Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)
O uso da palavra aporofobia é recente no Brasil. A maioria de nós teve notícia de sua existência e significado pelas intervenções do Pe. Júlio Lancellotti, de São Paulo. Em suas públicas indignações a respeito das alterações nos espaços públicos impedindo o acolhimento dos moradores de rua, ele imprimia o termo “aporofobia” nas fotografias desses locais. Ele fazia uma antipublicidade das marcas das lojas e instituições e poder público que colocaram pedras e pontas nos espaços de rua evitando, assim, a presença de moradores de rua. Nas cidades brasileiras, a aporofobia aparece principalmente no uso de grades, lanças e muros para impedir a aproximação de moradores de rua de residências e estabelecimentos.
De onde vem a expressão “aporofobia”? Situações muitas vezes
classificadas como "racismo" ou "xenofobia" deveriam ter,
na verdade, outro nome: "aporofobia". Este é o argumento da inventora
da palavra, a filósofa espanhola Adela Cortina, que a criou nos anos 1990. De
acordo com ela, há casos onde o ódio a imigrantes ou refugiados, por exemplo,
não decorre da condição de estrangeiros, mas, sim, da situação de miséria em
que essas pessoas se encontram. Em uma entrevista, Adela Cortina afirmou que
criou o termo justamente para “dar visibilidade a essa patologia social que
existe no mundo todo”. A filósofa afirma que “é comum tratar bem quem pode nos
fazer favor ou dar algo em troca e abandonar aqueles que não podem nos dar nada
disso”.
Por que há tantos pobres
no Brasil?
Por que a maioria dos
pobres são pretos?
Esta é uma questão mais política que
econômica. E sua origem está lá no Império. Em mil oitocentos e cinquenta (1850)
o Congresso brasileiro aprovou dois projetos de lei que colocaram as primeiras
pedras pontudas para impedir a distribuição da riqueza no Brasil. O primeiro
deles proibia a entrada de novos escravos no Brasil, mas, simultaneamente,
impedia que os escravos e imigrantes pobres europeus fossem donos de terras no
Brasil. Na época a marinha inglesa
pirateava os navios negreiros e libertava os negros que vinham para o Brasil como
escravos. O governo inglês fazia enorme pressão para a libertação dos escravos.
Com isso, os donos de terras e de escravos arriscavam ficar sem mão de obra
e pressionaram os congressistas na elaboração de leis que impediriam o
enriquecimento dos seus antigos escravos quando viesse a abolição da
escravatura. Essa famigerada lei só perdeu a validade com a morte dos antigos escravos
após a abolição em mil oitocentos e oitenta e oito.
O segundo projeto de lei foi ainda pior. Em dezoito de setembro de mil oitocentos e
cinquenta (18/09/1850) Dom Pedro II sancionou a lei que dividia a zona rural em
latifúndios, em vez de pequenas propriedades rurais. As terras brasileiras eram
tidas com pertencentes ao Império (na verdade, sabemos serem dos indígenas) e
as terras rurais eram ocupadas por posseiros, ricos e pobres. A narrativa de
argumentação dos congressistas era que os posseiros pobres não teriam condições
de lutar e expulsar os indígenas (chamados de gentios) das terras e, ao mesmo tempo, cuidar da agricultura e pecuária. Dois crimes cometidos simultaneamente: contra
os indígenas e contra os posseiros pobres. Os indígenas foram expulsos, muitos
morreram e suas muitas de suas mulheres trazidas à força para os ambientes
domésticos. Os posseiros pobres ficaram com trabalhadores rurais mal pagos ou
vieram engrossar os nascentes aglomerados nos morros das cidades.
Meus antepassados indígenas, da tribo dos botocudos,
viviam às margens do Rio Piracicaba, em Minas Gerais. A terra deles se chamava
Itajuru, a pedra do papagaio. Coincidentemente, a primeira escritura da ainda
hoje denominada Fazenda Itajuru data de mil oitocentos e cinquenta (1850),
lavrada por um cidadão de origem portuguesa de nome João Batista de Figueiredo.
