Mãe não é
mulher.
Mãe é uma imagem de mulher
que se destrói
ao nos tornarmos homem.
Aí, mãe se refaz mulher.
Distante.
Mais próxima que antes.
Com essa frase, que pode parecer carregada de ressentimentos,
Zara começa a contar um pouco de sua vida ao jornalista que fora entrevistá-la.
Ela completaria noventa anos naquela semana e o jornal da cidade tinha em pauta
reportar um pouco da vida das mulheres idosas e suas histórias. Porque a
história das mulheres idosas é mais de luta e sofrimento que de alegrias. No
entanto, Zara trazia um sorriso ainda encantador em seu rosto marcado pelas
rugas da idade. Entre um sorriso e outro, vai repassando a trama de sua
existência, relembrada em impulsos de sua memória já estremecida.
Zara veio ainda jovem do sertão de Minas Gerais, lá dos
gerais de Guimarães Rosa, onde o Urucuia serpenteia, às vezes raso, às vezes
profundo. Pegou a estrada já com um filho na barriga, fruto dos avanços
forçados do filho do dono da fazenda. A própria família a mandara embora. A
mulher ser sempre suspeita é coisa antiga e mudou muito pouco. Nem a pós-modernidade
conseguiu tirar-lhes essa culpa.
Chegou à capital sem saber para onde ir. Não queria que com
ela acontecesse o mesmo que a muitas mulheres na mesma situação: cair na
prostituição. Como era de boa conversa, pediu ajuda às pessoas, sonhando
encontrar uma boa alma. Afinal, ela sabia cozinhar bem. Comida da roça, claro.
E aprendia a dar uns alinhavos nas roupas quando precisou pegar a
estrada. Medo e vergonha de trabalhar não tinha. Assim, pergunta aqui, conversa
ali, conta história acolá, Zara foi convidada por uma senhora para trabalhar em
sua casa, como doméstica.
Ficou por lá uns tempos, teve seu filho e a vida foi se
conduzindo no automático das horas. Os patrões, gente boa, tinham filhos homens
que, infelizmente, começaram a assediá-la.
— Muitos homens não conseguem ver uma mulher sozinha que se
acham no direito de importuná-la. Levá-la para a cama para depois sair contando
vantagem, conta Zara. São uns bobocas.
— E o que fez a senhora quando isso aconteceu? — Pergunta o
jornalista.
— Fiz minhas trouxas e fugi. Foi aí que vim para Nova Lima.
Para trabalhar e criar meus filhos. Tive mais dois, mesmo sem me casar. Porque
queria ter filhos, não maridos. Eu já sabia que maridos costumam ser um atraso
na vida da gente. Eles querem ser nossos donos, não nossos companheiros.
— A vida é muito dura com as mulheres solteiras e mães. Como
se ter filhos sem marido fosse um atestado de ruindade, ou de incompetência. E
pais que não são maridos desaparecem e os deixam crescer sozinhos, Zara continua
relatando.
— E como a senhora conseguiu criar seus filhos? — Pergunta de
novo o jornalista que, na verdade, preferia deixá-la falar à vontade que ficar provocando-a
com perguntas.
— Aluguei uma casinha simples e comprei uma máquina de
costura. Os móveis e utensílios da casa fui ganhando das pessoas. Existem
pessoas bondosas, a maioria é. Rapidamente consegui trabalho. O problema maior
é que os moleques ficavam muito soltos e iam para a rua. A rua é uma escola
complicada. Ensina coisas boas e ruins.
— Um de meus filhos foi pego pelo lado ruim da rua. Meteu-se
em encrenca com as gangues do bairro e, certo dia, apareceu morto com um tiro
no peito.
As lágrimas veem aos olhos de Zara ao comentar isso. Pode-se
perceber que a dor ainda é muito grande, embora um tempo longo tenha se transcorrido.
— Depois disso, o segundo filho preferiu ir embora. Não
queria ter o mesmo destino de seu irmão. Nunca mais voltou. Pelo menos sei que
está vivo. Até me envia dinheiro ocasionalmente. Não preciso, então o guardo no
banco, em uma caderneta de poupança. Se ele voltar um dia e precisar da grana,
ela está lá no banco, à disposição.
Nesse momento entra Mauro, seu terceiro filho. Um mulato
bonito, forte, ainda jovem, chega com Saulo que veio visitar a avó. Saulo
é filho de Mauro, neto de Zara, carrega uma mochila com seus apetrechos. Veio
direto da faculdade e entrou para ver o que estava acontecendo. Curiosidade de
neto que mora vizinho à avó.
A tristeza nos olhos da vó Zara dá lugar ao sorriso
escancarado, mostrando os dentes ainda bem cuidados. Zara é um exemplo no
bairro. Muitos da vizinhança demandam seus conselhos e sua benção de benzedeira
de boas rezas, que sabe curar mau-olhado, tristezas do coração. Quem a vê, hoje,
nem imagina o quanto de dor e sofrimento pelo qual ela passou na vida. Com
certeza, será uma bela reportagem.
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