Em mil
novecentos e noventa e cinco eu viajei para a França. Minha esposa recebeu uma
bolsa de estudos da CAPES para fazer doutorado e eu aproveitei a oportunidade e
voei para lá. Antes fiz um curso de um semestre na Aliança Francesa. Um
semestre nos ensina frases simples com verbos regulares conjugados no presente
do indicativo. Suficiente para falar “índio quer apito” e outras frases com
algum significado para nós, sem nenhum sentido para eles. Nessa confusão de
significados e sentidos vamos levando nossas primeiras incursões em uma nova
língua, em outro país. A vantagem de aprender a língua lá, na origem,
onde você é obrigado a falar de qualquer maneira para ser minimamente
compreendido, é
que esse distanciamento entre significado e
sentido vai diminuindo mais rápido que aprender a língua deles na nossa terra.
Eu cheguei em
Paris em novembro, fui morar em Montigny le Bretonneux a pouco mais de vinte
quilômetros da capital, frio começando, folhas caindo me apresentando o clima e
a paisagem outonal, linda, coração cheio de ansiedade pelas novidades a
acontecer a partir de então. E surgiu uma greve geral no país que paralisou,
por um mês, toda a rede de transporte. Fiquei em casa e aproveitei para fazer
um curso de francês através de fitas de áudio, exercícios e leituras. Confesso
que foi muito proveitoso. Ao mesmo tempo comecei um curso gratuito no centro
cultural da cidade, quinhentos metros de minha nova casa, duas vezes por
semana, e tinha colegas estrangeiros: duas nigerianas, duas chinesas. As
nigerianas eram donas de casa e
esposas de diplomatas, as chinesas estavam lá
para trabalhar em restaurantes chineses.
E eu, também
“dono de casa”. Isso, porque, ainda sem ocupação, eu cuidava da casa e levava e
buscava os filhos, recém-chegados
comigo, à escola. Esse curso de francês para estrangeiros era conduzido por uma
jovem professora (só muito tempo depois descobri que ela era portuguesa, ou
filha de portugueses e falava nossa língua) e duas senhoras voluntárias. Era à
base da conversação cotidiana com pouca escrita e leitura, porém muito interessante.
Na
cidade, e precisando aprender sobre a vida ali e como sobreviver quatro anos em
terra estrangeira fui, aos poucos, descobrindo um
mundo de coisas
novas. Conheci uma brasileira, morando sozinha, que
ficou muito amiga nossa e nos ajudava naquelas coisas
necessárias para o funcionamento da casa: ajudou a abrir uma conta no banco, a
relacionar com comerciantes, a conhecer pessoas interessantes, etc.
Na escola das
crianças conheci uma outra mulher brasileira, casada com um homem francês e a
ajuda que essa mulher nos deu foi grandiosa. Ela nos apresentou uma associação
humanitária, chamada Secours Catholique, e eles nos ofereceram camas, mesas,
uma geladeira usada, uma máquina de lavar roupa usada, roupas de inverno, etc.
Isso fez com que nossa entrada na vida à la française fosse muito tranquila. E
essa amiga brasileira, de Montes Claros, norte de Minas Gerais, me apresentou à
sua rede de amigas brasileiras com nacionalidade francesa (uma vez casadas com
homens franceses) e elas sempre me convidavam para seus encontros e festas
porque eu dançava samba e salsa com elas, trazendo-lhes lembranças de seus
tempos de Brasil.
Assim descobri
uma rede de mulheres brasileiras que moravam lá havia muito tempo e tinham
família francesa, trabalhavam e quase não tinham oportunidade de conversar em
português a não ser quando se reuniam. E passaram a me convidar para suas
festas. Eu era, então, o único homem brasileiro das festas e reuniões. Com isso
eu aprendi muito rápido as coisas do cotidiano francês, o que me colocava em
vantagem com relação a outros brasileiros que chegam no exterior sem uma
bagagem de conhecimento dos sentidos das linguagens, orais e gestuais. E um desses franceses, marido de brasileira, me
deu uma bicicleta de corrida que tenho comigo até hoje.
