Quase cinquenta anos depois venho
a público fazer uma confissão. Com autorização de quem? Não preciso esclarecer
que essa autobiografia continua desautorizada. Significa que não me
responsabilizo por aquilo que escrevo aqui nessas páginas. Mas a confissão é
necessária, absolutamente. Como entrei para um grupo de pessoas que me cobram
lealdade poética (pensei que fosse liberdade poética, mas essa é obrigação de
escritores: serem livres) pensei ser de bom alvitre fazer essa confissão. Eu
dormi com Marília de Dirceu. Uma noite inteira.
- Como assim? Leu alguma coisa sobre os
inconfidentes mineiros e sonhou à noite? - Não, cara. É verdade. Eu dormi
com Marília de Dirceu. Juntinhos, coladinhos. - Ah, então é com alguma jovem mulher
com o mesmo nome da musa! - Não, cara. Eu dormi com a musa dos
inconfidentes. - Penso que você está ruim da cabeça. Há dois séculos
de diferença. Você viajou no tempo? Ou viajou nas drogas? Explica melhor essa
história!
Pelo menos você se interessou. Eu
estava com dezessete ou dezoito anos, naquela idade em que você está pronto para
cometer inúmeras loucuras. Era festival de inverno em Ouro Preto e eu fui para
lá juntamente com uns amigos de escola. Fomos nos divertir mais que aprender
alguma coisa no festival. Passeamos pela cidade, assistimos vários shows
programados para a ocasião, bebemos e fumamos e procuramos garotas para
namorar. Garotas não encontramos, mesmo assim divertimos. Mais tarde entramos
em um bar e nos acomodamos bem no fundo do mesmo para passar a noite. O dono do
bar autorizou a estadia no estabelecimento, desde que fosse sem confusão e com
um pequeno pagamento. A notícia deve ter se espalhado entre os desabrigados de
fora, turistas sem paradeiro fixo, pois o fundo do bar ficou cheio. Ele baixou
a porta e uma turma ficou lá dentro.
Eram tempos difíceis, cara. Ditadura
militar. A cidade estava infestada de milicos, de dedos duros, de espiões do
governo, etc. Obviamente eles ficaram sabendo da presença
de hippies (assim éramos chamados) cabeludos, com roupas estranhas,
maconheiros. Mesmo sem fumar maconha éramos carimbados como maconheiros.
Afinal, o que fazíamos na cidade se nem participávamos do festival de
inverno?
E esses caras não brincavam em serviço. Não se pode confiar em polícias em
tempos de ditadura, absolutismo, fascismo, etc. Policiais são treinados para a
grosseria, para a truculência. E nessas épocas eles se sentem uns deuses.
Madrugadinha feita, o frio de
julho baixa sem dó naquela cidade úmida e entre montanhas. E baixa também a
polícia no loca, abre repentinamente a porta do bar e começa a pegar um por um
e colocar no camburão. Encheu o camburão. Foram levar para a delegacia aquele
grupo e disseram que voltariam para levar o resto. Deixaram um soldado de
plantão no local, mas eu e meus amigos, que não fomos levados na primeira
remessa, conseguimos driblar o milico e fugimos. Uma correria só. Ele deixou
passar, não iria sair correndo na rua atrás de jovens fujões.
- E onde entra a Marília de
Dirceu?
A primeira porta que encontrei
aberta era a casa dela. Entrei sem mesmo saber onde entrava e logo fui procurar
uma cama para me deitar. Àquela altura da noite eu já estava cansado à beça
para escolher cama. Aliás, escolhi sim. Eu vi na cabeceira da cama o nome
Marília de Dirceu. Como eu já fazia poses de poeta, pensei: é aqui mesmo, com a
Marília, que dormirei. Enrolei-me em meu saco de dormir, recitei um poema de
minha safra para a Marília (afinal, ela estava acostumada a ouvir recitais e
saraus) e dormi depois de pouco tempo.
- E quem era essa Marília? Como
ela deixou você passar a noite ao lado dela? - Primeiro, não foi ao lado
dela. Foi em cima dela. Segundo ela estava morta. - Dormiu com uma
defunta?
Sim. Em cima de sua lápide no
cemitério atrás do Museu dos Inconfidentes, em Ouro Preto. E acordei com aquela
fina névoa invernal ouropretana caindo em meu rosto. E com um frio do
cão. A Marília, ou seus ossos, estavam abaixo de mim. Mas eu fiz uma escolha de
leito. Dormi ao relento, mas escolhi dormir com a Marília de Dirceu.
No outro dia, passamos mais um
dia na cidade, vivendo música e teatro. A fim de tarde, a mãe de um dos colegas
foi nos buscar. Ficou sabendo de nossa aventura e nos trouxe de volta para
casa. De Kombi. Afinal, éramos uns seis idiotas vagabundos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário