Findamos a terceira semana de
quarentena, e é apenas o terceiro dia que escrevo esse diário. Porque não
pensei nisso antes? Não sei. Poderia ter pensado, porque escrevo crônicas do
cotidiano todos os dias e isso aqui é uma crônica, certo? Eu escrevi crônicas
nesses dias de quarentena e muitos microcontos. Adoro escrever microcontos de
até trezentos caracteres, não é exatamente uma escolha, é uma exigência do
grupo do facebook do qual sou membro. E isso acaba sendo um hábito. Então,
escrevo esses contos curtos, minimalistas. A história de escrever diários da
quarentena surgiu por essas razões: o cotidiano de uma pessoa em minha idade,
mais de sessenta quase setenta, é ficar em casa.
Recebo recados dos amigos de todos os
gêneros – fique em casa meu querido; recados dos irmãos – Paulo, fique em casa;
recado dos filhos – pai, fique em casa; recado dos netos – vovô, fique em casa.
Apenas minha mulher, que divide comigo a quarentena necessária, diz de vez em
quando – querido, estamos sem verdura para o almoço, vai ali no mercado e
compra um pé de couve. Então eu ponho a máscara, calço os sapatos que já ficam
do lado de fora, coloco meu chapéu e luvas e saio. Na rua costumo encontrar
algum conhecido que me fala – meu senhor, não é melhor ficar em casa? Chego no
sacolão, a duzentos metros de distância e tem um cara na porta, sem máscara e
sem luvas, mas com uma garrafa de álcool em gel na mão e me besunta todo. Se
ele estiver contaminado, eu já estou fodido. Compro meu pé de couve e a gente
sempre compra algo mais do aquilo que colocamos como nosso objetivo inicial,
comprar faz parte de nossa obsessão cotidiana e vamos ao caixa, e entramos em
uma fila cheia de gente olhando uns para os outros como se fôssemos extra
terrestres e sempre aparece alguém para te lembrar: - você não deveria estar em
casa, seu velhote? Velhote é a puta que te pariu, jovem idiota.
Bom, depois de passar no caixa, uma
moça que bem gostaria de estar em casa em um domingo de manhã e se encontra a
contra gosto naquele recinto minúsculo vendo a cara de desconfiados de seus
fregueses – será que essa moça não tem covid? Penso e logo deixo de pensar,
porque pensar não imuniza ninguém, pago, dou um sorriso amarelo, ela me
responde com outro sorriso mais amarelo ainda e volto para meu container
doméstico, caminhando devagar só para ficar mais tempo na rua. Chegando em casa
faço o ritual (estou começando a me acostumar com rituais, eu que não frequento
igrejas porque não gosto de rituais): tiro os sapatos, as meias, as luvas, o
chapéu, a máscara, lavo as mãos e a cara com sabonete e me besunto de novo com
esse maldito álcool em gel. Aliás estou virando alcoólatra em gel, se o cheiro
do álcool não for exatamente aquele, eu rejeito. Por isso parei de tomar
cachaça, porque ela não tem cheiro de álcool em gel, então não me satisfaz.
Mas quem fez o almoço hoje foi eu,
então deixei na geladeira o bendito pé de couve porque o meu interesse era
fazer um peixe ao forno. Eu sou chique, né? Comprei ontem um filé de tucunaré,
um peixe da Amazônia bem gostoso e o deixei hoje de manhã fora da geladeira
para derreter o meio quilo de gelo que vem dentro do filé congelado. Com limão
capeta que apanho no limoeiro do vizinho. Ele me deu acesso a seu quintal só
para pegar o danado do limão capeta que dá mais que chuchu na cerca. Mas o
limão capeta não tem nada de afrodisíaco, apenas ajuda na imunidade do velhote
(velhote é a puta que pariu), importante se cuidar senão o corona vírus vai te
pegar e não adiantará ter cara de velhote (velhote é a puta que pariu) sarado,
ela vai te pegar do mesmo jeito.
Voltando ao peixe, que descongelou
todo o gelo que o fedaputa do fornecedor coloca dentro para aumentar o peso,
ajeitei-o na vasilha, besuntei-o (gostei da palavra) com um temperinho caseiro
da mulher (coisa boa, a mulher e o tempero), e acrescentei cebola, alho,
tomates, pimentões e batatas pré-cozidas e besuntei (ô palavrinha gostosa) com
azeite de oliva e foi tudo para o forno. Fiz também um arroz com camarão
pequeno e a madame fez uma salada das boas e fomos para a mesa. A essa altura
eu já estava meio bêbado de tanto álcool em gel, mas mesmo assim abri um vinho
português, um Porta do Casal, safra dois mil e quinze que, segundo enólogos, é
a melhor safra da década no mundo todo. Convidamos também nosso vizinho, sim, o
do limão capeta, não por causa do limão, mas porque é gente boa e sempre
engraçado. Almoçamos os três aquele manjar por mim preparado (desculpem os auto
elogios, mas ficou bom pra caralho), rimos e conversamos.
Depois do cafezinho, eu a mulher que
comigo divide o espaço em quarentena (será que ela está me aguentando, afinal
em meu currículo está assinalado pelas ex-mulheres que sou chato pra caralho)
fomos para a cama entre juras de amor e cenas obscenas que não terei o
desplante de escrever aqui. Afinal, estou gostando pacas dela e não posso expor
nossos pormenores amorosos que não são nada menores, bom dizer. Estamos de lua
de mel em quarentena. Afinal viemos morar juntos quando a porra do Sars-cov2
resolveu bagunçar o coreto e a economia do mundo e matar alguns velhotes (velhote
é a puta que te pariu), principalmente aqueles com histórico de doenças. Ainda
bem que chatice não é doença. Então, sigamos.
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