quinta-feira, 20 de agosto de 2015

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA VI


Estudei no Liceu Imaculada Conceição, em Nova Lima, cursando o antigo Ginásio, hoje Ensino Fundamental II. Uma colega daqueles tempos lembrou-se de mim e procurou meu nome entre os formandos de lá, do ano de um mil novecentos e sessenta e sete. Não encontrou. Ao chegar à metade do quarto ano eu me mudei para a Escola Estadual Augusto de Lima onde, de fato, me diplomei no ginásio. Eu queria fazer o curso científico e achei que se mudasse para a outra escola eu seria aceito mais facilmente. Bobagem. Havia vagas, mas foi a decisão da época. Lembro-me muito pouco desses tempos. Eu era um dos mais jovens da classe e um dos mais pobres também. Como diziam meus colegas, eu era pequeno, feio, pé grande, pobre, cabeça grande e morava longe. Era a maneira deles dizerem-me que eu era também o mais inteligente, quem tirava as melhores notas, nem assim o favorecido dos professores e professores, porque esses, em minha memória, favoreciam os alunos mais ricos. Não custa lembrar que a escola era paga, e era um sacrifício grande para meus pais pagarem as mensalidades.

Estávamos em plena época de ditadura militar, antes do AI5, mas a vida era dura. Amigos de nossas famílias foram cassados, como o deputado da cidade, o Dazinho, amigo de meu pai. E em Nova Lima havia também o outro lado da política. Pessoas alinhadas com a ditadura e que denunciavam quem eles imaginavam ser “subversivos”, comunistas e perigosos à nação. Mas esses eram conceitos subjetivos, voláteis, mas era o que valia. Bastava uma denúncia. E entre meus colegas haviam vários cujos pais eram solidários com a política estabelecida, não eram lá grandes coisas, mas se sentiam grandes. E os jovens também se sentiam grandes a ponto de não quererem a minha companhia nos momentos de recreio, grandes a ponto de não me permitirem jogar futebol junto com eles nas aulas de educação física, grandes a ponto de só sentarem a meu lado nas cadeiras duplas usadas em classe nos dias de prova, para colarem de mim. É comum guardarmos os amigos da época. Em geral os amigos dos tempos de escola permanecem amigos por muitos e muitos anos. E eu não guardei nenhum deles como amigos, apenas alguma amigas. Depois que deixei o Liceu, nem sequer me encontrei com eles, a não ser ocasionalmente. Não eram meus amigos. Os tempos mudaram e, mais tarde, vi que muitos deles levavam uma vida de merda, alguns ainda hoje mamam nas tetas dos governos e não construíram muita coisa importante na vida. Outros estão bem, não os vejo, no entanto.

Não há muito que falar, ou escrever, desses anos de ginásio. Minha vida continuava do mesmo jeito: escola, trabalho, campo de futebol; escola, trabalho, campo de futebol, nessa ordem mesmo. A escola era pela manhã, chegava em casa ao meio dia, almoçava, fazia os deveres de casa, ajudava a olhar os irmãos mais novos, trabalhava na horta do quintal, ganhava umas porradas quando não trabalhava direito, e, ao fim de tarde, campo de futebol com os vizinhos. No verão era ótimo porque havia luz do sol até mais tarde. Eu continuava lendo muito, ouvíamos o rádio da família e nas ondas do rádio, as mais ouvidas já eram a Inconfidência, a Itatiaia e a Guarani (essa não existe mais, infelizmente), AM na época. E havia também a rádio Cultura e as de outros estados, como a Nacional do Rio de Janeiro, a Tupi, a Record. Não eram muitas, não se rezava pela rádio, essa febre só existe nos tempos modernos, como uma imposição em ondas médias.

Nosso rádio não tinha marca, era um rádio de fabricação caseira. Meu pai fez um curso de rádio por correspondência e recebia as peças aos poucos para serem montadas à medida que ele aprendia o uso e a importância de cada peça no conjunto. Um dia o rádio ficou pronto e funcionava. Era um rádio à válvula, bonito, grande. Todos nós aprendemos um pouco sobre a montagem do mesmo. E o aparelho ficou sendo de todo mundo, com a primazia o velho. As válvulas deixaram de existir e o rádio ainda funcionou até que não se encontrava mais peças de reposição. Um dia ele teve um fim, merecido, por tantos serviços prestados à família, que escutava O Direito de Nascer e Jerônimo, o Heroi do Sertão, todos os dias, reunidos ao pé do rádio. Pena que não tínhamos fogão de lenha. Já usávamos fogão elétrico, com direitos à uns choques de vez em quando. Talvez por isso alguns de nós somos insanos, outros modestamente desconectados. Todos saudáveis, com exceção daqueles que batem pino, e de outros que tomam Sertralina.

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