Escrevo essa
página de minha autobiografia em um dia dedicado aos professores: quinze de
outubro, considerado o dia do professor. Eu exerci este ofício durante quarenta
e três anos e ainda hoje sou convidado para proferir palestras e ministrar
oficinas para professores e alunos, e me pergunto: um professor aposentado
ainda é professor? A resposta é sim. Entrou no sangue e agora faz parte do DNA.
Ainda me lembro
do primeiro dia. Escrevi sobre isso em algum lugar anterior, mas não custa relembrar
para introduzir a questão nesta narrativa. Eram cinco horas do entardecer de um
dia de fevereiro do ano de mil novecentos e setenta e um (eu tinha dezoito
anos), eu estava de calções pretos, sem camisa e de kichute (um calçado usado para jogar em campos de terra),
no centro do campo de futebol, posição que eu jogava, suado, quando um carro
para à beira do campo, desce uma mulher morena e bela, de óculos escuros e
saias curtas. Ela me chama pelo nome. Eu a conhecia, ela havia sido minha
professora em algum tempo de ensino médio e era amiga de minha namorada na
época. Claro que a turma de futebolistas assobiou, gracejou e brincou comigo.
Aproximando de minha amiga,
fui logo ouvindo: Tome um banho rápido pois preciso de você para dar aulas de
matemática na escola que eu dirijo, em Rio Acima (MG). Eu? Sim, você mesmo. A
primeira aula é as dezenove horas e temos uma pequena viagem a fazer (uns vinte quilômetros
entre minha casa e a escola na cidade vizinha, por uma estrada de terra, na
época). E foi assim que eu deixei de ser um jogador de futebol mediano e
tornei-me professor. Em todos esses anos apenas uma vez tentei exercer outra
profissão. Tentativa que durou oito meses. Quase sem perceber fui retornando à
sala de aula.
Lembro-me
também da última vez. Também fevereiro, dois mil e quatorze. Sem pompa, sem
despedidas. Aquela retirada quase invisível, sem avisar a quase ninguém. Nos
últimos anos de trabalho fui me acostumando à ideia de parar e tornei-me o mais
transparente possível para não ser percebido na instituição em que trabalhava.
Missão bem-sucedida.
Ninguém percebeu que eu me afastava. Descobri, tristemente, que ambiente de
trabalho, como em
uma instituição de ensino, não é ambiente que
favorece amizades. As vaidades e individualidades são enormes e ultrapassam e
escondem o trabalho coletivo. Os amigos que ficaram são alguns alunos. Dois
anos depois voltei à escola e encontrei nos corredores um ex-colega de
trabalho. Ele se dirigiu a mim e perguntou porque eu havia sumido.
Aposentei-me, disse. Verdade? Eu não sabia. E o assunto caminhou para
amenidades.
A ideia de
transparência está ligada ao desapego. Para fazer outras coisas na vida eu
necessitava me desligar da profissão, do cotidiano das escolas, da proximidade
emocional com os
alunos. Faço outras coisas na vida, mas atuo como voluntário, em outras
escolas, ajudando professores e alunos em seus projetos. Sinto-me bem com isso.
Tenho muitos
episódios e histórias interessantes vividas nesse tempo de trabalho. Iniciarei
com um episódio que talvez tenha sido o primeiro caso marcante em minha vida
profissional e que me ajudou a definir algumas condutas pedagógicas. Em mil
novecentos e setenta e cinco eu trabalhava como professor de Física de turmas
do terceiro ano do Ensino Médio do Colégio Padre Machado, na Savassi, avenida
Contorno, Belo Horizonte. Uma das turmas era extremamente interessante,
instigadora, com alunos inteligentes e revolucionários. Esses alunos
incentivaram-me a unir a dois outros professores: Eci, professor de Matemática,
e Sebastião, professor de História, igualmente revolucionários. (Sebastião
tornou-se uma figura pública, ligado a uma ONG conhecida; de
Eci não tenho notícias). Começamos a fazer um trabalho pedagógico diferenciado
com esses exigentes alunos que se tornavam cada vez mais revolucionários,
questionadores dos métodos de outros professores e da própria escola. Dois
antigos professores da escola (Pudim, de Química, e Peninha*, de Matemática,
seus apelidos) fizeram uma campanha devastadora contra nós três. Lembro-me de
uma reunião de professores, convocada pela diretoria sob pressão dos dois, em
que nós três fomos colocados no paredão de fuzilamento, na berlinda, para ser
mais suave, e os dois professores citados até babavam de raiva. Defendemo-nos
da melhor maneira possível, Eci e Sebastião eram ótimos argumentadores, mas ao final
do ano fomos demitidos. Eu tinha vinte e dois anos. Conseguimos implantar
algumas ideias nos alunos, eles fizeram a cobrança no ano seguinte. E os dois
professores raivosos ficaram na história da escola como responsáveis pelas
mudanças pedagógicas implementadas nos discursos e nas práticas dos professores
e diretores. Copiadas de nós, é claro. Assim é a vida.
Hoje, quando
perguntam minha profissão, ainda respondo: sou professor. Escondo que sou
aposentado. Onde trabalha? Na escola da vida.
* Esclarecimento:
esse Peninha não é meu querido amigo Carlos Afonso, com o mesmo apelido, também
professor de Matemática, mas na UFMG, recentemente falecido.
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