terça-feira, 31 de janeiro de 2023

APOROFOBIA: POBRE E VELHO, QUE HORROR

Paulo Cezar S. Ventura (pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura)

O uso da palavra aporofobia é recente no Brasil. A maioria de nós teve notícia de sua existência e significado pelas intervenções do Pe. Júlio Lancellotti, de São Paulo. Em suas públicas indignações a respeito das alterações nos espaços públicos impedindo o acolhimento dos moradores de rua, ele imprimia o termo “aporofobia” nas fotografias desses locais. Ele fazia uma antipublicidade das marcas das lojas e instituições e poder público que colocaram pedras e pontas nos espaços de rua evitando, assim, a presença de moradores de rua. Nas cidades brasileiras, a aporofobia aparece principalmente no uso de grades, lanças e muros para impedir a aproximação de moradores de rua de residências e estabelecimentos.

De onde vem a expressão “aporofobia”? Situações muitas vezes classificadas como "racismo" ou "xenofobia" deveriam ter, na verdade, outro nome: "aporofobia". Este é o argumento da inventora da palavra, a filósofa espanhola Adela Cortina, que a criou nos anos 1990. De acordo com ela, há casos onde o ódio a imigrantes ou refugiados, por exemplo, não decorre da condição de estrangeiros, mas, sim, da situação de miséria em que essas pessoas se encontram. Em uma entrevista, Adela Cortina afirmou que criou o termo justamente para “dar visibilidade a essa patologia social que existe no mundo todo”. A filósofa afirma que “é comum tratar bem quem pode nos fazer favor ou dar algo em troca e abandonar aqueles que não podem nos dar nada disso”.

 

Por que há tantos pobres no Brasil?

Por que a maioria dos pobres são pretos?

 

Esta é uma questão mais política que econômica. E sua origem está lá no Império. Em mil oitocentos e cinquenta (1850) o Congresso brasileiro aprovou dois projetos de lei que colocaram as primeiras pedras pontudas para impedir a distribuição da riqueza no Brasil. O primeiro deles proibia a entrada de novos escravos no Brasil, mas, simultaneamente, impedia que os escravos e imigrantes pobres europeus fossem donos de terras no Brasil.  Na época a marinha inglesa pirateava os navios negreiros e libertava os negros que vinham para o Brasil como escravos. O governo inglês fazia enorme pressão para a libertação dos escravos. Com isso, os donos de terras e de escravos arriscavam ficar sem mão de obra e pressionaram os congressistas na elaboração de leis que impediriam o enriquecimento dos seus antigos escravos quando viesse a abolição da escravatura. Essa famigerada lei só perdeu a validade com a morte dos antigos escravos após a abolição em mil oitocentos e oitenta e oito.

O segundo projeto de lei foi ainda pior.  Em dezoito de setembro de mil oitocentos e cinquenta (18/09/1850) Dom Pedro II sancionou a lei que dividia a zona rural em latifúndios, em vez de pequenas propriedades rurais. As terras brasileiras eram tidas com pertencentes ao Império (na verdade, sabemos serem dos indígenas) e as terras rurais eram ocupadas por posseiros, ricos e pobres. A narrativa de argumentação dos congressistas era que os posseiros pobres não teriam condições de lutar e expulsar os indígenas (chamados de gentios) das terras e, ao mesmo tempo, cuidar da agricultura e pecuária. Dois crimes cometidos simultaneamente: contra os indígenas e contra os posseiros pobres. Os indígenas foram expulsos, muitos morreram e suas muitas de suas mulheres trazidas à força para os ambientes domésticos. Os posseiros pobres ficaram com trabalhadores rurais mal pagos ou vieram engrossar os nascentes aglomerados nos morros das cidades.

