quarta-feira, 30 de outubro de 2019

CATÁSTROFE

Resolvi voltar a escrever minhas páginas diárias bem cedo, ao amanhecer, porque preciso reavivar aquela verve de escritor que estava se apagando dentro de mim. Eu sou um escritor. E o que faz um escritor? Ora, um escritor escreve. E eu estava planejando muitos textos, muitos poemas, muitas crônicas, e deixando me levar pelos acontecimentos do dia, me deixando envolver pelas mazelas do cotidiano e perdendo meu foco. 

Escrever apenas as palavras do dia, em páginas de microcontos, como o #quintal e #microcontosfatimaflorentino, é interessante, mas não suficiente. O curso de criatividade que eu fiz me propunha escrever à mão três páginas diárias. Eu escrevo com o que tenho a meu dispor. Se tenho um computador disponível, escrevo usando-o. Se não tenho, bom, sempre tenho um caderno ou um bloco de notas à mão. 

A palavra sugerida pelo grupo #quintal, ontem, não poderia ser mais oracular: catástrofe. E, na hora do almoço, em uma cantina abaixo da represa, seu rompimento pegou a todos de surpresa, naquele sagrado momento de alimentar-se. Quantos mortos? Creio não saberemos. Porque tem a morte imediata daqueles que ficaram soterrados na lama e tem a morte aos poucos daqueles que muito perderam nesse dia: casa, sítios, animais, parentes, esperança. Essa é uma morte ainda pior que a outra.

Sem o imposto da mineração, Minas Gerais seria bem mais pobre que está sendo nos últimos anos. A nossa economia vem se baseando na mineração e no agronegócio de café e gado. Muito pouco para um estado tão grande, com mais de oitocentos municípios, a maioria deles dependente de repasses de verba do governo federal. Isso mostra que tem algo errado. Muita coisa errada, aliás. Primeiro, um município é sempre um sumidouro de recursos que servem apenas para pagamento da máquina administrativa. No Brasil um prefeito, secretários e vereadores, e as instituições que os congregam, têm um custo muito alto. Segundo, o imposto arrecadado nos municípios, em função de sua produtividade, vai primeiro para Brasília para depois voltar aos municípios. Por que o dinheiro arrecadado vai primeiro para o Brasília para depois ser redistribuído? Sim, há a componente de sobrevivência dos municípios pobres, é uma questão de redistribuição de renda. No entanto, há diversas maneiras saudáveis de fazer isso. E de fazer as máquinas executiva, legislativa e judiciária ficarem mais baratas. 

Tudo isso é também uma questão de cultura. Nossa cultura é centralizadora. Estamos acostumados a sermos mandados por um feitor que deve nos dizer sempre o que fazer e como fazer. Temos uma necessidade de obedecer a um governo central, a um todo poderoso presidente da república, quem deve nos dizer como viver. Essa questão cultural é herança dos monarquistas, dos escravagistas, dos latifundiários, antigos donos do poder.
  
O fato é que eu estou ao mesmo tempo puto e envergonhado. Nossas pequenas ações não servem para nada. É chegado o momento de grandes intervenções, de ir para a rua e gritar nossa indignação. Se é que temos alguma, ou será que apenas consideramos que esse é um bom momento para fazermos caridade? 

Que tal pensar um pouco para variar? 
E aqui fecho minha escrita matinal.  

terça-feira, 1 de outubro de 2019

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXXVI

PRIVADO


AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXXV


Quase cinquenta anos depois venho a público fazer uma confissão. Com autorização de quem? Não preciso esclarecer que essa autobiografia continua desautorizada. Significa que não me responsabilizo por aquilo que escrevo aqui nessas páginas. Mas a confissão é necessária, absolutamente. Como entrei para um grupo de pessoas que me cobram lealdade poética (pensei que fosse liberdade poética, mas essa é obrigação de escritores: serem livres) pensei ser de bom alvitre fazer essa confissão. Eu dormi com Marília de Dirceu. Uma noite inteira.  

- Como assim? Leu alguma coisa sobre os inconfidentes mineiros e sonhou à noite? - Não, cara. É verdade. Eu dormi com Marília de Dirceu. Juntinhos, coladinhos. - Ah, então é com alguma jovem mulher com o mesmo nome da musa! - Não, cara. Eu dormi com a musa dos inconfidentes.  - Penso que você está ruim da cabeça. Há dois séculos de diferença. Você viajou no tempo? Ou viajou nas drogas? Explica melhor essa história!  

Pelo menos você se interessou. Eu estava com dezessete ou dezoito anos, naquela idade em que você está pronto para cometer inúmeras loucuras. Era festival de inverno em Ouro Preto e eu fui para lá juntamente com uns amigos de escola. Fomos nos divertir mais que aprender alguma coisa no festival. Passeamos pela cidade, assistimos vários shows programados para a ocasião, bebemos e fumamos e procuramos garotas para namorar. Garotas não encontramos, mesmo assim divertimos. Mais tarde entramos em um bar e nos acomodamos bem no fundo do mesmo para passar a noite. O dono do bar autorizou a estadia no estabelecimento, desde que fosse sem confusão e com um pequeno pagamento. A notícia deve ter se espalhado entre os desabrigados de fora, turistas sem paradeiro fixo, pois o fundo do bar ficou cheio. Ele baixou a porta e uma turma ficou lá dentro. 