Algumas cenas
curiosas eu vivi também. Eu cheguei à França logo depois da explosão de uma
bomba em um trem, na estação de Saint Michel, ao lado da catedral de Notre
Damme, que matou muita gente e causou consternação nacional. Havia muita
vigilância nas linhas de trem e metrô e eu era constantemente parado para
averiguação de documentos. Nada constrangedor, eu aceitava a vistoria com um
sorriso e, quando eles verificavam minha nacionalidade brasileira conversavam
animadamente. Em princípio, me julgavam de origem árabe.
Esta
“aparência” árabe me colocou em algumas situações inusitadas. Uma vez, em um
restaurante universitário,
estilo bandeijão, uma senhora que servia
comida, verificando que eu escolhera carne de porco (muçulmanos não comem carne
de porco), avisou-me muito delicadamente: - Senhor, isso é carne de porco. – Sim,
eu respondi. – O
senhor come carne de porco? – Como
sim, respondi sem entender em princípio. Só quando cheguei à mesa compreendi
que ela pensou que eu fosse muçulmano como ela era.
Uma segunda
ocorrência, essa bem agradável, aconteceu quando fomos jantar em um restaurante
árabe, ao lado de uma mesquita em Paris, bastante cheio, e rapidamente o garçom
nos ofereceu uma mesa na melhor posição da casa. Para isso ele deslocou um
grupo de rapazes que bebiam alegremente e saíram sem perguntas. Assim que nos
posicionamos na mesa ele começou a conversar em árabe conosco. Eu respondi em
francês, - desculpe, não falamos árabe. – Mas vocês não são franceses! – Não,
somos brasileiros. Ele deu um sorriso cordial e nos atendeu maravilhosamente
bem.
Nos cursos
visando o doutorado eu tive três colegas árabes, dois argelinos e um
marroquino. Sempre nos demos bem e almoçávamos juntos e conversávamos muito, era
meio natural essa aproximação. Só no final do curso eles ficaram sabendo que eu
não era árabe. Um deles me disse: - a nossa indagação sempre foi de onde você
era. Se marroquino, argelino, egípcio ou do sul da Espanha. Seu sotaque não nos
indicava claramente suas origens. E nunca imaginamos que fosse brasileiro.
Penso que por isso um deles me pediu três mil francos (mais ou menos quinhentos
euros) emprestado e nunca me pagou.
Nos primeiros
meses na França, entre novembro de mil novecentos e noventa e cinco e fevereiro
do ano seguinte, eu
ficava estudando em casa e no curso para estrangeiros oferecido pela prefeitura
de Montigny. Além disso, fazia passeios pela
redondeza, conhecendo os lugares,
fazendo compras e assistia programas
culinários na TV. Os programas me ensinavam como falar os nomes de verduras e legumes, carnes
e utensílios culinários que me ajudavam nessa tarefa que eu tinha, a cozinha. A
partir de fevereiro comecei um curso de francês para estrangeiros em Paris,
mais profissional e muito bom e meu progresso foi muito rápido. Mas continuava
a questão de falar frases com significado para mim, mas sem sentido para os
franceses. Eu sabia disso pois não entendia as piadas dos programas
humorísticos de televisão. E eu me lembro da primeira vez que ri de uma piada,
bem idiota por sinal, mas era o indicador mais preciso de que eu havia entrado
na língua e na cultura francesa. Foi um dia bem feliz.
A
estadia na França não foi sempre assim tão simples e fácil. Tive momentos de
tristeza, de desacreditar que eu poderia voltar com algum ganho substancial. A
discussão em torno de temas de pesquisa para o doutorado foi difícil, mas,
afinal, consegui retornar ao Brasil com um título de doutor na bagagem. Isso,
no entanto, é assunto para maior detalhamento mais tarde.