Ou seja, sancionada a lei, um rico cidadão foi ao cartório e registrou a terra.
Um parente desse senhor, um tal de Miguel de Figueiredo, trabalhava no gabinete
de ninguém menos que o Sr. Bonifácio de Andrada. Minha bisavó e minha avó, de
fortes traços fisionômicos indígenas, carregavam esse sobrenome. E a Fazenda Itajuru
ainda está sob os cuidados de um Figueiredo, primo distante.
O resultado dessa legislação está gravado no retrato do
Brasil, ainda hoje.
Muita terra para poucos donos e pouca terra para muitos donos.
Tamanho da propriedade |
Percentual de ocupação da zona rural |
Percentual de propriedades e proprietários |
Maior que 2 mil hectares |
50 % da zona rural |
0,7% dos proprietários |
Menor que 25 hectares |
0,5 % da zona rural |
60% dos proprietários |
Nada mudou desde então. Entra governo e sai governo, muda o
Congresso a cada quatro anos e nada muda. A pobreza aumenta, os pobres ficam
isolados nos aglomerados, novos nomes para as favelas.
Já sobrevoaram uma grande cidade brasileira durante uma tarde
ensolarada? As cidades são símbolos vivos da aporofobia. Aporofobia urbana, com
crueldade da arquitetura e urbanismo. Os bairros ricos são menores
e em algumas cidades são ilhas de riqueza e beleza em um mar de pobreza. Ilhas
são uma metáfora ruim: elas podem ser tomadas. Nossas ilhas de riqueza são
protegidas pelo poder público e cercadas por grandes avenidas que separam os
bairros de classe média alta dos aglomerados. Esses dois mundos não se
misturam.
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Não se misturam, mas ambos envelhecem. Só que ricos e pobres
envelhecem diferentemente. Em artigo anterior no Portal do Envelhecimento (https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/o-brasil-e-negro-mas-o-envelhecimento-e-branco/)
destaquei as diferenças de tratamentos, em diversas esferas, a pessoas pretas e
brancas idosas. O recorte não é muito diferente se focalizarmos as diferenças
entre as pessoas idosas pobres e as ricas. Pessoas idosas pobres vivem menos sendo negligenciadas nos atendimentos pelos vários órgãos do poder público. A
legislação pertinente, o Estatuto da Pessoa Idosa, já fez vinte anos e poucas
coisas mudaram. Porque não se muda a distribuição de riqueza e consequente diminuição
das desigualdades sociais apenas com uma legislação de proteção à pessoa idosa.
Velhos e pobres continuam velhos e pobres. Ao aposentarem, as pessoas pobres têm
seus salários diminuídos, quase sempre. As pessoas ricas, além da previdência
social, geralmente têm um acréscimo pela previdência privada.
Há formas de combater as desigualdades? Sim, há. Várias. Todas
dependem de mudanças nas legislações do trabalho, da previdência social e de
mudanças culturais profundas. Porque a aporofobia está enraizada em nossa população,
até mesmo nas mentes da população mais pobre. Sair da pobreza não significa que
terão ações de auxílio aos parentes pobres. E aqueles quem colocamos no
Congresso não parecem estar dispostos a lutar por essas mudanças.
Mesmo o crescimento econômico de uma nação não é remédio
para a diminuição das desigualdades sociais. Com os programas de crescimento
econômico e diminuição do desemprego devem seguir os programas de distribuição
de renda. No Brasil, programas como o Bolsa Família são pífios. O gasto com a
distribuição de renda no Brasil ainda é muito menor que os gastos dos países
desenvolvidos. A França, por exemplo, gasta quase dois porcento do PIB com distribuição
de renda. Outros investimentos sociais em Saúde e Educação são os principais
remédios para a diminuição da pobreza, o resto é placebo.
Além de pobre, envelheceu? Que horror.
Só não temos mais velhos pobres porque eles morrem antes que os velhos ricos.
"Envelhecemos para fazermos coisas que nunca fizemos,
é também isso que significa a velhice".
(Valter Hugo Mãe - @valterhugomae)
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