Eram tempos difíceis, cara. Ditadura militar. A cidade estava infestada de milicos, de dedos duros, de espiões do governo, etc. Obviamente eles ficaram sabendo da presença de hippies (assim éramos chamados) cabeludos, com roupas estranhas, maconheiros. Mesmo sem fumar maconha éramos carimbados como maconheiros. Afinal, o que fazíamos na cidade se nem participávamos do festival de inverno? 

E esses caras não brincavam em serviço. Não se pode confiar em polícias em tempos de ditadura, absolutismo, fascismo, etc. Policiais são treinados para a grosseria, para a truculência. E nessas épocas eles se sentem uns deuses.

Madrugadinha feita, o frio de julho baixa sem dó naquela cidade úmida e entre montanhas. E baixa também a polícia no loca, abre repentinamente a porta do bar e começa a pegar um por um e colocar no camburão. Encheu o camburão. Foram levar para a delegacia aquele grupo e disseram que voltariam para levar o resto. Deixaram um soldado de plantão no local, mas eu e meus amigos, que não fomos levados na primeira remessa, conseguimos driblar o milico e fugimos. Uma correria só. Ele deixou passar, não iria sair correndo na rua atrás de jovens fujões. 

- E onde entra a Marília de Dirceu? 

A primeira porta que encontrei aberta era a casa dela. Entrei sem mesmo saber onde entrava e logo fui procurar uma cama para me deitar. Àquela altura da noite eu já estava cansado à beça para escolher cama. Aliás, escolhi sim. Eu vi na cabeceira da cama o nome Marília de Dirceu. Como eu já fazia poses de poeta, pensei: é aqui mesmo, com a Marília, que dormirei. Enrolei-me em meu saco de dormir, recitei um poema de minha safra para a Marília (afinal, ela estava acostumada a ouvir recitais e saraus) e dormi depois de pouco tempo.  

- E quem era essa Marília? Como ela deixou você passar a noite ao lado dela? - Primeiro, não foi ao lado dela. Foi em cima dela. Segundo ela estava morta. - Dormiu com uma defunta? 

Sim. Em cima de sua lápide no cemitério atrás do Museu dos Inconfidentes, em Ouro Preto. E acordei com aquela fina névoa invernal ouropretana caindo em meu rosto. E com um frio do cão. A Marília, ou seus ossos, estavam abaixo de mim. Mas eu fiz uma escolha de leito. Dormi ao relento, mas escolhi dormir com a Marília de Dirceu. 

No outro dia, passamos mais um dia na cidade, vivendo música e teatro. A fim de tarde, a mãe de um dos colegas foi nos buscar. Ficou sabendo de nossa aventura e nos trouxe de volta para casa. De Kombi. Afinal, éramos uns seis idiotas vagabundos.  

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXXIV


Um dos exercícios que preciso fazer para eliminar certas crenças enraizadas em meus pensamentos íntimos e negativos é afirmar constantemente os meus resultados adquiridos na vida, as coisas que eu construí durante a minha existência para ter sempre a certeza de que eu sou capaz, eu sou poderoso, eu sou o máximo. Sim, eu sou capaz, eu sou poderoso, eu sou o máximo. Por isso, uso este espaço de minha autobiografia desautorizada para autorizar-me (apenas eu tenho o poder de fazer isso) a relatar as grandes e boas coisas que fiz na vida e dizer ao mundo: eu tenho a força; a força está comigo, eu tenho o poder, eu sou o máximo. Porque realizei grandes coisas. O relato a seguir não é apenas uma lista de realizações, mais que isso, é uma reverência a meus fazeres.

Hoje eu sei que o grande poder das realizações está nas ações. Parece redundância [realiza + ações]. E ações estão ligadas aos afazeres, ao “levanta da cadeira e vá fazer alguma coisa”. Sempre fui mais parado que o necessário, mesmo assim fiz grandes coisas. Quando garoto ainda eu trabalhei em uma lavoura junto com meu pai. Arrendamos um terreno brejoso próximo a nossa casa e fomos plantar. Era um vale com um grande brejo no meio, mas vimos que a água era de nascente no local e de boa qualidade. Então fizemos um canal para escoamento da água para um córrego vizinho com uma tampa que nos permitia barrar o fluxo de água, formando uma pequena represa, o que nos garantia água pura e em quantidade suficiente para regar nossa plantação. E ali plantamos inhame, mandioca, beterraba, cenoura, batata baroa, e outros legumes. No quintal de nossa casa plantávamos verduras e tomates. Com isso tínhamos sempre o que complementar o arroz, o feijão e o macarrão de todo dia. E crescemos fortes e saudáveis. A venda dos produtos na rua nos aportava um dinheiro a mais que garantia as compras de roupas, sapatos e cadernos para os estudos. Essa foi minha primeira grande realização.

Na escola eu me garantia e tinha ótimas notas. Era conhecido como aluno inteligente e com isso fiz alguns amigos que se interessavam por mim. Outros, é claro, só queriam que eu lhes passasse cola nas provas. Foi minha inteligência, entretanto, que me fez crescer na vida e passar no vestibular de Física antes de completar dezoito anos. Meu segundo grande feito foi fazer uma faculdade no tempo certo, trabalhando, sem receber um tostão dos pais. Tive minha independência aos dezoito anos. E o trabalho sempre bateu à minha porta. O estudo definiu minha profissão: professor desde os dezoito anos. E passei nos concursos que fiz: professor na Universidade Federal de Viçosa em mil novecentos e setenta e oito; aluno do mestrado em mil novecentos e oitenta e um; professor na PUCMG em mil novecentos e oitenta e sete; professor na Universidade Federal de São João del Rei em mil novecentos e oitenta e nove; professor no CEFETMG em mil novecentos e noventa e três; aluno de doutorado na Universidade de Paris XI em mil novecentos e noventa e seis e na Universidade de Borgonha em dois mil, doutorando-me em dois mil e um. Sou doutor e doutorei-me com louvor. Uma grande plateia veio assistir à minha defesa de tese. Grandes realizações.

