sábado, 8 de agosto de 2015

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA V


Amanhã é dia dos pais, o que me trouxe a lembrança, óbvia, de meu falecido pai. Isso porque uma irmã me ligou tocando no assunto, afirmando que ela não tinha se lembrado da data. Não está ligada nos comerciais de rádio e televisão, portanto a data lhe passou despercebida. Eu respondi que eu também não me lembrava, uma vez que meus filhos estão fisicamente distantes e não são de ficarem me ligando para dar ou receber notícias minhas. Nunca foram disso. Culpa minha também ao não cultivar essas comemorações. Eles ficam na deles e eu na minha. E como eu também não ligo televisão não sou metralhado com propagandas consumistas. Melhor assim.

Não sei se já escrevi sobre isso em outro momento, acho que sim, eu não sofri a morte de meu pai. Eu sofri a sua decadência, sua morrência, não sua morte. Essa aconteceu em momento esperado, até adivinhado por mim. Com isso eu o matei dentro de mim antes que ele fechasse os olhos. E com isso eu tive a tranquilidade de cuidar de seus últimos suspiros, de assistir seu último olhar e captar seu último sorriso. Meses antes eu o perguntei se ele estava preparado para morrer, ele disse que sim, que já tinha vivido tudo que poderia ter vivido, e tinha orgulho de sua vida. Eu lhe respondi que se ele estava preparado eu também estava e não choraria em seu enterro. Não chorei. Deixei-o ir em sua magreza para o além, seja lá o que isso significa.

As lembranças que ele me traz são várias e de várias nuances, porque em vida ele foi o que um pai, crescido na roça e malhado nas vivências e sofrências do cotidiano, calejado no labor da sobrevivência, poderia ter sido. Severo, porradeiro quando era criança, amigo quando me tornei adulto. E bastante amigo. Toda aquela violência masculina que eu via nele quando menino eu não vi mais. Eu vi sua elegância, seu poder de sedução com as outras mulheres, porque a violência machista dele com a minha mãe continuou existindo. Foi o protótipo do marido mandão e machista que não deixou saudades em minha mãe. Deixou muitas mágoas nela, ao mesmo tempo que deixou boas e más lembranças para os filhos. Cada um tem histórias alegres e tristes para contar sobre essa figura ao qual chamávamos de pai.

Algumas coisas ele fazia questão que tivéssemos: educação em todos os sentidos, coragem para enfrentar os medos, fartura na mesa, saúde e livros. Se eu queria um livro ele comprava, independente do esforço que ele teria que fazer para conseguir nos dar o livro de presente. Com isso eu aprendi a amar livros e esse talvez seja um de seus grandes legados na minha vida. Os livros. Lembro-me de tê-lo presenteado com Grande Sertão Veredas, que eu não compreendi na época e, para minha surpresa, ele conhecia os termos e palavras complexas de Guimarães Rosa. Porque o autor escrevia sobre um mundo que ele conhecia. Seu pai, meu avô, poderia ter sido um personagem daquele livro, uma vez que, jovem, exerceu o ofício de tropeiro. Então, quando, mais tarde, eu li os contos de Sagarana eu o perguntava o significado das palavras difíceis que me pareciam inventadas pelo autor e ele conhecia a maioria delas. Eram linguagens dos tropeiros, boiadeiros, cavaleiros, homens forjados na lida da roça, como ele foi quando criança e quando jovem. Depois veio para a cidade e trouxe muitas das imagens que tinha em sua mente e nos passou algumas delas.


Com o tempo eu aprendi a lidar com ele, a mostrar minha identidade, meus desejos e minhas vontades. E tenho, hoje, a certeza que sou um pai pior do que ele foi. Creio que algumas coisas eu não aprendi, o melhor dele eu não aprendi. Não consegui de meus filhos a amizade que ele cativou de mim, principalmente a dos últimos dez anos de sua vida. Que meus filhos me perdoem por isso. 

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