terça-feira, 1 de outubro de 2019

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXXV


Quase cinquenta anos depois venho a público fazer uma confissão. Com autorização de quem? Não preciso esclarecer que essa autobiografia continua desautorizada. Significa que não me responsabilizo por aquilo que escrevo aqui nessas páginas. Mas a confissão é necessária, absolutamente. Como entrei para um grupo de pessoas que me cobram lealdade poética (pensei que fosse liberdade poética, mas essa é obrigação de escritores: serem livres) pensei ser de bom alvitre fazer essa confissão. Eu dormi com Marília de Dirceu. Uma noite inteira.  

- Como assim? Leu alguma coisa sobre os inconfidentes mineiros e sonhou à noite? - Não, cara. É verdade. Eu dormi com Marília de Dirceu. Juntinhos, coladinhos. - Ah, então é com alguma jovem mulher com o mesmo nome da musa! - Não, cara. Eu dormi com a musa dos inconfidentes.  - Penso que você está ruim da cabeça. Há dois séculos de diferença. Você viajou no tempo? Ou viajou nas drogas? Explica melhor essa história!  

Pelo menos você se interessou. Eu estava com dezessete ou dezoito anos, naquela idade em que você está pronto para cometer inúmeras loucuras. Era festival de inverno em Ouro Preto e eu fui para lá juntamente com uns amigos de escola. Fomos nos divertir mais que aprender alguma coisa no festival. Passeamos pela cidade, assistimos vários shows programados para a ocasião, bebemos e fumamos e procuramos garotas para namorar. Garotas não encontramos, mesmo assim divertimos. Mais tarde entramos em um bar e nos acomodamos bem no fundo do mesmo para passar a noite. O dono do bar autorizou a estadia no estabelecimento, desde que fosse sem confusão e com um pequeno pagamento. A notícia deve ter se espalhado entre os desabrigados de fora, turistas sem paradeiro fixo, pois o fundo do bar ficou cheio. Ele baixou a porta e uma turma ficou lá dentro. 

Eram tempos difíceis, cara. Ditadura militar. A cidade estava infestada de milicos, de dedos duros, de espiões do governo, etc. Obviamente eles ficaram sabendo da presença de hippies (assim éramos chamados) cabeludos, com roupas estranhas, maconheiros. Mesmo sem fumar maconha éramos carimbados como maconheiros. Afinal, o que fazíamos na cidade se nem participávamos do festival de inverno? 

E esses caras não brincavam em serviço. Não se pode confiar em polícias em tempos de ditadura, absolutismo, fascismo, etc. Policiais são treinados para a grosseria, para a truculência. E nessas épocas eles se sentem uns deuses.

Madrugadinha feita, o frio de julho baixa sem dó naquela cidade úmida e entre montanhas. E baixa também a polícia no loca, abre repentinamente a porta do bar e começa a pegar um por um e colocar no camburão. Encheu o camburão. Foram levar para a delegacia aquele grupo e disseram que voltariam para levar o resto. Deixaram um soldado de plantão no local, mas eu e meus amigos, que não fomos levados na primeira remessa, conseguimos driblar o milico e fugimos. Uma correria só. Ele deixou passar, não iria sair correndo na rua atrás de jovens fujões. 

- E onde entra a Marília de Dirceu? 

A primeira porta que encontrei aberta era a casa dela. Entrei sem mesmo saber onde entrava e logo fui procurar uma cama para me deitar. Àquela altura da noite eu já estava cansado à beça para escolher cama. Aliás, escolhi sim. Eu vi na cabeceira da cama o nome Marília de Dirceu. Como eu já fazia poses de poeta, pensei: é aqui mesmo, com a Marília, que dormirei. Enrolei-me em meu saco de dormir, recitei um poema de minha safra para a Marília (afinal, ela estava acostumada a ouvir recitais e saraus) e dormi depois de pouco tempo.  

- E quem era essa Marília? Como ela deixou você passar a noite ao lado dela? - Primeiro, não foi ao lado dela. Foi em cima dela. Segundo ela estava morta. - Dormiu com uma defunta? 

Sim. Em cima de sua lápide no cemitério atrás do Museu dos Inconfidentes, em Ouro Preto. E acordei com aquela fina névoa invernal ouropretana caindo em meu rosto. E com um frio do cão. A Marília, ou seus ossos, estavam abaixo de mim. Mas eu fiz uma escolha de leito. Dormi ao relento, mas escolhi dormir com a Marília de Dirceu. 

No outro dia, passamos mais um dia na cidade, vivendo música e teatro. A fim de tarde, a mãe de um dos colegas foi nos buscar. Ficou sabendo de nossa aventura e nos trouxe de volta para casa. De Kombi. Afinal, éramos uns seis idiotas vagabundos.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

CARTA PARA EU CRIANÇA

  Não me lembro do dia em que esta foto foi tomada. Minha irmã, essa aí dos olhos arregalados, era um bebê de alguns meses e eu devia ter me...