Como professor eu ajudei a formar muita gente. Não tenho a conta de quantos alunos eu tive na vida. Foram quarenta anos de magistério, com uns duzentos alunos por ano, em média, somando oito mil alunos, no mínimo (penso que avalio por baixo). Entre eles, tive uns cem alunos de especialização, outros tantos de mestrado, dos quais orientei vinte e cinco, e participei de cinquenta e uma bancas de mestrado e doutorado. Nos cursos técnicos, de graduação e pós devo ter orientado uns mil projetos diferentes. É ou não é um grande somatório de realizações?

Nos trabalhos de consultoria eu também ajudei bastante a muitas pessoas, escolas e secretarias de educação. A minha participação em projetos do CAED de Juiz de Fora foi muito profícua, permitiu-me aprofundar em questões curriculares importantes que hoje são afirmações de políticas públicas na educação. Publiquei uma dezena de artigos, escrevi uma dissertação de mestrado, uma tese de doutorado, publiquei três livros. E hoje trabalho como consultor e editor. Como coach já ajudei uma dezena de pessoas a realizarem seus desejos de crescimento.

Na vida pessoal, eu não posso me gabar tanto, mas tive dois filhos, cuidei de outros dois, construí uma casa de duzentos e cinquenta metros quadrados, onde morei por quinze anos, e tenho ainda um apartamento de oitenta metros quadrados em um local valorizado. Tinha uma esposa de temperamento difícil, mas que gostava de mim. Separamos, mas isso é outra história. Mais culpa minha que dela, fui negligente no casamento. Tenho muitos amigos queridos e várias pessoas me acompanham nas redes sociais. Posso afirmar, com certeza, que realizei muito.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXXIII


Meu exercício de desobediência civil sempre foi muito sutil. Nunca fui de grandes revoltas, raras vezes saí do sério, extrapolando a rebeldia, ou raiva, partindo para a agressividade. Mecanismo de defesa. No entanto, sempre tive certa dose de antipatia às autoridades. Talvez porque meu pai era excessivamente autoritário, fazia valer sua opinião acima das coisas. Não me lembro de qualquer debate entre mim e ele sobre suas decisões. A discordância (minha) terminava ou em porrada ou em meu silêncio para não levar porrada. Com isso aprendi a discordar na sutileza. Por exemplo, enquanto eu não fiz dezoito anos, eu deveria chegar em casa às vinte e duas horas. Nem um minuto a mais. Quando você tem dezessete anos e arruma uma namorada no centro da cidade, chegar em casa às dez e morando a quatro ou cinco quilômetros da casa da namorada, ou do local do evento, e a pé, significava deixar a namorada na rua, ou em outro lugar bem antes do horário previsto. Ou seja, era deixar a namorada sozinha e disponível para outro aventureiro. Nem pensar. Aí era a vez da desobediência.

Eu tinha meus truques para chegar em casa tarde. Primeiro, combinava com minhas irmãs para deixar a janela do quarto delas aberta, apenas encostada, permitindo minha entrada na calada da noite. Meu pai descobriu o truque, e vinha trancar a janela depois que as irmãs dormiam. A outra estratégia era deixar um local externo arrumado para dormir. Na área de serviço de minha casa minha mãe mantinha um latão para guardar as roupas sujas. Eu me certificava que ele estava cheio, ou quase cheio, de roupas sujas. Ao chegar, às madrugadas, eu deitava o latão, distribuía as roupas sujas dentro dele, e me aconchegava meio às roupas sujas. Ou seja, me enrolava com as roupas sujas e dormia o sono dos justos e inocentes. Quando minha mãe abria a porta pela manhã eu entrava sorrateiramente em casa e ia direto para meu quarto. Às vezes deitava de roupas e até calçado, para não fazer barulho e acordar a fera. Claro que ele só ficou sabendo disso bem mais tarde, quando ele já não tinha controle da situação.

O lado negativo disso é que nunca consegui trabalhar sob a liderança de ninguém. Profissionalmente, isso me ocasionou vários prejuízos, inclusive financeiros. Nunca parei em lugar algum. Já tive trinta e cinco endereços em meus sessenta e cinco anos de vida, sendo que entre os cinco e os vinte morei no mesmo lugar e nos últimos treze anos também morei em um só endereço. Ou seja, tive trinta e três endereços em quarenta e sete anos. Fui um verdadeiro nômade. Esse estado nômade impede de construir um lastro. Recomeçar é sempre difícil.

Hoje, pensando nas possibilidades perdidas, penso que essa negação da autoridade me impediu de realizar grandes avanços, desmotivou-me sempre de realizar meus projetos. Sempre os abandonei pelo meio do caminho. Essa é uma grande lição que, espero, não seja tarde de me apropriar dela. Seguirei em frente. Tenho menos tempo agora, mas vencerei. Chegarei aos setenta sem problemas financeiros e chegarei aos oitenta com minha sustentabilidade na velhice garantida.

