Meu exercício
de desobediência civil sempre foi muito sutil. Nunca fui de grandes revoltas,
raras vezes saí do sério, extrapolando a rebeldia, ou raiva, partindo para a
agressividade. Mecanismo de defesa. No entanto, sempre tive certa dose de
antipatia às autoridades. Talvez porque meu pai era excessivamente autoritário,
fazia valer sua opinião acima das coisas. Não me lembro de qualquer debate
entre mim e ele sobre suas decisões. A discordância (minha) terminava ou em
porrada ou em meu silêncio para não levar porrada. Com isso aprendi a discordar
na sutileza. Por exemplo, enquanto eu não fiz dezoito anos, eu deveria chegar
em casa às vinte e duas horas. Nem um minuto a mais. Quando você tem dezessete anos e arruma
uma namorada no centro da cidade, chegar em casa às dez e morando a quatro ou
cinco quilômetros da casa da namorada, ou do local do evento, e a pé,
significava deixar a namorada na rua, ou em outro lugar bem antes do horário
previsto. Ou seja, era deixar a namorada sozinha e disponível para outro
aventureiro. Nem pensar. Aí era a vez da desobediência.
Eu tinha meus
truques para chegar em casa tarde. Primeiro, combinava com minhas irmãs para
deixar a janela do quarto delas aberta, apenas encostada, permitindo minha
entrada na calada da noite. Meu pai descobriu o truque, e vinha trancar a
janela depois que as irmãs dormiam. A outra estratégia era deixar um local
externo arrumado para dormir. Na área de serviço de minha casa minha mãe
mantinha um latão para guardar as roupas sujas. Eu me certificava que ele
estava cheio, ou quase cheio, de roupas sujas. Ao chegar, às madrugadas, eu deitava
o latão, distribuía as roupas sujas dentro dele, e me aconchegava meio às
roupas sujas. Ou seja, me enrolava com as roupas sujas e dormia o sono dos
justos e inocentes. Quando minha mãe abria a porta pela manhã eu entrava
sorrateiramente em casa e ia direto para meu quarto. Às vezes deitava de roupas
e até calçado, para não fazer barulho e acordar a fera. Claro que ele só ficou
sabendo disso bem mais tarde, quando ele já não tinha controle da situação.
O lado negativo
disso é que nunca consegui trabalhar sob a liderança de ninguém.
Profissionalmente, isso me ocasionou vários prejuízos, inclusive financeiros.
Nunca parei em lugar algum. Já tive trinta e cinco endereços em meus sessenta e
cinco anos de vida, sendo que entre os cinco e os vinte morei no mesmo lugar e
nos últimos treze anos também morei em um só endereço. Ou seja, tive trinta e
três endereços em quarenta e sete anos. Fui um verdadeiro nômade. Esse estado
nômade impede de construir um
lastro. Recomeçar
é sempre difícil.
Hoje, pensando
nas possibilidades perdidas, penso que essa negação da autoridade me impediu de
realizar grandes avanços, desmotivou-me sempre de realizar meus projetos.
Sempre os abandonei pelo meio do caminho. Essa é uma grande lição que, espero,
não seja tarde de me
apropriar dela. Seguirei em frente. Tenho menos tempo agora, mas vencerei.
Chegarei aos setenta
sem problemas financeiros e chegarei aos oitenta com minha
sustentabilidade na velhice garantida.
Essa questão
que trago aqui é uma grande autoanálise. É o reconhecimento de erros cometidos
no passado que não cometerei mais. Claro que não estou autorizado por mim mesmo
para fazer essas declarações que aqui faço, talvez seja ainda um traço de minha
rebeldia. A finalidade dessa autobiografia é exatamente que ela faça esse papel
de psicanálise. Quando retomei este texto e escrevi os três últimos parágrafos
dele eu já tinha consciência mais acentuada dessas coisas de ir ao passado, não
para revivê-lo, isso não, mas repensá-lo como gerador de frustrações e gerador
de projetos inacabados, de coisas não ditas.
Esse
ainda é um grande problema para mim. Aprender com os erros do passado e criar
uma nova personalidade, mais autêntica e forte, mais resiliente e generosa.
Quero ser feliz.
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