Amanhã é dia dos pais, o que me
trouxe a lembrança, óbvia, de meu falecido pai. Isso porque uma irmã me ligou
tocando no assunto, afirmando que ela não tinha se lembrado da data. Não está
ligada nos comerciais de rádio e televisão, portanto a data lhe passou
despercebida. Eu respondi que eu também não me lembrava, uma vez que meus
filhos estão fisicamente distantes e não são de ficarem me ligando para dar ou receber
notícias minhas. Nunca foram disso. Culpa minha também ao não cultivar essas
comemorações. Eles ficam na deles e eu na minha. E como eu também não ligo
televisão não sou metralhado com propagandas consumistas. Melhor assim.
Não sei se já escrevi sobre isso em
outro momento, acho que sim, eu não sofri a morte de meu pai. Eu sofri a sua
decadência, sua morrência, não sua morte. Essa aconteceu em momento esperado,
até adivinhado por mim. Com isso eu o matei dentro de mim antes que ele
fechasse os olhos. E com isso eu tive a tranquilidade de cuidar de seus últimos
suspiros, de assistir seu último olhar e captar seu último sorriso. Meses antes
eu o perguntei se ele estava preparado para morrer, ele disse que sim, que já
tinha vivido tudo que poderia ter vivido, e tinha orgulho de sua vida. Eu lhe
respondi que se ele estava preparado eu também estava e não choraria em seu
enterro. Não chorei. Deixei-o ir em sua magreza para o além, seja lá o que isso
significa.
As lembranças que ele me traz são
várias e de várias nuances, porque em vida ele foi o que um pai, crescido na
roça e malhado nas vivências e sofrências do cotidiano, calejado no labor da
sobrevivência, poderia ter sido. Severo, porradeiro quando era criança, amigo
quando me tornei adulto. E bastante amigo. Toda aquela violência masculina que
eu via nele quando menino eu não vi mais. Eu vi sua elegância, seu poder de
sedução com as outras mulheres, porque a violência machista dele com a minha
mãe continuou existindo. Foi o protótipo do marido mandão e machista que não
deixou saudades em minha mãe. Deixou muitas mágoas nela, ao mesmo tempo que
deixou boas e más lembranças para os filhos. Cada um tem histórias alegres e
tristes para contar sobre essa figura ao qual chamávamos de pai.
Algumas coisas ele fazia questão
que tivéssemos: educação em todos os sentidos, coragem para enfrentar os medos,
fartura na mesa, saúde e livros. Se eu queria um livro ele comprava,
independente do esforço que ele teria que fazer para conseguir nos dar o livro
de presente. Com isso eu aprendi a amar livros e esse talvez seja um de seus
grandes legados na minha vida. Os livros. Lembro-me de tê-lo presenteado com
Grande Sertão Veredas, que eu não compreendi na época e, para minha surpresa,
ele conhecia os termos e palavras complexas de Guimarães Rosa. Porque o autor
escrevia sobre um mundo que ele conhecia. Seu pai, meu avô, poderia ter sido um
personagem daquele livro, uma vez que, jovem, exerceu o ofício de tropeiro.
Então, quando, mais tarde, eu li os contos de Sagarana eu o perguntava o
significado das palavras difíceis que me pareciam inventadas pelo autor e ele
conhecia a maioria delas. Eram linguagens dos tropeiros, boiadeiros,
cavaleiros, homens forjados na lida da roça, como ele foi quando criança e
quando jovem. Depois veio para a cidade e trouxe muitas das imagens que tinha
em sua mente e nos passou algumas delas.
Com o tempo eu aprendi a lidar
com ele, a mostrar minha identidade, meus desejos e minhas vontades. E
tenho, hoje, a certeza que sou um pai pior do que ele foi. Creio que algumas
coisas eu não aprendi, o melhor dele eu não aprendi. Não consegui de meus
filhos a amizade que ele cativou de mim, principalmente a dos últimos dez anos
de sua vida. Que meus filhos me perdoem por isso.
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