Essa questão que trago aqui é uma grande autoanálise. É o reconhecimento de erros cometidos no passado que não cometerei mais. Claro que não estou autorizado por mim mesmo para fazer essas declarações que aqui faço, talvez seja ainda um traço de minha rebeldia. A finalidade dessa autobiografia é exatamente que ela faça esse papel de psicanálise. Quando retomei este texto e escrevi os três últimos parágrafos dele eu já tinha consciência mais acentuada dessas coisas de ir ao passado, não para revivê-lo, isso não, mas repensá-lo como gerador de frustrações e gerador de projetos inacabados, de coisas não ditas.

Esse ainda é um grande problema para mim. Aprender com os erros do passado e criar uma nova personalidade, mais autêntica e forte, mais resiliente e generosa. Quero ser feliz.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXXII


Tem coisas que só aprendemos com o tempo, com a tal da experiência de vida. Ainda bem que aprendemos, mesmo sendo o tempo uma variável estranha. Dizem que os minutos e horas são medidas precisas, contadas a partir das oscilações nucleares de determinado elemento químico. No entanto, quando contamos nossas experiências com o tempo, as medidas não conferem. Um mistério! Então, vamos aos fatos.

Quando eu estava com uns dez ou doze anos, nem me lembro quando exatamente (olha o tempo medido aí), minha mãe sempre recebia a visita de uma vizinha, por acaso uma conterrânea de meu pai. Essa vizinha sempre reclamava da vida ingrata, que não lhe premiou com as alegrias e as benesses, segundo ela, e que levava uma vida triste e miserável. Era pobre, o marido não tinha emprego fixo, os filhos sempre adoentados, ela era uma abandonada pelas graças divinas. E minha mãe a escutava até perder um pouco a paciência (porque isso acontecia quase todos os dias) e lhe dizia assim: - Ô Terezinha, pare de falar desgraças. Desgraça atrai desgraça. É uma palavra que nem deveria sair de nossa boca. – A Terezinha não ouvia e sua vida, de fato, se derramou em desgraças que iam se acumulando. Anos mais tarde eu vi seu marido pedindo esmolas em uma avenida da capital, sem as pernas e de muletas, e seu filho engraxando sapatos na mesma avenida. Pensei, lógico, que minha mãe tinha razão: desgraça atrai desgraça.

Anos mais tarde, eu assistia uma mesa redonda de um seminário de poesia promovido pela universidade, isso na antiga faculdade de filosofia da UFMG. Nessa mesa redonda falava Fernando Brant, letrista de músicas de compositores do grupo chamado de Clube da Esquina, com muitos sucessos principalmente na voz de Milton Nascimento. Falava também, na mesma mesa, outro letrista conhecido da Música Popular Brasileira, o José Carlos Capinam, autor de uma música genial, entre muitas outras, em parceria com Edu Lobo, “Ponteio”. Fernando Brant quase não falava, enquanto Capinam usava da palavra galantemente. Em dado momento ele confessa que escrevia letras tristes, melancólicas, e sua vida era coerente com suas letras: triste e melancólica. Até que, certa vez, decidiu escrever apenas sobre a alegria, o amor e outras coisas boas da vida. E sua vida mudou, tão logo suas poesias, ou letras de músicas, mudaram. Ele afirma essas palavras de forma emocionada, alertando para o grande poder das palavras em nossas vidas.

Um terceiro momento aconteceu lá pelos anos mil novecentos e noventa e seis ou sete, ou oito, aqui a medida do tempo também se perdeu no horizonte de minha memória, mas não o fato. Houve uma presença significativa de autores brasileiros no Salon du Livre de Paris, com vários autores brasileiros lançando livros. Entre esses autores estava Lígya Fagundes Telles, lançando livro e fazendo palestra. Eu estava lá para ouvir sua fala e, de quebra, ainda vi, bem de perto, a grande atriz francesa Cathérine Deneuve. Aliás, ela se sentou em uma mesa ao lado da minha. Eu quase fiquei com torcicolo de tanto olhar para o lado para ver a Belle de Jour. Mas o que ficou registrado de interesse para este relato foram as palavras de Lígya. Ela disse, em um francês esforçado, que todo escritor deve tomar muito cuidado com as palavras e com as formas que usam essas palavras. Pois as palavras têm poder, ela disse. As palavras voltam-se contra nós ou a nosso favor, dependendo de como as empregamos. Essas palavras retumbaram em minha mente como as palavras de minha mãe, lá no tempo de minha infância: não fala desgraça, Terezinha, pois desgraça atrai desgraça.

Tempos depois, nem sei quanto tempo, ainda demorou um pouco, a teimosia nossa de cada dia é danada de sorrateira e forte, mas consegui: decidi ser bem-humorado por obrigação. E ser alegre e feliz por opção, sabendo que essa opção é um caminho, não um tratado de vida. E requer esforço.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXXI


Em mil novecentos e noventa e cinco eu viajei para a França. Minha esposa recebeu uma bolsa de estudos da CAPES para fazer doutorado e eu aproveitei a oportunidade e voei para lá. Antes fiz um curso de um semestre na Aliança Francesa. Um semestre nos ensina frases simples com verbos regulares conjugados no presente do indicativo. Suficiente para falar “índio quer apito” e outras frases com algum significado para nós, sem nenhum sentido para eles. Nessa confusão de significados e sentidos vamos levando nossas primeiras incursões em uma nova língua, em outro país. A vantagem de aprender a língua lá, na origem, onde você é obrigado a falar de qualquer maneira para ser minimamente compreendido, é que esse distanciamento entre significado e sentido vai diminuindo mais rápido que aprender a língua deles na nossa terra.

