domingo, 2 de agosto de 2015

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA IV


Eu escrevo uma autobiografia, não uma cronografia. E sendo desautorizada, não tenho nenhum compromisso com os tempos dos acontecimentos, principalmente porque não tenho nenhum controle com a temporalidade e muito menos controle sobre a memória do autor, que sou eu mesmo. Não uso nenhum coautor, nem daqueles escritores pagos para escrever como se fosse eu, esqueci o nome deles em português, o que aumenta meu descompromisso, é desautorizado mesmo! Assim, se alguém se sentir ofendido com minhas palavras, eu tenho a resposta na ponta da língua: não foi autorizada. Se o Rei Roberto Carlos pode fazer isso, eu creio que também posso. Entro na justiça contra mim mesmo. Ou contra meu personagem. Personagens não são reais. Esta obra autobiográfica pode muito bem ser uma ficção. Se alguém se sentir encarnado em algum personagem eu digo que é mera coincidência. Como Dias Gomes, o grande dramaturgo dos anos oitenta, afirmou que os gregos já disseram e escreveram tudo sobre todas as tragédias e comédias humanas e o que escrevemos hoje é mera reprodução (talvez até cópia deslavada) de casos comentados por Sófocles, Homero e companhia, sinto-me à vontade para derramar em letras minhas observações sobre a vida. Se alguém se sentir ofendido, reclame com Platão, Aristóteles, Sófocles, Pitágoras (se o assunto for aplicação do teorema do mesmo), etc.

Hoje, (e hoje é hoje mesmo, o famoso Agora) eu estou chateado porque o primo Branco (tinha esse codinome por ser branco em uma família de morenos) se foi. Partiu, mudou de esfera, desencarnou, transferiu para o andar de cima, virou espírito, foi se encontrar com Caronte às margens do rio Aqueronte para que este o transportasse até o outro lado do rio para se encontrar com Hades, o deus da terra dos mortos. Ou, mais simplesmente, bateu as botas. Acontece que o Branco é (era) um ano e seis meses mais novo que eu e furou fila muito apressadamente. Ainda não era hora de partir. Fez uma viagem uma semana antes, riu, conversou muito e, numa bela manhã de terça-feira foi encontrado caído semimorto, em casa. Não teve jeito, não mais abriu os olhos.

Quando éramos crianças seu pai, o Zé Buzina, trazia todos os filhos para nossa casa em Nova Lima. Ele tinha um carro, punha não sei quantos filhos dentro do mesmo, e viajava os cento e vinte quilômetros que nos separava numa boa. Era uma farra. Ou o contrário. Meu pai nos colocava no trem que parava em frente à fazenda do nosso avô em Rio Piracicaba e dias depois, Zé Buzina aparecia com a família para que nós, as crianças, pudéssemos brincar e eles, os adultos, pudessem tagarelar. Ou, às vezes, íamos para a casa deles em Carneirinhos e lá ficávamos uns dias. De vez em quando meu pai me deixava na casa deles para que os primos ficassem juntos e brincassem. Confesso que eu não gostava muito, não por causa dos primos, mas por causa do tio. O tio era ainda mais bravo e porradeiro que meu pai, e eu achava tudo aquilo meio injusto. E como de vez em quando ele partia para cima de mim também, eu amuava e ficava torcendo para que meu pai me buscasse logo. Mais tarde eu me vinguei grandiosamente de meu tio, mas essa eu não conto nem que a vaca tussa, nem por decreto da presidenta, nem na tortura. Foi minha vingança pessoal, e pessoal é pessoal, não me venham com aquela conversa fiada de “conta, ele já morreu mesmo”! Mas eu estou vivo e respeito os primos, então não conto. Mas não é uma autobiografia desautorizada? Sim, mas o autor (eu mesmo) já se esqueceu, não se lembra mais e eu não vou esquentar a memória dele. Depois que eu também me for, e um dia eu me vou dessa, aí eu conto. Em memórias psicografadas.

Assim a vida transcorreu. Eu e o Branco nos encontramos até a maioridade. Aí seguimos caminhos diferentes. Eu casei prematuramente e fui morar em Viçosa-MG, ele se formou e foi para o Maranhão. Também casado. A maioridade nos traz responsabilidade que nos afastam, responsabilidades que talvez nem quiséssemos ou tivéssemos condições de assumir, mas fingimos que somos homens maduros e levamos em frente. Os ritos de passagem são impiedosos. De repente somos homens, temos filhos, emprego de carteira assinada, RG, CPF, Título de Eleitor, CNH, dívida no BNH, IPTU, IPVA, DPVAT, trabalhamos o dia inteiro e trocamos fraldas à noite. Dormir? Só nas férias. De repente, nos tornamos idosos (maiores de sessenta). E o Branco sequer aproveitou os tempos de idoso, de furar fila, de entrar na frente no avião, de brincar com os netos.


Sacanagem, Branco. Na melhor hora da vida você tira o plantel do gramado! Ou queria chegar na frente do outro lado do rio Aqueronte? Fico lhe devendo um beliscão por isso. 

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