oitenta, brilhou. Cantou, dançou,
representou provavelmente muitas das mazelas de sua própria vida. O grupo atuou
em hospitais de crianças, em casas de repouso, em presídios até que foram
convidados para atuarem em um grande teatro da capital. Eu estava lá, nos
bastidores, porque me intrigava o fato de Jordelina estar quase surda. Como ela
fazia para nunca perder a hora de entrar no palco, a hora de soltar a voz? Foi
aí que entendi. Ela decorava a peça inteira e ficava na porta de entrada do
palco observando e repetindo baixinho as falas dos atores e atrizes que estavam
no palco. Assim não perdia sua vez.
Imagens são como sombras:
guardiãs de nossa memória
e de nosso medo da morte.
Logo depois do Ano Novo deste ano de 2024, Jordelina recebeu
a visita da neta e de alguns de seus bisnetos. Como vieram de longe, ficaram
por alguns dias.
— Quem são essas pessoas que se instalaram em minha casa? Que
crianças barulhentas e inquietas?
A memória dela, ausente, se juntou à quase ausência de sua
audição. Jordelina, no entanto, continua contando causos, basta alguns ouvidos
atentos se postarem em sua frente. Lembra da infância, dos tempos de juventude
quando morou na capital. Na verdade, lembra-se de todos os momentos felizes de
sua vida, aqueles mais antigos, menos dos tempos de teatro, os mais felizes de
sua vida. Não teve diagnóstico de Alzheimer, apenas de perda continuada de
memória.
Nossa
memória é banco de dados
armazenados para quando tomarmos um vinho
diante do fogo das reminiscências.
Certo dia, uma de suas bisnetas, Maria, de uns cinco ou seis
anos, sentou-se em sua frente e começou a fazer perguntas. Ela não as
respondia, exatamente, mas contava causos que a menina ouvia atentamente. E
Maria respondia com outros causos de sua curta existência, cheia de personagens
das histórias que ouvia de seus pais. Foi um diálogo, fragmentado, maravilhoso
entre duas pessoas com uma diferença de idade de mais de noventa anos,
registrado apenas pelos olhares dos presentes admirados.
Maria voltou com seus pais para sua casa distante. Jordelina
sempre pergunta por ela: — Cadê Maria? O avô de Maria, filho de Jordelina,
recebe um telefonema da filha, dizendo que chegou bem e a anciã vê os bisnetos
pela chamada de vídeo do aparelho celular. De quem ela se lembra? — Olha, é
Maria.
Esquecer
é sobreviver: lembrar?
O futuro começa
no instante depois do verso
no primeiro beijo depois do encontro
na estória que se conta agora.