Eu cheguei em Paris em novembro, fui morar em Montigny le Bretonneux a pouco mais de vinte quilômetros da capital, frio começando, folhas caindo me apresentando o clima e a paisagem outonal, linda, coração cheio de ansiedade pelas novidades a acontecer a partir de então. E surgiu uma greve geral no país que paralisou, por um mês, toda a rede de transporte. Fiquei em casa e aproveitei para fazer um curso de francês através de fitas de áudio, exercícios e leituras. Confesso que foi muito proveitoso. Ao mesmo tempo comecei um curso gratuito no centro cultural da cidade, quinhentos metros de minha nova casa, duas vezes por semana, e tinha colegas estrangeiros: duas nigerianas, duas chinesas. As nigerianas eram donas de casa e esposas de diplomatas, as chinesas estavam lá para trabalhar em restaurantes chineses.

E eu, também “dono de casa”. Isso, porque, ainda sem ocupação, eu cuidava da casa e levava e buscava os filhos, recém-chegados comigo, à escola. Esse curso de francês para estrangeiros era conduzido por uma jovem professora (só muito tempo depois descobri que ela era portuguesa, ou filha de portugueses e falava nossa língua) e duas senhoras voluntárias. Era à base da conversação cotidiana com pouca escrita e leitura, porém muito interessante.

Na cidade, e precisando aprender sobre a vida ali e como sobreviver quatro anos em terra estrangeira fui, aos poucos, descobrindo um mundo de coisas novas. Conheci uma brasileira, morando sozinha, que ficou muito amiga nossa e nos ajudava naquelas coisas necessárias para o funcionamento da casa: ajudou a abrir uma conta no banco, a relacionar com comerciantes, a conhecer pessoas interessantes, etc.

Na escola das crianças conheci uma outra mulher brasileira, casada com um homem francês e a ajuda que essa mulher nos deu foi grandiosa. Ela nos apresentou uma associação humanitária, chamada Secours Catholique, e eles nos ofereceram camas, mesas, uma geladeira usada, uma máquina de lavar roupa usada, roupas de inverno, etc. Isso fez com que nossa entrada na vida à la française fosse muito tranquila. E essa amiga brasileira, de Montes Claros, norte de Minas Gerais, me apresentou à sua rede de amigas brasileiras com nacionalidade francesa (uma vez casadas com homens franceses) e elas sempre me convidavam para seus encontros e festas porque eu dançava samba e salsa com elas, trazendo-lhes lembranças de seus tempos de Brasil.

Assim descobri uma rede de mulheres brasileiras que moravam lá havia muito tempo e tinham família francesa, trabalhavam e quase não tinham oportunidade de conversar em português a não ser quando se reuniam. E passaram a me convidar para suas festas. Eu era, então, o único homem brasileiro das festas e reuniões. Com isso eu aprendi muito rápido as coisas do cotidiano francês, o que me colocava em vantagem com relação a outros brasileiros que chegam no exterior sem uma bagagem de conhecimento dos sentidos das linguagens, orais e gestuais. E um desses franceses, marido de brasileira, me deu uma bicicleta de corrida que tenho comigo até hoje.

Algumas cenas curiosas eu vivi também. Eu cheguei à França logo depois da explosão de uma bomba em um trem, na estação de Saint Michel, ao lado da catedral de Notre Damme, que matou muita gente e causou consternação nacional. Havia muita vigilância nas linhas de trem e metrô e eu era constantemente parado para averiguação de documentos. Nada constrangedor, eu aceitava a vistoria com um sorriso e, quando eles verificavam minha nacionalidade brasileira conversavam animadamente. Em princípio, me julgavam de origem árabe.

Esta “aparência” árabe me colocou em algumas situações inusitadas. Uma vez, em um restaurante universitário, estilo bandeijão, uma senhora que servia comida, verificando que eu escolhera carne de porco (muçulmanos não comem carne de porco), avisou-me muito delicadamente: - Senhor, isso é carne de porco. – Sim, eu respondi. – O senhor come carne de porco? – Como sim, respondi sem entender em princípio. Só quando cheguei à mesa compreendi que ela pensou que eu fosse muçulmano como ela era.

Uma segunda ocorrência, essa bem agradável, aconteceu quando fomos jantar em um restaurante árabe, ao lado de uma mesquita em Paris, bastante cheio, e rapidamente o garçom nos ofereceu uma mesa na melhor posição da casa. Para isso ele deslocou um grupo de rapazes que bebiam alegremente e saíram sem perguntas. Assim que nos posicionamos na mesa ele começou a conversar em árabe conosco. Eu respondi em francês, - desculpe, não falamos árabe. – Mas vocês não são franceses! – Não, somos brasileiros. Ele deu um sorriso cordial e nos atendeu maravilhosamente bem.

Nos cursos visando o doutorado eu tive três colegas árabes, dois argelinos e um marroquino. Sempre nos demos bem e almoçávamos juntos e conversávamos muito, era meio natural essa aproximação. Só no final do curso eles ficaram sabendo que eu não era árabe. Um deles me disse: - a nossa indagação sempre foi de onde você era. Se marroquino, argelino, egípcio ou do sul da Espanha. Seu sotaque não nos indicava claramente suas origens. E nunca imaginamos que fosse brasileiro. Penso que por isso um deles me pediu três mil francos (mais ou menos quinhentos euros) emprestado e nunca me pagou.

