Volto
a escrever seguindo uma cronologia aleatória, não posso me furtar a pensamentos
e lembranças que vem à minha mente. Sei que a memória é uma construção
contínua, amanhã posso não me lembrar dos fatos que estou me lembrando agora,
ou me lembrarei de uma forma diferente, como se os fatos mudassem à medida que
os tempos do relógio se mostrassem diferentes, à medida que vamos acrescentando
informações, mesmo que estas novas informações pareçam ser indiferentes ao fato
que queremos narrar, não sei. Sei que cada vez que contamos uma história
contamos diferente.
Certa
vez li uma reportagem sobre uma cidade da Europa, cidade pequena, em uma vale
cercado de montanhas, cujos casas tinham telhados de pedras azuis. Telhados de
pedra em cidadezinhas europeias são comuns, telhados de pedras azuis, como
ardósias, não são comuns. Eu me encantei com as fotos, parecia uma cidade
conhecida, onde eu poderia ter passado, então à noite sonhei que estava andando
pelas ruas daquela cidade da foto, encantado com os telhados de pedras azuis.
Nada de mais, salvo que dias ou meses mais tarde eu contava uma história, real,
acontecida comigo, e disse a meus interlocutores que a história se passava em
uma cidade de casas com telhados de pedras azuis. Parei assustado no meio da
história, mom dieu, não é verdade, estarei mentindo? Inconscientemente? Por
isso digo que escrever uma autobiografia pode ser uma empreitada perigosa e sei
lá se minhas lembranças são totalmente reais ou se tem fatos acrescentados de
sonhos, de visões, ou de invenções. Insisto, então, que minha autobiografia é
desautorizada. Amanhã posso entrar em juízo contra o autor, perdas e danos por
contar mentiras a meu respeito.
A
minha história de hoje é verídica, por enquanto. Eu tinha uns quarenta anos
quando conheci uma mulher interessante. Inteligente, madura, cheia de histórias
de vida, um olhar ativo e altivo, carinhosa. De oitenta anos. Não dei muita
bola, porque duas pessoas me apresentaram a ela: uma de quem eu gosto muito
(até hoje) e outra de quem eu não gostava muito na época. Então fiquei
dividido: gosto ou não gosto dela? O tempo optou pelo “gosto dela”. E nos
tornamos amigos. Ela tinha filhos insanos, estranhamente arrogantes, como se
sentissem as melhores pessoas do mundo e tivessem sido traídos pelo andar da
carruagem, pelos acontecimentos políticos. A família tinha sido altamente
beneficiada pelos tempos de ditadura, que findaram um dia, e as benesses às
quais eles estavam acostumados sumiram do quartel, mas eles não tiraram o
pelotão do quartel, esperando que um dia, que não veio, as coisas voltassem aos
eixos, eixos deles. Um ser dessa família se indignava sempre que seus filhos
não conseguiram vagas em boas universidades, nem bons empregos, etc.
Essas
são histórias paralelas, não me interessam. Quero escrever sobre minha amiga de
quarenta anos mais que eu. Ela gostou de mim e sempre pedia minha presença em
sua casa. Eu a visitava de vez em quando e levava livros para ela ler, ela
gostava de ler, principalmente de poesia, algumas ela recitava de cor, aquelas
parnasianas de sua juventude. Então me animei a levar poesias minhas para ela
ler. Para minha surpresa ela gostou de meus poemas e os lia sempre e os lia
para os amigos.
Mas
o tempo passou, vinte anos depois e ela estava centenária e, obvio, não tinha
mais o mesmo brilho, nem a mesma lucidez, apenas a mesma fleuma. Depois dos
noventa anos ficava quase o tempo todo na cama, sob cuidados de terceiros. A
família, seus filhos e netos insanos, cuidavam dela como se cuida de bebês
travessos, sem vontades, como se fosse um problema a ser escondido no armário.
Nunca mais saíram com ela, nem a puseram em uma cadeira de rodas para passear.
Eu a peguei uma vez no colo e a levei para dar uma volta de carro e isso quase
deu história. Eu soube que ela sempre pedia que ligassem para mim, mas sempre
pedia àquela pessoa que não gostava de mim e o recado sempre chegava com muito
atraso. Mas sempre que eu a visitava ela se alegrava. Um detalhe dos encontros
é que ela, em sua cama, sempre me beijava nos lábios. Loucura? Pode ser. Hoje
imagino que era uma fantasia de uma pessoa que, quando jovem, vinte e poucos
anos, foi molestada (porque sou gentil com ele?) por um senhor e teve que se
casar com seu molestador porque dele se engravidou, e com quem teve outros dois
filhos. E algumas pessoas a julgavam uma mulher má, pois quando esse marido
envelheceu e precisou de cuidados especiais ela o tratou mal. Maldade?
Vingança? Tudo pode ser, mas eu a perdoo.
O
fato é que ela me beijava sempre que eu chegava e saia da beirada de sua cama.
Eu o fazia meio sem jeito no começo, depois comecei a esconder o carinho das
outras pessoas que por acaso estivessem no recinto, para não provocar celeumas.
Mas celeumas aparecem. Surgem do nada. Como no dia em que ela estava
hospitalizada e não se lembrava de ninguém, nem mesmo dos filhos, octogenários
todos eles. Eu cheguei, me aproximei, beijei-a escondendo o rosto dela com
minhas costas largas, comecei a conversar com ela e ela se lembrou de mim, e
falou meu nome e continuou sem lembrar dos outros. E seus olhos brilharam
quando eu disse que a levaria para ver o carnaval (estava próximo do carnaval).
Então ela me disse que a última vez que saiu de casa foi aquela em que eu a
peguei no colo e a levei para ver a decoração de natal na Pampulha. Quase dez
anos antes.
Um
dia ela me disse que estava chegando ao fim e que eu não voltasse mais. Não
voltei, embora tivesse notícia de que ela teria me chamado algumas vezes, e
pedido para telefonar para mim, as pessoas de sua proximidade pensavam que
estava delirando. Claro que estava. Os recados chegaram depois de sua morte, ao
cento e dois anos. Aí eles diziam: Paulo, como ela gostava de você.
Algumas
pessoas me definem como mulherengo. E algumas pessoas muito próximas. Eu
concordo. Escrevi e li poesias para uma mulher de cem anos. Que me beijava nos
lábios. E que se sentia feliz quando me via. E que se lembrava de mim quando
não se lembrava de mais ninguém. Os detratores dirão que não perdoo nem as
velhinhas. Mas se alguém perguntar se eu tive um amor sincero eu direi: sim, eu
tive. Felizmente, mais de um.
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