sábado, 22 de agosto de 2015

AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA VII


Podem rir à vontade, aqueles que o quiserem fazer diante de minha revelação: quando garoto fui coroinha. Sim, coroinha, esse é, ou era, o nome dos meninos que ajudavam o padre na hora da missa. Havia um sacristão que nos ensinava os rituais daquela operação, vestíamos uma batina branca com uma faixa vermelha, e fazíamos parte do ritual da missa. Claro que eu não entendia nada daquilo, nem queria entender, era como uma obrigação a mais. Meus pais tentavam que seus filhos adquirissem uma cultura religiosa, creio que meu pai mais que minha mãe. Íamos à igreja aos domingos de manhã, vestíamos nossas melhores roupas, era uma festa. Eu ia para a sacristia, aprendia umas frases em latim, decoradas, eu não sabia o que significavam, e nem o padre nem o sacristão tinham interesse em nos ensinar latim, esperavam apenas que repetíssemos como papagaios aquele palavrório todo.

Claro que isso não durou muito tempo. Imagino que o padre logo percebeu meu completo desinteresse pela ação litúrgica e me despediu. Eu tive meu primeiro desempregamento, sem aviso prévio, aos dez anos de idade. Fiquei feliz da vida. E nunca mais participei da vida religiosa. Continuávamos indo à Igreja de Santo Antônio aos domingos de manhã, o ritual era obrigatório a ser seguido, mas eu sempre dava um jeito de ficar do lado de fora da igreja. Era minha rebeldia solitária e silenciosa. Óbvio que já fui à igreja outras vezes: casamentos, batizados e até no meu casamento religioso eu compareci. Se eu não casasse na igreja eu não teria a permissão do sogro e da sogra para casar e creio que minha avó ficaria muito desiludida se eu não estivesse presente na cerimônia religiosa do meu primeiro casamento. Mas o ritual não tinha importância para mim. Hoje eu sei da importância dos rituais na vida das pessoas, eu até afirmo para alguns interlocutores que uma forma de organizarmos nossa vida é ritualizarmos nossas atividades e ações mais corriqueiras. Acredito mesmo nisso. Mas o ritual espiritual não me diz grande coisa.

Eu não sei o pensamento de meus irmãos a esse respeito, mas penso que os velhos desistiram, com o passar do tempo, de catequizar-nos. Eu e meus irmãos fomos desistindo das igrejas e eles também passaram a não frequentar os rituais religiosos. Alguns até voltaram a fazê-lo mais tarde, por razões outras que os ensinamentos paternos. Sempre vi meus pais fazerem suas orações, silenciosas e em seus quartos, se forçar a presença de seguidores. Depois de algum tempo, também desistiram dos rituais religiosos. Minha mãe ainda diz que tem sua fé e sua crença, no entanto pensa na morte como o fim da existência e pronto. Ela não acredita em vida após a morte. “Morreu, acabou”, ela diz. Ela não viu o sepultamento de meu pai e se recusa a visitar cemitério ou carolar no dia de finados. Eu também não vou. Não me interessa ver uma plaquinha no gramado do cemitério com o nome do velho, interessam-me as memórias que guardo.


Claro que eu sou um cara com grande espiritualidade. Isso nada tem a ver com religião. Tem a ver com sua conexão com o mundo e sua conexão com as pessoas e demais seres vivos. Eu sinto a presença das pessoas, eu gosto de perceber a alma delas, o pensamento delas. A diferença é que eu não personalizo esses pensamentos em uma figura divina humanizada. A humanidade cria seus deuses à sua imagem e semelhança e não o contrário. O mito da criação está presente em todas as culturas, lógico, mas não passa de mito. Mitificamos aquilo que não compreendemos, fica mais fácil de lidar com nossas dúvidas e nossas ignorâncias se nos ancoramos no mito, no divino. Até eu faço isso, porque não? A figura de deus é confortadora. O que não consigo compreender é a necessidade das religiões e dos religiosos em exigir que todos tenham as mesmas crenças. As religiões não respeitam as diferenças. Na Colômbia tem uma pastora protestante que catequiza as tribos indígenas. E faz isso com tanta eficiência que os próprios índios matam os outros, da mesma tribo, que não aceitam se evangelizar. E a única santa católica da Colômbia fez a mesma coisa. Horrorizou os índios que não se converteram. E hoje é santa. Santa da igreja católica. E querem que eu acredite e tenha fé! Cruz credo! 

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