Nos primeiros meses na França, entre novembro de mil novecentos e noventa e cinco e fevereiro do ano seguinte, eu ficava estudando em casa e no curso para estrangeiros oferecido pela prefeitura de Montigny. Além disso, fazia passeios pela redondeza, conhecendo os lugares, fazendo compras e assistia programas culinários na TV. Os programas me ensinavam como falar os nomes de verduras e legumes, carnes e utensílios culinários que me ajudavam nessa tarefa que eu tinha, a cozinha. A partir de fevereiro comecei um curso de francês para estrangeiros em Paris, mais profissional e muito bom e meu progresso foi muito rápido. Mas continuava a questão de falar frases com significado para mim, mas sem sentido para os franceses. Eu sabia disso pois não entendia as piadas dos programas humorísticos de televisão. E eu me lembro da primeira vez que ri de uma piada, bem idiota por sinal, mas era o indicador mais preciso de que eu havia entrado na língua e na cultura francesa. Foi um dia bem feliz.

A estadia na França não foi sempre assim tão simples e fácil. Tive momentos de tristeza, de desacreditar que eu poderia voltar com algum ganho substancial. A discussão em torno de temas de pesquisa para o doutorado foi difícil, mas, afinal, consegui retornar ao Brasil com um título de doutor na bagagem. Isso, no entanto, é assunto para maior detalhamento mais tarde.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXX


Volto a escrever seguindo uma cronologia aleatória, não posso me furtar a pensamentos e lembranças que vem à minha mente. Sei que a memória é uma construção contínua, amanhã posso não me lembrar dos fatos que estou me lembrando agora, ou me lembrarei de uma forma diferente, como se os fatos mudassem à medida que os tempos do relógio se mostrassem diferentes, ou à medida que vamos acrescentando informações, mesmo que estas novas informações pareçam ser indiferentes ao fato que queremos narrar, não sei. Sei que cada vez que contamos uma história contamos diferente.

Certa vez li uma reportagem sobre uma cidade da Europa, cidade pequena, em um vale cercado de montanhas, cujas casas tinham telhados de pedras azuis. Telhados de pedra em cidadezinhas europeias são comuns, telhados de pedras azuis, como ardósias, não são comuns. Eu me encantei com as fotos, parecia uma cidade conhecida, onde eu poderia ter passado, então à noite sonhei que estava andando pelas ruas daquela cidade da foto, encantado com os telhados de pedras azuis. Nada de mais, salvo que dias, ou meses, mais tarde eu contava uma história, real, acontecida comigo, e disse a meus interlocutores que a história se passava em uma cidade de casas com telhados de pedras azuis. Parei assustado no meio da história, mon dieu, não é verdade. Estarei mentindo? Inconscientemente?

Por isso digo que escrever uma autobiografia pode ser uma empreitada perigosa e sei lá se minhas lembranças são totalmente reais ou se tem fatos acrescentados de sonhos, de visões, ou de invenções. Insisto, então, que minha autobiografia é desautorizada. Amanhã posso entrar em juízo contra o autor, perdas e danos por contar mentiras a meu respeito. O que sei é que exponho aqui minhas vulnerabilidades, essa é a razão principal de minha narrativa, o objetivo central de meus relatos. Na verdade, quero me purgar, me curar de minhas mazelas. Penso que expondo-as, contando-as para os amigo(a)s leitores, ele(a)s possam me ajudar a compreender minhas dores e como elas ainda me abalam. E, quem sabe, me livrar delas.

A minha história de hoje é verídica, por enquanto. Eu tinha uns quarenta anos quando conheci uma mulher interessante. Inteligente, madura, cheia de histórias de vida, um olhar ativo e altivo, carinhosa. De oitenta anos. Não dei muita bola, porque duas pessoas me apresentaram a ela: uma de quem eu gosto muito (até hoje) e outra de quem eu não gostava muito na época. Então fiquei dividido: gosto ou não gosto dela? O tempo optou pelo “gosto dela”. E nos tornamos amigos. Ela tinha filhos insanos, estranhamente arrogantes, como se sentissem as melhores pessoas do mundo e tivessem sido traídos pelo andar da carruagem, pelos acontecimentos políticos. A família tinha sido altamente beneficiada pelos tempos de ditadura, que findaram um dia, e as benesses às quais eles estavam acostumados sumiram, mas eles não tiraram o pelotão do quartel, esperando que, um dia, que não veio, as coisas voltassem aos eixos, eixos deles. Um ser dessa família se indignava sempre que seus filhos não conseguiram vagas em boas universidades, nem bons empregos, etc.

Essas são histórias paralelas, não me interessam. Quero escrever sobre minha amiga de quarenta anos mais que eu. Ela gostou de mim e sempre pedia minha presença em sua casa. Eu a visitava de vez em quando e levava livros para ela ler, ela gostava de ler, principalmente de poesia, algumas ela recitava de cor, aquelas parnasianas de sua juventude. Então me animei a levar poesias minhas para ela ler. Para minha surpresa ela gostou de meus poemas e os lia sempre e, inclusive os lia para as amigas.

Mas o tempo passou, vinte anos depois e ela estava centenária e, óbvio, não tinha mais o mesmo brilho, nem a mesma lucidez, apenas a mesma fleuma. Depois dos noventa anos ficava quase o tempo todo na cama, sob cuidados de terceiros. A família, seus filhos e netos insanos, cuidavam dela como se cuida de bebês travessos, sem vontades, como se fosse um problema a ser escondido no armário, ou pelo menos em um quarto do segundo andar, nos fundos, de um prédio de bairro classe média. Nunca mais saíram com ela, nem a puseram em uma cadeira de rodas para passear. 

