terça-feira, 7 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA III - 05/03/2020


Findamos a terceira semana de quarentena, e é apenas o terceiro dia que escrevo esse diário. Porque não pensei nisso antes? Não sei. Poderia ter pensado, porque escrevo crônicas do cotidiano todos os dias e isso aqui é uma crônica, certo? Eu escrevi crônicas nesses dias de quarentena e muitos microcontos. Adoro escrever microcontos de até trezentos caracteres, não é exatamente uma escolha, é uma exigência do grupo do facebook do qual sou membro. E isso acaba sendo um hábito. Então, escrevo esses contos curtos, minimalistas. A história de escrever diários da quarentena surgiu por essas razões: o cotidiano de uma pessoa em minha idade, mais de sessenta quase setenta, é ficar em casa.
Recebo recados dos amigos de todos os gêneros – fique em casa meu querido; recados dos irmãos – Paulo, fique em casa; recado dos filhos – pai, fique em casa; recado dos netos – vovô, fique em casa. Apenas minha mulher, que divide comigo a quarentena necessária, diz de vez em quando – querido, estamos sem verdura para o almoço, vai ali no mercado e compra um pé de couve. Então eu ponho a máscara, calço os sapatos que já ficam do lado de fora, coloco meu chapéu e luvas e saio. Na rua costumo encontrar algum conhecido que me fala – meu senhor, não é melhor ficar em casa? Chego no sacolão, a duzentos metros de distância e tem um cara na porta, sem máscara e sem luvas, mas com uma garrafa de álcool em gel na mão e me besunta todo. Se ele estiver contaminado, eu já estou fodido. Compro meu pé de couve e a gente sempre compra algo mais do aquilo que colocamos como nosso objetivo inicial, comprar faz parte de nossa obsessão cotidiana e vamos ao caixa, e entramos em uma fila cheia de gente olhando uns para os outros como se fôssemos extra terrestres e sempre aparece alguém para te lembrar: - você não deveria estar em casa, seu velhote? Velhote é a puta que te pariu, jovem idiota.
Bom, depois de passar no caixa, uma moça que bem gostaria de estar em casa em um domingo de manhã e se encontra a contra gosto naquele recinto minúsculo vendo a cara de desconfiados de seus fregueses – será que essa moça não tem covid? Penso e logo deixo de pensar, porque pensar não imuniza ninguém, pago, dou um sorriso amarelo, ela me responde com outro sorriso mais amarelo ainda e volto para meu container doméstico, caminhando devagar só para ficar mais tempo na rua. Chegando em casa faço o ritual (estou começando a me acostumar com rituais, eu que não frequento igrejas porque não gosto de rituais): tiro os sapatos, as meias, as luvas, o chapéu, a máscara, lavo as mãos e a cara com sabonete e me besunto de novo com esse maldito álcool em gel. Aliás estou virando alcoólatra em gel, se o cheiro do álcool não for exatamente aquele, eu rejeito. Por isso parei de tomar cachaça, porque ela não tem cheiro de álcool em gel, então não me satisfaz.
Mas quem fez o almoço hoje foi eu, então deixei na geladeira o bendito pé de couve porque o meu interesse era fazer um peixe ao forno. Eu sou chique, né? Comprei ontem um filé de tucunaré, um peixe da Amazônia bem gostoso e o deixei hoje de manhã fora da geladeira para derreter o meio quilo de gelo que vem dentro do filé congelado. Com limão capeta que apanho no limoeiro do vizinho. Ele me deu acesso a seu quintal só para pegar o danado do limão capeta que dá mais que chuchu na cerca. Mas o limão capeta não tem nada de afrodisíaco, apenas ajuda na imunidade do velhote (velhote é a puta que pariu), importante se cuidar senão o corona vírus vai te pegar e não adiantará ter cara de velhote (velhote é a puta que pariu) sarado, ela vai te pegar do mesmo jeito.
Voltando ao peixe, que descongelou todo o gelo que o fedaputa do fornecedor coloca dentro para aumentar o peso, ajeitei-o na vasilha, besuntei-o (gostei da palavra) com um temperinho caseiro da mulher (coisa boa, a mulher e o tempero), e acrescentei cebola, alho, tomates, pimentões e batatas pré-cozidas e besuntei (ô palavrinha gostosa) com azeite de oliva e foi tudo para o forno. Fiz também um arroz com camarão pequeno e a madame fez uma salada das boas e fomos para a mesa. A essa altura eu já estava meio bêbado de tanto álcool em gel, mas mesmo assim abri um vinho português, um Porta do Casal, safra dois mil e quinze que, segundo enólogos, é a melhor safra da década no mundo todo. Convidamos também nosso vizinho, sim, o do limão capeta, não por causa do limão, mas porque é gente boa e sempre engraçado. Almoçamos os três aquele manjar por mim preparado (desculpem os auto elogios, mas ficou bom pra caralho), rimos e conversamos.
Depois do cafezinho, eu a mulher que comigo divide o espaço em quarentena (será que ela está me aguentando, afinal em meu currículo está assinalado pelas ex-mulheres que sou chato pra caralho) fomos para a cama entre juras de amor e cenas obscenas que não terei o desplante de escrever aqui. Afinal, estou gostando pacas dela e não posso expor nossos pormenores amorosos que não são nada menores, bom dizer. Estamos de lua de mel em quarentena. Afinal viemos morar juntos quando a porra do Sars-cov2 resolveu bagunçar o coreto e a economia do mundo e matar alguns velhotes (velhote é a puta que te pariu), principalmente aqueles com histórico de doenças. Ainda bem que chatice não é doença. Então, sigamos.

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