Meus antepassados indígenas, da tribo dos botocudos, viviam às margens do Rio Piracicaba, em Minas Gerais. A terra deles se chamava Itajuru, a pedra do papagaio. Coincidentemente, a primeira escritura da ainda hoje denominada Fazenda Itajuru data de mil oitocentos e cinquenta (1850), lavrada por um cidadão de origem portuguesa de nome João Batista de Figueiredo. Ou seja, sancionada a lei, um rico cidadão foi ao cartório e registrou a terra. Um parente desse senhor, um tal de Miguel de Figueiredo, trabalhava no gabinete de ninguém menos que o Sr. Bonifácio de Andrada. Minha bisavó e minha avó, de fortes traços fisionômicos indígenas, carregavam esse sobrenome. E a Fazenda Itajuru ainda está sob os cuidados de um Figueiredo, primo distante.

O resultado dessa legislação está gravado no retrato do Brasil, ainda hoje.

Muita terra para poucos donos e pouca terra para muitos donos.

Tamanho da propriedade

Percentual de ocupação da zona rural

Percentual de propriedades e proprietários

Maior que 2 mil hectares

50 % da zona rural

0,7% dos proprietários

Menor que 25 hectares

0,5 % da zona rural

60% dos proprietários


 

Nada mudou desde então. Entra governo e sai governo, muda o Congresso a cada quatro anos e nada muda. A pobreza aumenta, os pobres ficam isolados nos aglomerados, novos nomes para as favelas.

Já sobrevoaram uma grande cidade brasileira durante uma tarde ensolarada? As cidades são símbolos vivos da aporofobia. Aporofobia urbana, com crueldade da arquitetura e urbanismo. Os bairros ricos são menores e em algumas cidades são ilhas de riqueza e beleza em um mar de pobreza. Ilhas são uma metáfora ruim: elas podem ser tomadas. Nossas ilhas de riqueza são protegidas pelo poder público e cercadas por grandes avenidas que separam os bairros de classe média alta dos aglomerados. Esses dois mundos não se misturam.

Quando você for convidado pra subir no adro da fundação
Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados...

(Caetano Veloso e Gilberto Gil)

 

Não se misturam, mas ambos envelhecem. Só que ricos e pobres envelhecem diferentemente. Em artigo anterior no Portal do Envelhecimento (https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/o-brasil-e-negro-mas-o-envelhecimento-e-branco/) destaquei as diferenças de tratamentos, em diversas esferas, a pessoas pretas e brancas idosas. O recorte não é muito diferente se focalizarmos as diferenças entre as pessoas idosas pobres e as ricas. Pessoas idosas pobres vivem menos sendo negligenciadas nos atendimentos pelos vários órgãos do poder público. A legislação pertinente, o Estatuto da Pessoa Idosa, já fez vinte anos e poucas coisas mudaram. Porque não se muda a distribuição de riqueza e consequente diminuição das desigualdades sociais apenas com uma legislação de proteção à pessoa idosa. Velhos e pobres continuam velhos e pobres. Ao aposentarem, as pessoas pobres têm seus salários diminuídos, quase sempre. As pessoas ricas, além da previdência social, geralmente têm um acréscimo pela previdência privada.

Há formas de combater as desigualdades? Sim, há. Várias. Todas dependem de mudanças nas legislações do trabalho, da previdência social e de mudanças culturais profundas. Porque a aporofobia está enraizada em nossa população, até mesmo nas mentes da população mais pobre. Sair da pobreza não significa que terão ações de auxílio aos parentes pobres. E aqueles quem colocamos no Congresso não parecem estar dispostos a lutar por essas mudanças.

Mesmo o crescimento econômico de uma nação não é remédio para a diminuição das desigualdades sociais. Com os programas de crescimento econômico e diminuição do desemprego devem seguir os programas de distribuição de renda. No Brasil, programas como o Bolsa Família são pífios. O gasto com a distribuição de renda no Brasil ainda é muito menor que os gastos dos países desenvolvidos. A França, por exemplo, gasta quase dois porcento do PIB com distribuição de renda. Outros investimentos sociais em Saúde e Educação são os principais remédios para a diminuição da pobreza, o resto é placebo.

Além de pobre, envelheceu? Que horror.

Só não temos mais velhos pobres porque eles morrem antes que os velhos ricos.

 

"Envelhecemos para fazermos coisas que nunca fizemos,

é também isso que significa a velhice".

(Valter Hugo Mãe - @valterhugomae)

 

 

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