Eu a peguei uma vez no colo e a levei para dar uma volta de carro e isso quase deu história. Eu soube que ela pedia que ligassem para mim, mas pedia àquela pessoa que não gostava de mim e o recado chegava com muito atraso. Mas sempre que eu a visitava ela se alegrava. Um detalhe dos encontros é que ela, em sua cama, sempre me beijava nos lábios. Loucura? Pode ser. Hoje imagino que era uma fantasia de uma pessoa que, quando jovem, vinte e poucos anos, teve que se casar com um homem apenas porque dele se engravidou, e com quem teve outros dois filhos. E algumas pessoas a julgavam uma mulher má, pois quando esse marido envelheceu e precisou de cuidados especiais ela o tratou mal. Maldade? Vingança? Tudo pode ser, mas eu a perdoo.  

O fato é que ela me beijava sempre que eu chegava e saia da beirada de sua cama. Eu o fazia meio sem jeito no começo, depois comecei a esconder o carinho das outras pessoas que por acaso estivessem no recinto, para não provocar celeumas. Mas celeumas aparecem. Surgem do nada. Como no dia em que ela estava hospitalizada e não se lembrava de ninguém, nem mesmo dos filhos, octogenários todos eles. Eu cheguei, me aproximei, beijei-a escondendo o rosto dela com minhas costas largas, comecei a conversar com ela e ela se lembrou de mim, e falou meu nome e continuou sem lembrar dos outros. E seus olhos brilharam quando eu disse que a levaria para ver o carnaval (estava próximo do carnaval). Então ela me disse que a última vez que saiu de casa foi aquela em que eu a peguei no colo e a levei para ver a decoração de natal na Pampulha. Quase dez anos antes.

Um dia ela me disse que estava chegando ao fim e que eu não voltasse mais. Não voltei, embora tivesse notícia de que ela teria me chamado algumas vezes, e pedido para telefonar para mim, as pessoas de sua proximidade pensavam que estava delirando. Claro que estava. Os recados chegaram depois de sua morte, ao cento e dois anos. Aí eles diziam: Paulo, como ela gostava de você.

Algumas pessoas me definem como mulherengo. E algumas pessoas muito próximas. Eu concordo. Escrevi e li poesias para uma mulher de cem anos. Que me beijava nos lábios. E que se sentia feliz quando me via. E que se lembrava de mim quando não se lembrava de mais ninguém. Os detratores dirão que não perdoo nem as velhinhas. Mas se alguém perguntar se eu tive um amor sincero eu direi: sim, eu tive. Felizmente, mais de um.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXIX


Humberto Mauro, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Sarraceni, Guimarães Rosa, Oswald de Andrade, Carlos Drumond de Andrade, Thiago de Melo, Manoel de Barros, Torquato Neto, Wali Salomão, Pixinguinha, Villa-Lobos, Ernesto Nazaré, Chiquinha Gonzaga, Zé Coco do Riachão, Cândido Portinari, Yara Tupinambá, Lígia Clark, Hélio Oiticica, Rodolfo Caniato, Francisco Prado, Luiz Carlos Alves, Jaguar, Ziraldo, Henfil, Marília Pera, Yonná Maglhães, Jofre Soares, Sérgio Ricardo, Othon Bastos, Geraldo Del Rey, Leonardo Vilar, Tom Zé, Gal Costa, Maria Bethânia, Francisco Magalhães, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Mário Faustino e muitos outros cujos nomes se perderam em minha memória, mas com mesma ou maior importância em minha formação cultural, a vocês eu agradeço e peço perdão, simultaneamente. Agradeço porque nos anos mil novecentos e sessenta e tantos, alguns de vocês estavam construindo um país que pudesse ser digno desse nome, outros foram apenas precursores. Mas a ditadura militar, de mil novecentos e sessenta e quatro interrompeu bruscamente o processo. Alguns se perderam, outros foram forçados a mudarem para sobreviverem. O Brasil mudou de rota, a construção ruiu. Peço perdão porque a minha geração não foi capaz de dar continuidade à obra em curso.

Peço perdão a meus filhos e a meus netos, por ter me acovardado, com medo, e não haver me movimentado o suficiente para fazer voltar o rio a seu curso. O desvio foi fatal. E o que temos hoje é uma legião de governantes sem caráter, sem moral para reconstruir uma nação digna. Não são homens, são chupa-cabras, sanguessugas, vampiros a sugar o sangue de pessoas e de instituições apenas para alimentar seu egoísmo.

Não dá para recuperar, não dá para desfazer o passado e continuar como se nada houvesse acontecido. A nossa elite cultural de hoje também não tem moral nem caráter para liderar um processo de recuperação do país. A mudança só pode vir de baixo para cima, só pode vir da periferia. Temos que criar outro país e encontrar novos rumos. Hoje eu boto fé na cultura que vem das periferias, dos movimentos negros, dos indígenas (que são os grandes diferenciadores de nossa cultura com relação à cultura europeia, mesmo à luso-fônica), dos quilombolas, das culturas afro-brasileiras em geral. Boto fé nessa moçada que hoje chega às cidades, às universidades (graças a um pouco de lucidez de alguns governantes de um passado recente) e que mostram sua cara, sua arte, sua disposição de encontrar um lugar ao sol, com suas diferenças em relação à cultura estabelecida, branca e racista.

Em Belo Horizonte, vamos ao Teatro Espanca. É lá que essa nova cultura toma força.

AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM VULNERÁVEL XXVIII


Escrevo essa página de minha autobiografia em um dia dedicado aos professores: quinze de outubro, considerado o dia do professor. Eu exerci este ofício durante quarenta e três anos e ainda hoje sou convidado para proferir palestras e ministrar oficinas para professores e alunos, e me pergunto: um professor aposentado ainda é professor? A resposta é sim. Entrou no sangue e agora faz parte do DNA.

Ainda me lembro do primeiro dia. Escrevi sobre isso em algum lugar anterior, mas não custa relembrar para introduzir a questão nesta narrativa. Eram cinco horas do entardecer de um dia de fevereiro do ano de mil novecentos e setenta e um (eu tinha dezoito anos), eu estava de calções pretos, sem camisa e de kichute (um calçado usado para jogar em campos de terra), no centro do campo de futebol, posição que eu jogava, suado, quando um carro para à beira do campo, desce uma mulher morena e bela, de óculos escuros e saias curtas. Ela me chama pelo nome. Eu a conhecia, ela havia sido minha professora em algum tempo de ensino médio e era amiga de minha namorada na época. Claro que a turma de futebolistas assobiou, gracejou e brincou comigo. Aproximando de minha amiga, fui logo ouvindo: Tome um banho rápido pois preciso de você para dar aulas de matemática na escola que eu dirijo, em Rio Acima (MG). Eu? Sim, você mesmo. A primeira aula é as dezenove horas e temos uma pequena viagem a fazer (uns vinte quilômetros entre minha casa e a escola na cidade vizinha, por uma estrada de terra, na época). E foi assim que eu deixei de ser um jogador de futebol mediano e tornei-me professor. Em todos esses anos apenas uma vez tentei exercer outra profissão. Tentativa que durou oito meses. Quase sem perceber fui retornando à sala de aula.

Lembro-me também da última vez. Também fevereiro, dois mil e quatorze. Sem pompa, sem despedidas. Aquela retirada quase invisível, sem avisar a quase ninguém. Nos últimos anos de trabalho fui me acostumando à ideia de parar e tornei-me o mais transparente possível para não ser percebido na instituição em que trabalhava. Missão bem-sucedida. Ninguém percebeu que eu me afastava. Descobri, tristemente, que ambiente de trabalho, como em uma instituição de ensino, não é ambiente que favorece amizades. As vaidades e individualidades são enormes e ultrapassam e escondem o trabalho coletivo. Os amigos que ficaram são alguns alunos. Dois anos depois voltei à escola e encontrei nos corredores um ex-colega de trabalho. Ele se dirigiu a mim e perguntou porque eu havia sumido. Aposentei-me, disse. Verdade? Eu não sabia. E o assunto caminhou para amenidades.

A ideia de transparência está ligada ao desapego. Para fazer outras coisas na vida eu necessitava me desligar da profissão, do cotidiano das escolas, da proximidade emocional com os alunos. Faço outras coisas na vida, mas atuo como voluntário, em outras escolas, ajudando professores e alunos em seus projetos. Sinto-me bem com isso.

Tenho muitos episódios e histórias interessantes vividas nesse tempo de trabalho. Iniciarei com um episódio que talvez tenha sido o primeiro caso marcante em minha vida profissional e que me ajudou a definir algumas condutas pedagógicas. Em mil novecentos e setenta e cinco eu trabalhava como professor de Física de turmas do terceiro ano do Ensino Médio do Colégio Padre Machado, na Savassi, avenida Contorno, Belo Horizonte. Uma das turmas era extremamente interessante, instigadora, com alunos inteligentes e revolucionários. Esses alunos incentivaram-me a unir a dois outros professores: Eci, professor de Matemática, e Sebastião, professor de História, igualmente revolucionários. (Sebastião tornou-se uma figura pública, ligado a uma ONG conhecida; de Eci não tenho notícias). Começamos a fazer um trabalho pedagógico diferenciado com esses exigentes alunos que se tornavam cada vez mais revolucionários, questionadores dos métodos de outros professores e da própria escola. Dois antigos professores da escola (Pudim, de Química, e Peninha*, de Matemática, seus apelidos) fizeram uma campanha devastadora contra nós três. Lembro-me de uma reunião de professores, convocada pela diretoria sob pressão dos dois, em que nós três fomos colocados no paredão de fuzilamento, na berlinda, para ser mais suave, e os dois professores citados até babavam de raiva. Defendemo-nos da melhor maneira possível, Eci e Sebastião eram ótimos argumentadores, mas ao final do ano fomos demitidos. Eu tinha vinte e dois anos. Conseguimos implantar algumas ideias nos alunos, eles fizeram a cobrança no ano seguinte. E os dois professores raivosos ficaram na história da escola como responsáveis pelas mudanças pedagógicas implementadas nos discursos e nas práticas dos professores e diretores. Copiadas de nós, é claro. Assim é a vida.

Hoje, quando perguntam minha profissão, ainda respondo: sou professor. Escondo que sou aposentado. Onde trabalha? Na escola da vida.

* Esclarecimento: esse Peninha não é meu querido amigo Carlos Afonso, com o mesmo apelido, também professor de Matemática, mas na UFMG, recentemente falecido.

A PESSOA IDOSA E OS JOGOS DE AZAR

  Vivendo e aprendendo a jogar Nem sempre ganhando Nem sempre perdendo Mas aprendendo a jogar. (Guilherme Arantes) Estive no Corre...